Abre hoje mais uma edição do festival Indie Lisboa. São várias as sessões que o Sound + Vision recomenda, a primeira das quais representando, de resto, a "abertura oficial". Trata-se de Life in Loops, filme-concerto no qual a música dos Sofa Surfers caminha sobre imagens "remisturadas" do assombroso documentário Megacities, de Michael Glawogger, filme que deu que falar quando foi exibido numa edição anterior do festival e que, recentemente, chegou ao DVD entre nós. Life In Loops é, na essência, um desafiante exercício eminentemente estético, as imagens "repensadas" para servir um conceito que muito deve agora à música dos Sofa Surfers. Porém, mesmo sem a cuidada contextualização que fazia de Megacities um olhar-retrato sobre uma colecção de realidades actuais em regime urbano, não deixa de querer mostrar figuras e espaços, inevitáveis conclusões (que, mais sugeridas que condicionadas, afloram ao gosto e sensibilidade de cada um). No final, apenas uma ressalva: a pobreza extrema não é bela, por mais deslumbrantes que sejam as imagens e sons que a retratam (ou usam em nome da arte). Para os interessados, fica um excerpto de uma sequência em Nova Iorque:
Life In Loops
Realização: Timo Novotny
Sessão no Cinema São Jorge, pelas 21.30
Falar de Life In Loops, obriga-nos a recordar Megacities, o filme de 1998 que está na base desta aventura de som e imagem: aqui o recordamos:
Life In Loops
Realização: Timo Novotny
Sessão no Cinema São Jorge, pelas 21.30
Falar de Life In Loops, obriga-nos a recordar Megacities, o filme de 1998 que está na base desta aventura de som e imagem: aqui o recordamos:
Uttam dorme nas traseiras de um restaurante numa rua esquecida, igual a tantas outras, um entre os mais de 13 milhões de anónimos da gigantesca metrópole que é Bombaim. Durante o dia trabalha, cesto abaixo, cesto acima, na descarga de peixe numa das docas. Mas à noite, sim, aí vive. Porque, como diz, “viver é ver filmes”. E não perde um, sempre que pode. Uttam é protagonista de uma entre as muitas histórias de gente real que Michael Glawogger observou e nos revela em Megacities. O filme caminha pelas ruas das traseiras de quatro grandes cidades (Bombaim, Moscovo, Cidade do México e Nova Iorque), nelas encontrando vidas que, como em tempos descreveu o cronista Joseph Mitchell, conhecem “anos de profunda intimidade com a pobreza”. Vidas precárias, tendo a sobrevivência como meta possível. Vidas como a de Baba Khan, tintureiro de Bombaim, que se veste involuntariamente com o pó da tinta que recicla numa peneira, conterrâneo de Shankar, o homem que todos os dias corre a cidade mostrando pedaços de filmes, cozidos à mão, num velho bióscopo. Ou Modesto, vendedor patas de galinha na Cidade do México, que nos explica como se prepara este “pitéu” que há anos lhe assegura o ganha-pão. Mais à frente vemos Rubio, da mesma cidade, um ladrão “profissional” que procura que nada falte à família. Ou ainda mexicano, Nestor, respigador nas lixeiras no subúrbio. Em Moscovo conhecemos Kolya, um rapaz sem-abrigo que vive em bando quase selvagem nas ruas da cidade, a velha capital imperial que visitamos numa noite em que nos é revelado um centro de desintoxicação de alcoólicos “perdidos”. De regresso ao México acompanhamos Cassandra, uma stripper roliça que dança e se deixa tocar a troco de dinheiro num teatro decadente de periferia, não muito diferente sendo a vida de Toni, falso prostituto nova iorquino que assalta os clientes e ganha mais a vender drogas que alugando o corpo à hora... Em quase todas as histórias, resignadas, o sonho contudo marca presença. O sonho que alimenta a sobrevivência, a única resistência possível a verdadeiras vidas em loop.
Sob espantosa direcção fotográfica de Wolfgang Thaler, Megacities é como o Powaqqatsi de Godfrey Reggio sem a necessidade de “servir” a música de Philip Glass ou um Baraka, de Ron Fricke, despido da aura new age que a respectiva banda sonora lhe imprimia. Curiosamente, a menos que parta dos espaços filmados, a música quase não existe em Megacities. O filme é cru e verdadeiro. Por vezes pontualmente encenado (sem que tal contrarie a pulsão “realista” que estrutura o filme). Como se de uma exposição de fotografias (com som e movimento) se tratasse. Poucas palavras, o texto muitas vezes apenas no contexto.
(Este último texto foi originalmente publicado na revista 6ª)