terça-feira, novembro 14, 2006

Em conversa: Pop Dell' Arte (2)


Continuamos hoje a publicação de uma entrevista aos Pop Dell'Arte, publicada no suplemento DN:música em Junho de 2005:

A sementeira de editoras independentes, como Ama Romanta ou a Dansa do Som, teve frutos?
José Pedro Moura - Há uma Borland, essas coisas. Mas são coisas muito pequenas. Se calhar é um mercado que interessa às grandes que não se desenvolva. Mas passados 20 anos a situação continua na mesma, senão pior.
João Peste - Estamos num contexto de "make it or break it"... Nesta primeira década do século XXI é extremamente importante as pessoas fazerem coisas, virarem-se umas para as outras e entrarem em interacção. Estamos a viver num período histórico de mudança. No início dos anos 80 estávamos a levar com um contexto ainda de fim de guerra fria, embora o que é hoje a União Europeia já germinasse desde há muitos anos...

Juntando aí o contexto peculiar do Portugal político, social e cultural do pós-25 de Abril...
JP - Era um contexto muito específico, sim. Mas era mais fácil encontrar uma continuidade nas coisas do que hoje, onde tudo parece descontínuo. Às vezes parece ficção-científica. Neste momento é importante as pessoas marcarem posições, tomarem atitudes. Porque, mais que nunca, o futuro depende de nós. Se soubermos utilizar a tecnologia ela pode-nos permitir uma série de coisas. As pessoas podem-se libertar sexualmente, ideologicamente, podem-se ultrapassar barreiras que antes eram intransponíveis na comunicação. Nos anos 80 denunciei aquilo a que chamava ditaduras culturais, que hoje não deixam de fazer sentido, embora possa estar nas nossas mãos que possam, mais que nunca, ser derrotadas. A proposta da Ama Romanta era a de as derrotar, ou pelo menos fazer resistência. A resistência, às vezes, já é uma derrota dessas ditaduras. Por vezes os projectos não existem para tomar o poder, mas para existir e resistir. A Ama Romanta e os Pop Dell'Arte, nesse aspecto, foram uma pièce de resistence. O tal exemplo...
JPM - E quando há uma administração mais reaccionária e conservadora, como a administração Bush, geralmente acontecem as coisas mais interessantes na música e outros tipos de expressão. Desde 2001 aconteceu um montão de coisas interessantes nos EUA, principalmente em Nova Iorque.

Em 1985, quando os Pop Dell'Arte apareceram, o meio pop/rock português era efervescente...
JPM - E hoje, apesar de haver mais facilidade ou mais meios para fazer as coisas, não há mais coisas a acontecer. Parece que as pessoas estão mais desmobilizadas.

E o que mobilizava então as pessoas?
JPM - Primeiro éramos putos, havia aquilo de fazer as coisas pela primeira vez, aquela descoberta contínua. Bem, mas agora também há putos, e as coisas não acontecem da mesma maneira. Depois havia o Rock Rendez Vous, um espaço onde se apresentavam bandas, que hoje não há. Havia as rádios independentes, e isto hoje, em termos de rádio, é um descalabro.
JP - Pelo facto do Rock Rendez Vous ter acabado nos anos 90 houve tentativas de fazer espaços que tivessem novamente uma certa atitude. O que mais se chegou a aproximar foi o Ritz Clube. Mas tinha uma série de condicionalismos. Se tivesse sido apoiado, o Ritz Clube teria sido o novo Rock Rendez Vous, não interessa se no Rego ou na Praça da Alegria. Mas tinha sido prometido um apoio da Câmara, que depois falhou. Os Pop Dell'Arte chegaram a tocar no Ritz Clube com intenção de ajudar a recolher fundos e criar uma situação em que o espaço pudesse surgir como um novo Rock Rendez Vous que faz tanta falta à sociedade portuguesa. E a coisa ficou em águas de bacalhau por causa da actual Câmara de Lisboa. Bastava o cachet de uma super-banda que toque numa noite das Festas da Cidade, e isso pagava as obras para que Lisboa tivesse um espaço para corresponder ao que o Rock Rendez Vous foi.

Não havia no Portugal de 80 uma vontade em criar, pela primeira vez, uma cultura alternativa entre nós?
JP - Uma cultura alternativa que não acontece só na música. Nessa altura começam a aparecer os primeiros fanzines, os primeiros realizadores de certo tipo de cinema, e até mesmo na vida nocturna, no Bairro Alto, ou mesmo a ideia de moda, que até então quase não existia em Portugal. Foi o safanão que o país teve de dar depois de 48 anos de ditadura.
JPM - Que aconteceu também em Espanha, mas eles agarraram a coisa de outra maneira. Cá, não...
JP - As coisas não são tão comparáveis assim, porque há grandes diferenças entre os dois países, mas é verdade que a Espanha conseguiu construir uma identidade nova, pós-moderna ou como lhe quiserem chamar. E nós ainda estamos a fazer os projectos.

Na altura, os Pop Dell'Arte, como tantos outros projectos, estabeleciam pontes entre a cultura musical alternativa e outras formas artísticas. Uma confluência de gostos e curiosidades?
JP - Quando penso nisso tudo não deixo de achar que sou um falhado. Os objectivos que tínhamos não conseguiram vencer. Eu sabia que o projecto Ama Romanta estava condenado à partida, porque começávamos logo com uma situação de défice. Não estávamos também à procura de lucro... E isso também levou a que se mantivesse a atitude. Como não havia a ilusão de que podíamos dar a volta e ganhar dinheiro com isto, isso fez com que se mantivesse uma certa pureza de intenções. E hoje estamos a deixar a fase industrial para uma informacional, e a própria expressão indústria musical deixará de fazer sentido.
(continua amanhã)

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