sexta-feira, janeiro 05, 2007

Em conversa: Julien Temple (3)


Terminamos hoje a publicação de uma entrevista com o realizador britânico JulienTemple, centrada no seu mais recente documentário Glastonbury: The Movie.

O filme mostra um ponto de vista claro sobre a transformação progressiva do festival num evento industrial... Os muros, a segurança... O espírito original deu lugar a um negócio?
Sem dúvida! Esse era o subtexto principal do filme, o contraste entre o que o festival era quando começou e aquilo em que se transformou. Usando o festival como uma espécie de nave com fuselagem de espelhos que voa ao longo de três décadas e reflecte o que se passa também no mundo fora do festival. O mundo que também vive, naquele local, os restantes 360 dias do ano e que também mudou de uma forma incrível. Por isso o filme traduz também uma meditação sobre as mudanças no mundo e como estas se reflectem no festival. Assim como se reflectem em nós mesmos enquanto espécie. São mudanças muito rápidas... Talvez venhamos a ser a primeira espécie a projectar a sua própria extinção... O festival levanta algumas destas questões logo desde os anos 70. Questões sobre o que estamos a fazer com a comida que comemos, o planeta em que vivemos... Essa cultura, ligada ao festival em 1971, foi então motivo de alguma risota noutros lugares. E agora os políticos acotovelam-se para chamar a si ligações a esta herança.

Incomodam-no como espectador regular destes 35 anos do festival, todas estas mudanças “industriais” recentes?
Apesar de tudo penso que, comparado com Reading e 90 por cento dos outros festivais, ainda há aqui muitas marcas do espírito original. Essas outras são como manifestações de fé para beber cerveja. O grande perigo para a sobrevivência do espírito do festival, mais que a criação da vedação e do que esta trouxe, é a presença de certas manifestações comerciais no seu interior. Há uma contaminação dentro de portas.

Fala de acções promocionais?
Há quem queira colonizar os últimos espaços livres, espaços culturais, com as suas marcas comerciais e avidez. Ainda há ali ligações às origens... Há ainda um sentido de comunhão, de ajuntamento num espaço único, onde cada um pode ser como é... E quanto mais se sobe pelos montes, e avança pelos campos verdes, menos se vê dessas acções comerciais. Há ainda zonas livres no festival. As de confusão maior já não o são, claro. Basta ver onde se acumula o lixo... Nessas zonas onde não há publicidade, há mais lixo acumulado... Nas outras, está tudo limpo.

A constante mudança de lugares, tempos, planos de música e de espectadores, parece traduzir a efervescência e confusão característica dos festivais...
É verdade. Queria tentar sugerir o que se sente quando se está num festival. Como se fosse um fim-de-semana que durou 35 anos, com lama, sol, com momentos vivos, outros aborrecidos. Queria que quem visse o filme sentisse que dele saísse com a sensação de lhe ter sobrevivido. Como acontece quando regressamos de um festival.

E não faltam os “cromos” típicos de Glastonbury. Cavalheiros de fraque à Churchill, outros mascarados, saudáveis loucuras...
Sim, o humor, a anarquia, a sátira, sabermos rir de nós mesmos. Isso também faz parte desta experiência.
Entrevista originalmente publicada na revista '6ª', do Diário de Notícias