quarta-feira, maio 16, 2007

Em conversa: Rufus Wainwright (1)

Iniciamos hoje a publicação da versão integral de uma entrevista com Rufus Wainwright, parte da qual foi apresentada na edição da passada segunda feira do DN.

Como foi crescer entre uma família de músicos?
Não é preciso dizer que foi diferente do que aconteceu em muitas das outras famílias com quem contactei. Especialmente depois da minha mãe se ter divorciado do meu pai e regressado a Montreal, que é o lugar mais distante do mundo pop/rock mainstream em solo americano. Fala-se francês e tem o seu quê de insularidade. Fomos para Montreal e mudámo-nos para um bairro muito agradável onde viviam sobretudo banqueiros e advogados. Éramos um pouco exóticos entre aquela gente. Pensavam que éramos muito ricos, que recebíamos grandes somas de dinheiro pelos nossos êxitos número um que tínhamos pelo mundo fora… O que não podia estar mais longe da realidade… A minha mãe tinha de trabalhar constantemente, assim como o meu pai, que estava sempre em digressão, e ambos eram até muito bem sucedidos na industria. Mas trabalharam sempre muito. Toda essa vida intensa de trabalho deu-nos, também, por seu lado, um toque de classe especial à nossa vida caseira. O namorado da minha mãe era o baixista dela, e era muito inglês e boémio. E comportava-se como queria, mesmo num bairro chique como aquele. Usava os vestidos da minha mãe em casa… Era engraçado. Fui abençoado.

Nos meses de escola ficava em casa e ia às aulas, ou acompanhava mesmo assim as digressões dos seus pais?
Fiz um pouco das duas coisas. A minha mãe não queria obrigar-nos a nada, mas sempre gostou de nos mostrar como era o seu mundo. Expor-nos a ele. Porque era óbvio que era um mundo que íamos herdar. Por vezes fomos com ela em digressão pela Europa ou pelos Estados Unidos e Canadá. Mas geralmente ficávamos em casa. Lembro-me de, há pouco tempo, falar com a minha mãe e perguntar-lhe se tinha sido amamentado por ela, ao peito… E ela disse-me que não. Fui durante uma semana, e depois ela partiu em digressão. Estavam fora muitas vezes, mas deram-nos uma vida confortável.

Tem os discos dos seus pais em casa?
Tenho todos os álbuns deles. Na verdade, do meu pai não tenho todos, porque ele já fez mesmo muitos. Mas tenho todos os da minha mãe. Os três primeiros discos dela são, a meu ver, verdadeiros clássicos do género no seu tempo, por enquanto subvalorizados. Muitos aficionados consideram-nos mesmo entre os melhores discos de sempre. Os primeiros do meu pai são também incríveis. É uma grande herança.

Muitas vezes os filhos gostam de se rebelar contra os pais através da música. Como foi consigo. Chocou-os em algum momento e com que música?
Interessar-me por ópera foi, a meu ver, uma opção invulgar, um desvio face ao que era a música da minha família. Eram folkies… E quando digo folkies falo em folkies de primeira classe, interessados em gravações de recolha, interessados nos Staple Singers, ou seja, o anti-Peter, Paul & Mary. Ao dedicar-me à ópera incomodei-os de certa maneira. Mais a fazer-lhes levantar a sobrancelha que outra coisa… Tudo isto porque, na essência, é um mundo diferente do da música folk. A folk vive de simplicidade, da realidade, dos não privilegiados. O elemento que partilham, contudo, e era à volta disso que eu gravitava, era um certo sentido de drama.

Quando é que descobriu a ópera?
Aos 14 anos. Era um pouco novo, eu sei. E, para essa idade, uma opção bizarra. Mas sempre gostei de música clássica. Desde coisas como Pedro e o Lobo ou o Lago dos Cisnes, juntando depois peças e mais peças. Aos 14 anos muitas coisas tornaram-se visíveis na minha vida. Uma delas o facto de ser homossexual. Outra a consciência de que a sida estava a devastar “a minha” gente. E depois o reconhecimento de que, no mainstream, a música que se fazia era seca e desinteressante. Foi inevitável essa minha ligação à ópera, esse vício. E aconteceu da noite para o dia. Um dia escutei o Requiem de Verdi e umas árias de Pucinni e fiquei agarrado. Durante tempos não ouvi outra coisa e, de certa maneira, aquela música ajudou-me a definir a minha missão, a de comunicar essa minha paixão aos outros. O que não quer dizer que queira por todo o mundo a ouvir ópera. A ópera é para ser amada, e serve gostos muito concretos, muito individualistas. Mas muita da emoção e intensidade, muita da sua finesse, pode ser interpretada num contexto de música pop. E não necessariamente naquele registo usado pelo Freddie Mercury e a Monserrat Caballé, que até me parece bem piroso. A ópera é uma das formas musicais mais sofisticadas e refinadas.

Essa ligação à ópera impediu-o de ter e adorar os habituais ídolos rock?
Sim, é verdade. Os meus ídolos quando era adolescente eram diferentes. Adorava Kurt Weill, Verdi, Maria Callas…

E ligava-se também a outro tipo de livros e filmes?
Sim, também. Um dos momentos mais marcantes da minha vida foi a primeira que vi o La Dolce Vita de Fellini. Tinha uns 15 anos, não mais. Vi-o umas sete vezes… E baseei um pouco a minha vida nesses dias na personagem da Anita Ekberg, uma safada rica… A personagem teve uma forte impressão em mim. Tão cool, tão calma, tão depressiva…

(continua amanhã)