quarta-feira, novembro 22, 2006

I Predict A Riot

Três anos antes do Verão do Amor, um outro, menos pacífico, encheu cabeçalhos dos jornais britânicos com manifestações igualmente nascidas da emergente cultura jovem. A violência decorria de encontros, rapidamente transformados em cenas de pancadaria forte e feia, e não muito diferente do hooliganismo que hoje associamos ao futebol, entre grupos “culturalmente” rivais: mods e rockers. E culminou com uma série de distúrbios nas cidades à beira-Mancha de Brighton, Margate e Broadstaris e na zona de Hastings. Directamente nascido de Quadrophenia, um álbum dos Who de 1973, sobre dois dias na vida de um jovem mod, um filme com o mesmo título fez dos distúrbios em Brighton a sua sequência de referência. E com o tempo acabou reconhecido como uma das mais realistas representações do modo de vida dos mods e da cultura jovem da Inglaterra desses dias em que a revolução sexual e o rock’n’roll mudavam atitudes a velocidade de cruzeiro.

Surgidos em finais de 50, os mods eram jovens de classe média e popular, obcecados pelos novos estilos, sempre impecavelmente vestidos com fatos completos, cultores de jazz ou rhythm’n’blues (e, mais tarde, o som “beat” muito característico na Inglaterra de meados de 60), por oposição à contaminação directa do rock’n’roll americano idolatrado pelos rockers, cabedais negros e motos como iconografia de identificação, descendentes directos dos teddy boys ingleses dos anos 50. Culturas da aparência, com pouco mais de definido que roupas, cortes de cabelo, estilo de motos adoptadas e discos adorados, mods e rockers elegiam os seus deuses, os The Who sendo uma das bandas que, juntamente com os Small Faces ou Yardbirds, mais representou o ideário mod.
O álbum Quadrophenia (o título traduzindo as quatro personalidades distintas do protagonista, cada qual reflectindo um dos elementos dos Who), uma ópera rock, serviu, em 1978, de ponto de partida para o guião do filme com o mesmo título que assinalou a estreia na realização de Franc Roddam, num elenco onde se destacava o actor Phil Daniels (Jimmy) e se revelavam figuras como Sting e Toyah Wilcox, representantes da nova geração de músicos, garantindo pontes de atenção dos públicos de 70 para uma história de 60.

Tal como o disco, o filme toma por objecto as angústias da adolescência e a violência inerente a algumas das suas manifestações, nele se reconhecendo claramente a genética de uma banda que, como poucas, sobre criar hinos destinados a uma geração. Esta é a história de Jimmy que, como tantos outros mods, vive a semana num emprego banal, aí ganhando os trocos para as festas, anfetaminas e gasolina que o fim-de-semana exige. Por amigo de infância tem um rapaz que se fez rocker, debate que acaba todavia secundarizado perante o foco dirigido aos incidentes em Brighton, cenas de violência e caos na rua entre mods e rockers que acabam em tribunal e pesadas multas a pagar. Frente ao juiz destaca-se, pela pose, Ace Face (Sting), um rapaz de cabelos loiros e ar cool que Jimmy logo toma como expressão maior do sonho mod. A revelação da sua verdadeira identidade (não mais que a de um paquete em hotel de luxo) será, depois, a última gota num processo de desabamento de todas as anteriores certezas mod, a realidade por trás da aparência a obrigar Jimmy a um confronto derradeiro com o vazio da sua vida.













A presente edição em DVD tem em conta o estatuto de culto que Quadrophenia ganhou, justificando ser hoje apontado como um dos paradigmas do cinema retratista das culturas jovens nascidas do pós-guerra. Não só o filme pode ser lido em confronto com os esclarecedores comentários do realizador e dos actores Phil Daniels e Leslie Ash, como, num DVD adicional, são apresentados dois documentários que contextualizam a história e filme nos cenários que retratam. É particularmente interessante Um Estilo de Vida: Making of Quadrophenia, documentário sobre a relação do filme com as verdades da cultura mod, e com capítulos que tomam por títulos citações ou nomes de discos ou canções de bandas como os Blur ou Kaiser Chiefs. Ou seja, herdeiros de uma teenage angst que o tempo não apagou, antes, readaptou.
(Texto originalmente publicado na revista '6a', do Diário de Notícias)

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