sábado, janeiro 06, 2007

A vida num só plano

Imaginemos um mundo plano. Cheio de vida, todos os seus habitantes sendo figuras planas, azáfama a duas dimensões. Esta é Flatland, a terra imaginária que Edwin A Abbott (o “A” representando outro Abbott) criou na novela que publicou em 1884 e que hoje não só é uma referência clássica para muitos autores (sobretudo nas áreas da ficção científica) como ainda é frequentemente usado como leitura complementar a discussões sobre o conceito de “dimensão” e as formas (ou capacidade) para as imaginar e visualizar. Exige ginástica geométrica no assimilar da conceptualização de realidades bidimensionais, nomeadamente a forma como se reconhecem, distinguem e movimentam os diferentes habitantes de Flatland, entre si nada mais podendo ver que linhas e pontos (afinal, vivem num plano). Contudo, Flatland não é um mero exercício intelectual para prazeres matemáticos. É, acima de tudo, uma expressiva sátira aos costumes da Inglaterra Victoriana, explorando noções de estratificação social e hierarquia, desmontando os códigos quase misóginos da ordem instituída e levantando, no fim, questões do foro religioso, na forma de um conjunto de dogmas que negam a existência de outras dimensões, e consequente exclusão ou morte para quem defenda tais heresias.

Em Flatland, quantas mais faces tiverem os polígonos, mais elevado é o seu estatuto social, o topo da escala representado pelos círculos. Na base da sociedade vivem os triângulos isósceles, quanto mais agudo o ângulo entre as duas faces iguais menores sendo as suas capacidades intelectuais (destino certo, contudo, entre as forças da ordem). Cada nova geração de triângulo isósceles ganha meio grau nesse ângulo, na meta o ser equilátero. Aqui, como nos demais polígonos regulares, o crescimento social é mais rápido, a cada geração surgindo um novo lado. Filho de quadrado é pentágono. O neto será hexágono... Mas isto apenas entre os homens, já que as mulheres são, sempre, rectas. Na verdade, segmentos de recta. Ou, para sermos mais precisos, paralelogramos com duas faces praticamente reduzidas a um ponto.
A ordem social de Flatland não permite a vida aos polígonos irregulares e obriga as mulheres a códigos de conduta rígidos, sob pena de morte. Já aconteceu terem elas dizimado as famílias, perfurando tudo e todos por acidente ou vingança... Flatland relata a história de um respeitado e discreto quadrado (que já sonhara com a Lineland, uma terra a uma dimensão) que um dia é visitado por uma esfera (que, naturalmente, vê como círculos de diferentes dimensões consoante esta cruza o plano). A esfera retira-o do plano, leva-o a Spaceland, transformando-o no portador de uma boa nova, a da terceira dimensão, que, contudo, terá extrema dificuldade em divulgar entre os seus porque não só a lei o proíbe, como a capacidade de a visualizar é abstracção quase impossível para quem só existe num plano.
P.S. Texto originalmente publicado na revista '6ª', do Diário de Notícias

Está neste momento em produção Flatland: The Movie, uma terceira adaptação do livro de Edwin A. Abbott ao cinema, em desenho animado, com realização de Jeffrey Travis, com vozes como as de Martin Sheen ou Kirsten Bell, entre outros. Ainda não há datas de estreia especificadas, mas o trailer já se pode ver aqui.

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