quarta-feira, novembro 15, 2006

Em conversa: Pop Dell' Arte (3)


Conclusão, hoje, da publicação de uma versão editada de uma entrevista com os Pop Dell'Arte apresentada numa edição do suplemento DN:música em Junho de 2005.

A reflexão sobre a sociedade, as culturas e a afirmação sexual são os três pilares temáticos da obra dos Pop Dell'Arte?
João Peste - Chamava-lhe mais, talvez, libertação sexual... Essa é uma arrumação possível, sim. Faz sentido, mas não o tinha pensado assim. As coisas foram acontecendo. Se me perguntassem quais seriam as preocupações temáticas dos Pop Dell'Arte diria que também a resistência, a transformação. E sempre houve, de facto, uma carga forte relativamente à identidade e à orientação sexual, que tem a ver com o próprio contexto. Em Portugal as coisas continuam a ser tabu, e houve até situações ridículas de censura sobre coisas que fizemos, desde a capa do Illogik Plastik a letras... Situações que considero incompreensíveis.

A obra musical dos Pop Dell'Arte é muito versátil, mas há duas ideias que a marcam: a colagem (antes mesmo do conceito de samplagem vulgarizado) e o ready made . Conceitos introduzidos na música portuguesa pelos Pop Dell'Arte...
JP - Não tinha pensado nisso assim... Há um cheirinho ou outro de colagem no Hardcore dos GNR. Em relação ao ready made , não.

De onde veio a ideia de importar o conceito de colagem, habitualmente mais ligada à imagem (artes plásticas, cinema, fotografia) ou letras, para a música?
JP - A responsabilidade, aí, até cabe bastante a mim. Eu não era músico. Não tinha formação musical como o Zé Pedro ou o Luís San Payo. Por isso não foi uma estratégia, quase uma consequência. Quando me juntei às pessoas de Campo de Ourique queria participar nas bandas que se estavam a formar, e não sabia muito bem a fazer o quê. Não tinha formação nem um instrumento com o qual me identificasse. Se tivesse de optar por algum seriam as teclas, porque nunca me identifiquei muito com os instrumentos de cordas. São pesados e desconfortáveis (risos)... Mas achei sempre que poderia fazer música. Aliás, isso é uma consequência ideológica do punk rock. Depois, nos anos 80, embora directamente não pareça ligado a esta ideia, o conceito que os Einstuerzende Neubaten marcaram, mais conceptualmente que em termos de influência de sonoridade. Obviamente que havia uma tradição de arte moderna em relação à colagem, que apareceu em 1912 com o Braque e o Picasso. O conceito depois foi desenvolvido pelos futuristas, pelos dadas, pela pop art. Os Pop Dell'Arte tinham por referência esses movimentos artísticos, porque éramos um projecto arty , pelo menos da minha parte. Isto porque não me propunha a entrar no meio musical por ter determinados dotes musicais, mas pelas ideias que poderia ir buscar a outras áreas. Tinha frequentado o conservatório a estudar teatro, estava em sociologia, tinha determinadas ligações às artes plásticas e à literatura. E apesar desse lado arty , os Pop Dell'Arte nunca se assumiram como um projecto elitista, de alta cultura, mas sim um projecto pop. E, dentro da música, ligado ao rock. Posteriormente, houve a revolução na música de dança e isso também foi incontornável.

De resto, nada mais que uma evolução natural da cultura pop...
JP - Certas formas de expressão no final dos anos 80 e no princípio dos anos 90, a techno , as raves e as novas drogas foram, no fundo, uma apropriação do espírito do rock'n'roll pela música de dança.
José Pedro Moura - E o papel da música de dança é, em finais de 80, muito parecido ao do punk e new wave.

