Esgotar Michel Houellebecq no rótulo fácil (e mediático) de “polémico” não só é visão redutora como complexada sobre uma obra que, apesar de relativamente curta, denuncia já uma identidade, como poucas, profundamente descrente no homem e no seu futuro enquanto espécie dominante sobre a Terra. As visões de Houellebecq não revelam a dimensão filosófica da obra de um Aldous Huxley, nem na sua escrita se reconhece o carácter visionário desse autor fundamental na definição de uma ideia de contracultura popular nos anos 60. Mas, com Partículas Elementares e, mais recentemente, A Possibilidade de Uma Ilha, o escritor francês constrói dois romances, numa modalidade algo próxima da ficção científica, nos quais levanta uma eventual necessidade do homem dar lugar a uma outra espécie dominante (tese naturalmente desconfortável para quem “vive bem” neste canto do universo). Desempenhando a engenharia genética e a noção de clonagem um papel fundamental no quadro científico que permite essa troca.
E, aqui, onde mora então a “polémica”? Por um lado, talvez, na epiderme de narrativas altamente sexualizadas e claramente misantropas. Por outro, na frequente crítica, assumida, a figuras do presente e pela ostensiva dose de ofensas ao politicamente correcto. Mais ainda, os comentários às grandes religiões monoteístas, nomeadamente o Islão (que lhe valeu já um processo em tribunal). Isto sem esquecer soundbytes assassinos para apetites de jornal (como quando se afirma um “anarca de direita”). E, claro, todo um conjunto de visões negativas de uma sociedade decadente. A sua, que critica na mediocridade de gentes e instituições, hábitos e modas.
A esmagadora maioria dos textos publicados sobre Michel Houellebecq mostra como este é um autor de paixões e ódios (e medos). A comichão ideológica de certas críticas cépticas ou o entusiasmo apaixonado no sentido inverso são apenas pólos opostos de uma abordagem a um nome que, aos poucos, se afirma todavia como incontornável figura na nova literatura francesa (afinal a sua transferência para a Fayard foi notícia quase ao jeito dos dinheiros dos futebóis). Mais um comentador que um pensador, mais um designer de histórias que um criador de personagens profundas (com as quais nos possamos identificar), Houellebecq é um filho da mesma sociedade que critica. Uma alma magoada que grita ao mundo a sua falta de amor-próprio enquanto espécie, a sua potencial pulsão marginal, a sua absoluta falta de fé no futuro… Ou será, antes, este todo um apelo a uma nova noção de fé, recorrendo à negação como estímulo à futura adesão?
Michel Houellebecq escreve sempre, e exclusiva e exaustivamente, sobre si. Todas as suas personagens são extensões ou materializações da sua história e das suas ideias. As suas personagens revelam desejos (talvez mais reprimidos que praticados). Os seus romances são projecções de uma atitude de desencanto, manifestos de uma “história de vida” de rejeição e inadequação.
(continua amanhã)
PS. Texto originalmente publicado na revista '6ª', do Diário de Notícias
PS. Texto originalmente publicado na revista '6ª', do Diário de Notícias