Durante a primeira etapa da sua carreira criativa, dedicou tempo a, sobretudo, formas mais simples, da canção à música de cena, dessa época datando também muita da sua obra para piano. As composições de maior amplitude (entre as quais uma ópera, Penélope) surgiram depois dos 60 anos. Porém, aquela que é por muitos apontada como uma das suas obras de referência, criou-a ainda antes de chegado aos 50 anos. Data de 1887 (se bem que a versão final tenha sido apenas apresentada em 1900) e é um dos mais belos exemplos de música coral de todos os tempos. Trata-se da sua Missa de Requiem, que acaba de regressar aos escaparates das novidades em CD numa assombrosa gravação dirigida por Michel Corboz, à frente da Sinfonia Varsovia e do Ensemble Vocal de Lausanne.
O Requiem de Fauré tem uma história atribulada e, como tantas outras obras-primas, uma gestação por etapas, de escrita e reescrita, em busca da ideia total. Ao contrário de tantas outras missas pelos mortos, Fauré começou a trabalhar num Requiem por nada mais que... gosto. Por prazer (sendo hoje praticamente certo que as mortes da sua mãe e pai, respectivamente em 1885 e 1887, não estarão ligadas a esta vontade). O próprio esclareceria, mais tarde, que este desafio serviu ainda para procurar uma outra maneira de acompanhar a despedida dos mortos, cansado que estava (o organista) de assinalar esses momentos segundo cânones sempre iguais.
Um ano depois de lançadas as primeiras ideias (que logo evidenciavam uma franca atitude melodista, assim como uma tendência para mergulhos no obscuro, na introspecção), tinha pronta uma primeira versão, para pequena orquestra. E assim a estreou em Paris, em 1888. Intenso trabalho conduziria a música no sentido de uma mais eloquente e grandiosa identidade que, quando apresentada em 1900, valeu ao compositor algumas críticas pelo tom invulgarmente positivo e luminoso que sugere. Chegaram mesmo a descrever a missa como uma espécie de canto de embalar pelos mortos, o que de Fauré mereceu resposta à altura da provocação, limitando-se a explicar que, para si, a morte não era mais que uma entrega livre, uma aspiração ao maravilhoso da transcendência e não uma transição pela dor. Ou seja, tudo menos uma experiência de dor e melancolia terminal. E, convenhamos, o seu Requiem é expressão evidente dessa atitude invulgar perante a morte, a paz sublime da voz solista no Pie Jesu ou do arrebatador coro no Agnus Dei a sublimar medos e angústias de outras peças mais tensas, “teatrais” e opressivas que a história nos foi revelando em tantas outras ocasiões.
Mais de cem anos depois, a missa pelos mortos de um compositor para quem o conceito de Deus se confundia com o de Amor é hoje vista sem o filtro de quem criticava, na época, a sua não-crença. Na verdade, é das mais belas dádivas de um mortal à música religiosa, expressão de uma visão pessoal sobre a fé por alguém que via a morte como apenas uma personagem suave e discreta. Como ele próprio se via a si mesmo... Tanto que a 8 de Novembro de 1924, no dia do seu funeral, foi esta a música que acompanhou a descida do caixão à cripta na Madeleine.
Na espantosa edição da Mirare, à Missa de Requiem (opus 47), juntam-se outras peças de música coral religiosa de Fauré, nomeadamente a Ave Verum (opus 65) e Ave Maria (opus 67), ambas para vozes femininas e orgão e o Tantum Ergo (opus 56), para coro e órgão. No Requiem são solistas Peter Harvey (barítono) e Ana Quintans (soprano). Nota final para a capa, magnífica, explorando um óleo de Emilie Renouf: La Veuve de L’île de Sein.