Foi a consciência de que houve um movimento cultural e social que se manifestou na música nos anos 80 que levou, nos 90, uma multinacional com a Polygram a assinar os Pop Dell'Arte?
JPM - Eu acho até estranho como é que o não fizeram mais cedo...
JP - E porque não continuaram?... Mas isso só quem estava lá é que o poderá explicar. Mas por pouco que o Sex Symbol tivesse vendido, e não foi tão pouco porque teve várias edições e está esgotado, não me parece que os números sirvam para justificar. Há coisas que não vendem e têm segundo ou terceiro disco. Se eles pusessem fora quem não venda sempre ao primeiro disco...

Mas porque se passou o que se passou?
JP - Compreendo que as bandas que existem no underground a determinado momento, quando sobrevivem acabam por assinar por multinacionais mais tarde ou mais cedo. A história está cheia de casos, e alguns até se mantêm a fazer coisas muito radicais. E até servem para as multinacionais justificarem que mantêm uma actividade artística. Mas o contexto português é muito diferente... E a coisa não aconteceu só connosco, mas também com os Mão Morta.
JPM - E aí tanto na BMG como na NorteSul.
JP - E não sei se os Mler Ife Dada tivessem sobrevivido o que lhes teria acontecido. Até porque as pessoas que estavam ligadas aos Mler Ife Dada, como a Anabela Duarte, o Pedro D'Orey e o Nuno Rebelo, que é o melhor músico da nossa geração, estão hoje em independentes. Este cenário é comum à troika das bandas ligadas ao Rock Rendez Vous de 1984 a 86, ou seja, nós, Mão Morta e músicos dos Mler Ife Dada.

Os problemas entre a PolyGram e a banda afectaram a actividade dos Pop Dell'Arte na segunda metade de 90?
JP - Houve ali um período de crise da minha parte. Uma crise pessoal que teve essas repercussões.

O EP So Goodnight , quando aparece em 2002, foi pensado como um cartão de visita para uma nova etapa?
JP - O So Goodnight foi, como então o disse, um EPA. Está tudo dito! (risos). Não era um cartão de apresentação de nada. Havia dois temas, o Mrs Tyler e o So Goodnight que estávamos a tocar e de que as pessoas gostavam. E não havia condições para fazer um álbum novo. E não nos parecia fechar esses temas na gaveta e esperar não sei quantos anos para que acontecesse alguma coisa. A realidade é esta: os Pop Dell'Arte não gravaram um disco novo porque não há dinheiro para os Pop Dell'Arte gravarem um disco novo! Não é haver falta de canções... Obviamente podíamos ir para a cozinha gravar o disco, ou para a garagem. Mas depois de termos trabalhado em determinadas condições... É que quando gravámos o Querelle e o Free Pop começámos logo nos estúdios Valentim de Carvalho. E mesmo quando gravámos a primeira maquete e o Divergências fizemo-lo nos estúdios da Musicorde em Campo de Ourique, com o Rui Remígio.

Há uma bitola de exigências mínimas nos Pop Dell'Arte?
JP - Não quer dizer que não poderíamos fazer um disco noutras condições, mas habituámo-nos assim. Não gravámos nestes últimos anos porque, quando os Pop Dell'Arte deixam de se editar a si próprios como banda, deixam de ter alguém que se interesse por si. E isto sem fazer a conversa do desgraçadinho. Mas o facto é que, à excepção da Polygram nos ter assinado a dada altura, houve sempre um virar das costas da indústria aos Pop Dell'Arte.

E como está o livro de memórias de que se já falou no passado?
JP - Adiado!... Como ainda tenho um sonho ou dois, dá sempre para ir adiando... Por um lado fui adiando porque uma pessoa constrói essas coisas a partir de um epicentro, e algum tempo depois a visão dessas mesmas coisas é bastante diferente. Se o tivesse feito corresponderia à visão daquela altura em que o comecei a fazer. Agora já tenho que pensar as narrativas de outra forma. Quando surgiu essa ideia, há dez anos, escrevinhei algumas coisas. Mas muito aconteceu depois disso... Mas pode fazer mais sentido uma história dos Pop Dell'Arte.

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