Para quem disse, ainda há poucos anos, que não voltaria à música, um regresso pode ter o sabor, mesmo que trabalhoso e doloroso, a dificuldade superada. Durante anos, vimo-la a editar alguns dos mais belos álbuns que o catálogo da 4AD já conheceu. Mas de vendas progressivamente menos vistosas e outras mais complicações profissionais num cabaz de contrariedades conduziram-na de volta ao mundo dos empregos “normais”.
Desde finais de 90, abandonada a carreira, trabalha na Book Soup, uma das mais carismáticas livrarias de Los Angeles, em plena Sunset Boulevard, a poucos passos da espinha que cruza parte da cidade de norte a sul que se chama La Cienega. Mas a música não se libertava do seu corpo. Trabalhava de dia, compunha de noite, por vezes gravava de manhã, antes do pequeno-almoço rápido e viagem, à última hora, para chegar à livraria. Assim compôs e gravou Lullaby For Liquid Pig, sublime álbum editado em 2003 pela ARTISTdirect. Mas a sorte uma vez mais não esteve consigo, e a editora implodiu pouco depois, o álbum hoje peça de coleccionador nas lojas, todavia disponível para download legal em alguns sites. A livraria continuou a ser o seu ganha-pão, e a música voltou a nascer em noites de menos sono. E assim, três anos volvidos sobre um álbum de excepção com carreira editorial de pura desilusão, regressou este ano com novo disco e nova editora. O álbum chama-se In The Maybe World. E a sua casa é a pequena, mas estimulante Young God Records, editora de Michael Gira, a voz que em tempos escutávamos frente aos Swans. “Esta editora faz-me lembrar a 4AD”, diz-nos, entusiasmada, Lisa Germano. A Young God lembra-lhe a face “artisticamente orientada” da editora que a fez figura de referência entre os cantautores da geração de 90. “Já os meus dias na Capitol”, há 15 anos atrás, “esses foram mais difíceis”, recorda, referindo-se à etapa breve que viveu numa multinacional.
Lisa Germano, hoje com 47 anos, está novamente concentrada na sua carreira musical. Abandonou a livraria e começou a marcar pequenas actuações. “Mas de vez em quando tenho de voltar à livraria temporariamente, porque não tenho dinheiro. Deixei a posição fixa que lá tinha e hoje trabalho em substituição de quem não está presente. Não tenho horário… Gostaria muito de viver da música, mas não consigo”, confessa. Lisa Germano vinca mais ainda esse sonho impossível ao dizer que “ninguém precisa hoje de comprar discos, porque se pode fazer o download de tudo!”. E continua: “não me estou a queixar, mas é a realidade”. À distância do momento em que anunciou o afastamento da música (que na realidade não foi definitivo, como já vimos), Lisa reconhece que, na verdade, o que abandonou foi “a máquina”. Ou seja, “uma vida sem manager, sem editora, vivendo os momentos. E assim vivo bem. E até parece que estou a fazer discos diferentes, trabalhando desta maneira. Não sei se é uma boa ou má opção, mas estou a fazer discos mais íntimos. E não há razões maiores para que assim seja. Há, até, razões bem práticas: como não tenho dinheiro não posso contratar mais músicos para tocar comigo. Por isso crio o meu próprio mundo em casa. E os dois últimos discos nasceram assim. Continuo a trabalhar na minha música de noite, e faço os acabamentos de manhã. Começo de noite, procuro expressar algo e, por vezes, perco-me… Mas os meus discos nasceram todos assim, sempre de noite”.
Apesar de pontualmente ter vivido um episódio de sucesso indie com Geek The Girl, Lisa Germano nunca foi campeã de vendas. “Nunca vendi muitos discos”, confessa sem pruridos. “E a cada novo disco vendo sempre cada vez menos”. Mas essa não é preocupação que tenha entre as que mais dominam o seu tempo. Vender muitos discos nem é um sonho seu, embora reconheça que “seria engraçado fazer parte do mundo pop, ter vendas maiores…” E, sem hesitações, lembra que gostou desse mundo quando o viveu com outras pessoas, nos tempos em que fazia parte das bandas de palco de John Mallencamp e Simple Minds, na década de 80, David Bowie ou os Smashing Pumpkins mais tarde. Lisa recorda também com agrado os dias, de meados de 90, em que tocou com os Eels (de resto, com passagem por Lisboa em memorável concerto no Lux, findo o qual seguiu noite dentro, a ouvir fado). “Nesses momentos temos de criar o nosso mundo de diversão ao ser pateta. Há uma ironia trágica nesse mundo pateta…”. Esses episódios levaram-na a tocar para públicos distintos, de gostos por vezes bem diversos daqueles que tem quem se identifica com a sua música, como por exemplo recorda dos fãs de John Mallencamp.
(continua amanhã)
PS. Entrevista originalmente publicada na revista '6ª', do Diário de Notícias