Babelismo s.m. 1 tipo de construção ou de realização que, pelo seu gigantismo e vulnerabilidade, lembra a torre de Babel 2 mistura de línguas, estilos, modas, etc.; confusão 3 ausência de rigor metodológico ou de unidade no domínio da inteligência (...) (in Dicionário Houaiss)
Com o Globo de Ouro de melhor filme em língua estrangeira atribuído a Cartas de Iwo Jima, de Clint Eastwood, rasgou-se uma paisagem insólita no interior do actual cinema made in USA. Subitamente, a produção de inequívocas raízes americanas surge com o cognome de "estrangeira". E assistimos a essa cena desconcertante: na qualidade de produtores de Cartas de Iwo Jima, Eastwood e Steven Spielberg — verdadeiros ícones de Hollywood, pelo menos nas últimas três décadas — surgiram no palco dos Globos associados a um objecto, supostamente, de outras paragens.
Sabemos por que tal acontece. As regras dos Globos (tal como as dos Oscars) definem a condição de filme estrangeiro a partir da língua predominantemente falada nos diálogos, não em função da origem dos respectivos financiamentos. Daí que Apocalypto, de Mel Gibson, falado em língua maia, estivesse também nomeado na mesma categoria. Em todo o caso, não se trata apenas de avaliar o rigor (cada vez mais) discutível destas regras da Associação da Imprensa da Estrangeira e da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Trata-se, isso sim, de sublinhar que a distinção do filme de Eastwood acaba por ser um esclarecedor sintoma dos efeitos de miscigenação e globalização que, inevitavelmente, marcam o actual cinema dos EUA.
Como é óbvio, o símbolo exemplar desta conjuntura é o título distinguido com o Globo de Ouro de melhor filme (drama). Ou seja: o bem chamado Babel, de Alejandro González Iñárritu (foto em cima) — porque é uma coprodução (EUA/México), porque encena várias histórias geograficamente distantes, mas visceralmente cúmplices, porque usa actores de diversas nacionalidades (o americano Brad Pitt, a australiana Cate Blanchett, a mexicana Adriana Barraza, etc.), enfim porque nos dá a ver um planeta unido e desunido pela colisão das suas infinitas micro-narrativas. Provavelmente, não é possível compreender o estado actual do cinema americano sem ter em conta este estado babélico da criação, com tudo o que isso implica, ou pode implicar, de confusão e energia, unidade e fragmentação.
Claro que o cinema americano nunca foi alheio a complexos processos de integração de criadores, estilos ou tendências vindos das mais variadas paragens "estrangeiras". Em boa verdade, como com-preender o classicismo de Hollywood sem ter em conta as muitas e variadas marcas nele inscritas por autores provenientes da Europa? Apenas um exemplo: como percorrer as décadas de 1940/50 do film noir — de Fritz Lang a Otto Preminger, passando por Jacques Tourneur (na foto: Out of the Past, 1947) — sem lembrar as marcas que o expressionismo alemão deixou na sua iconografia e também no seu desencanto moral?
Curiosamente, não faz sentido julgar que este é um processo num só sentido, por assim dizer obrigando o cinema americano a confrontar-se com tudo aquilo que, da estética à política, possa estar no exterior dos seus domínios mais óbvios. Vale a pena referir, a esse propósito, as declarações de Eastwood à imprensa, logo depois de ter recebido o seu prémio. Assim, falando do trabalho com os actores japoneses, o produtor/realizador referiu que, com surpresa, descobriu que muitos deles desconheciam os factos relacionados com os combates pelo controlo da ilha de Iwo Jima, em finais da Segunda Guerra Mundial. Afinal de contas, Cartas de Iwo Jima (estreia portuguesa: 22 de Fevereiro) é também indissociável da sua "primeira parte": As Bandeiras dos Nossos Pais, precisamente a versão "nacional" (americana) dos acontecimentos evocados em Cartas de Iwo Jima.