Dá que pensar…
É impressão minha ou chegámos à era dos “filmes-anti-depressivos”, tão suaves e tão equívocos como a filosofia (!) médica (?) que confunde a complexidade da vida interior de cada pessoa com a quantidade, maior ou menor, de pílulas que essa pessoa anda a engolir?...
Não me interpretem mal: Cannes está a ser magnífico, com filmes assombrosos – que pena que o Paranoid Park, de Gus Van Sant, tenda a ser olhado “apenas” como o Elephant 2 –, alguns deles quase descobertas absolutas, como o coreano Secret Sunshine [foto aqui ao lado], de Lee Chang-Dong (um belo estudo sobre uma mulher cujas tragédias familiares a conduzem ao envolvimento com os valores de uma “religiosidade” normativa e castradora).
Mas Cannes está a ser também o festival desse novo tipo de filmes que se fundamentam num programa estratégico – simultaneamente narrativo e ético – que os faz funcionar como uma espécie de obrigatórios objectos “terapêuticos”.
Caso exemplar entre todos: A Mighty Heart [foto em cima], uma revisão do caso de Daniel Pearl, jornalista do Wall Street Journal (chefe da respectiva delegação asiática), raptado e assassinado em 2002. A Mighty Heart centra-se no drama da mulher de Daniel, Mariane Pearl, baseando-se, aliás, no seu livro de memórias. Angelina Jolie interpreta a personagem num filme em cuja produção está envolvido o seu marido, Brad Pitt. A realização pertence a Michael Winterbottom.
O envolvimento de Brad Pitt e Angelina Jolie com este projecto decorre do seu empenho em defender causas humanitárias e, em particular, em denunciar o terrorismo, procurando criar condições políticas e psicológicas para o seu progressivo desmantelamento. É uma atitude que só me suscita admiração e respeito (e espero que se entenda que esta é uma afirmação em que não coloco nenhuma ironia ou ambiguidade).
Em todo o caso, há qualquer coisa de “compulsivo” no facto de vermos, em Cannes, na conferência de imprensa de A Mighty Heart, Brad Pitt, Angelina Jolie e, como uma espécie de irrecusável caução, a própria Mariane Pearl. Dir-se-ia que já não há espaço para um filme existir já que, em última instância, o próprio filme é apenas o elo mais fraco (porque “ilustrativo”) deste dispositivo de ritualização moral da história do nosso presente. Trata-se tão só de garantir ao espectador que o seu empenhamento o coloca necessariamente do lado bom. Resultado? Certamente alguma atenção mediática para os factos evocados, as suas implicações políticas e a sua gravidade moral. Mas também a redução do espaço social do cinema (e da própria discussão de ideias) a uma “catequese” colectiva onde apenas conta o simbolismo, concreto mas equívoco, de participarmos numa gigantesca cerimónia de suposta purificação.
O mesmo se poderá dizer de alguns outros títulos já passados em Cannes: Sicko, de Michael Moore [foto neste parágrafo], embora neste caso a assunção de um discurso na primeira pessoa, para mais em tom assumidamente panfletário, favoreça um genuíno confronto de pontos de vista; Import Export, de Ulrich Seidl, sobre os marginais sociais da Europa, nomeadamente na Áustria e na Ucrânia; ou ainda Persepolis, de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud, baseado na BD de Satrapi e centrado na sua experiência, por vezes dramática, de cidadã iraniana dentro e fora do seu país.
São, todos eles, filmes eminentemente televisivos – e no sentido mais esquemático de tal “inspiração”: alimentam a ilusão de que é possível colocarmo-nos numa espécie de “exterior” da história colectiva a partir do qual tudo se tornaria transparente e, no final de tudo, redentor.
… Ou como a boa vontade dos filmes pode favorecer a infantilização dos espectadores.
(À suivre).
É impressão minha ou chegámos à era dos “filmes-anti-depressivos”, tão suaves e tão equívocos como a filosofia (!) médica (?) que confunde a complexidade da vida interior de cada pessoa com a quantidade, maior ou menor, de pílulas que essa pessoa anda a engolir?...
Não me interpretem mal: Cannes está a ser magnífico, com filmes assombrosos – que pena que o Paranoid Park, de Gus Van Sant, tenda a ser olhado “apenas” como o Elephant 2 –, alguns deles quase descobertas absolutas, como o coreano Secret Sunshine [foto aqui ao lado], de Lee Chang-Dong (um belo estudo sobre uma mulher cujas tragédias familiares a conduzem ao envolvimento com os valores de uma “religiosidade” normativa e castradora).
Mas Cannes está a ser também o festival desse novo tipo de filmes que se fundamentam num programa estratégico – simultaneamente narrativo e ético – que os faz funcionar como uma espécie de obrigatórios objectos “terapêuticos”.
Caso exemplar entre todos: A Mighty Heart [foto em cima], uma revisão do caso de Daniel Pearl, jornalista do Wall Street Journal (chefe da respectiva delegação asiática), raptado e assassinado em 2002. A Mighty Heart centra-se no drama da mulher de Daniel, Mariane Pearl, baseando-se, aliás, no seu livro de memórias. Angelina Jolie interpreta a personagem num filme em cuja produção está envolvido o seu marido, Brad Pitt. A realização pertence a Michael Winterbottom.
O envolvimento de Brad Pitt e Angelina Jolie com este projecto decorre do seu empenho em defender causas humanitárias e, em particular, em denunciar o terrorismo, procurando criar condições políticas e psicológicas para o seu progressivo desmantelamento. É uma atitude que só me suscita admiração e respeito (e espero que se entenda que esta é uma afirmação em que não coloco nenhuma ironia ou ambiguidade).
Em todo o caso, há qualquer coisa de “compulsivo” no facto de vermos, em Cannes, na conferência de imprensa de A Mighty Heart, Brad Pitt, Angelina Jolie e, como uma espécie de irrecusável caução, a própria Mariane Pearl. Dir-se-ia que já não há espaço para um filme existir já que, em última instância, o próprio filme é apenas o elo mais fraco (porque “ilustrativo”) deste dispositivo de ritualização moral da história do nosso presente. Trata-se tão só de garantir ao espectador que o seu empenhamento o coloca necessariamente do lado bom. Resultado? Certamente alguma atenção mediática para os factos evocados, as suas implicações políticas e a sua gravidade moral. Mas também a redução do espaço social do cinema (e da própria discussão de ideias) a uma “catequese” colectiva onde apenas conta o simbolismo, concreto mas equívoco, de participarmos numa gigantesca cerimónia de suposta purificação.
O mesmo se poderá dizer de alguns outros títulos já passados em Cannes: Sicko, de Michael Moore [foto neste parágrafo], embora neste caso a assunção de um discurso na primeira pessoa, para mais em tom assumidamente panfletário, favoreça um genuíno confronto de pontos de vista; Import Export, de Ulrich Seidl, sobre os marginais sociais da Europa, nomeadamente na Áustria e na Ucrânia; ou ainda Persepolis, de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud, baseado na BD de Satrapi e centrado na sua experiência, por vezes dramática, de cidadã iraniana dentro e fora do seu país.
São, todos eles, filmes eminentemente televisivos – e no sentido mais esquemático de tal “inspiração”: alimentam a ilusão de que é possível colocarmo-nos numa espécie de “exterior” da história colectiva a partir do qual tudo se tornaria transparente e, no final de tudo, redentor.
… Ou como a boa vontade dos filmes pode favorecer a infantilização dos espectadores.
(À suivre).