sábado, dezembro 23, 2006

Filmar a guerra e quem a faz

Quase sete anos depois de Inferno, Joaquim Leitão regressa à Guerra Colonial, desta vez enfrentando directamente a memória dos actos (ficcionais, entenda-se) e não as suas consequências. 20.13 acontece num só dia, acção fechada num pequeno quartel no Norte de Moçambique. É véspera de Natal, em 1969. Uma patrulha regressa com um prisioneiro. Um helicóptero traz, para a consoada, um jovem capelão e Leonor, a mulher do Capitão da unidade. Um presente indesejado, rapidamente se conclui, em pouco tempo sendo sugerida uma ligação “proibida”, naturalmente secreta, do oficial com um jovem enfermeiro... Os silêncios do Capitão (Adriano Carvalho), na verdade, escondem ainda mais segredos, deles nascendo o vórtice de acontecimentos que farão desta uma noite agitada, acidentada, fatal, contrariando em tudo a tradicional trégua que, a 24 de Dezembro, faz esquecer muitas guerras por algumas horas. Central à acção é, todavia, o moderado alferes Gaio (Marco d’Almeida) que, apesar de sabida a sua posição contrária ao conflito em que se vê mergulhado, cumpre com brio e honra a sua missão.
Na consoada um soldado canta a (oportuna) Menina dos Olhos Tristes de José Afonso - editada em 1969, canção que relata a saudade de um “soldadinho que não volta / Do outro lado do mar”. Logo depois, a mulher do médico (Carla Chambel), provocadora, recria Ele e Ela de Madalena Iglésias, abrindo primeiras feridas numa noite que será cortada por um violento ataque inimigo, assassinatos acompanhados por obscuras frases tiradas da Bíblia (sem quaisquer relações aos “códigos” e “mistérios” que hoje inundam as livrarias, sublinhe-se), medos e outras revelações. Em poucos minutos a linha dos acontecimentos surge recheada de nós que, com algum engenho narrativo, Joaquim Leitão transforma numa sequência de acontecimentos que o realizador mostra saber transformar em espiral empolgante, realista, desenleando-os, cautelosamente, num desfecho que consegue surpreender.
Naquele que é o melhor filme de Joaquim Leitão desde Duma Vez Por Todas (de 1986), encontramos um cinema que mostra como é possível conciliar uma boa história com o lançar de debates e reflexões, como se alia um sentido de verosimilhança na reconstituição histórica (factual, física e sociológica) a uma ideia de cinema de acção com marcas de realismo relativamente invulgares. Exagerada parece, apenas, a colecção de sotaques entre soldados e oficiais, como que a sugerir um “grande” Portugal concentrado num pequeno quartel no meio do nada. Destaque-se, sobretudo, uma soberba direcção de actores, frequentes sendo os exemplos de trabalho de composição de personagens acima do que nos habituaram em outros momentos. Direcção artística igualmente sóbria, peça fundamental no jogo de verosimilhanças que se pretende. E aplauso absoluto para uma soberba banda sonora de António Emiliano (um dos melhores dos mais “esquecidos” músicos portugueses) e um exemplar trabalho de mistura de som por Branko Neskov.
Texto publicado na revista '6ª' do Diário de Notícias

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