quinta-feira, outubro 12, 2006

Nova Iorque, cidade rock'n'roll (2)

A história começa num tempo que conhecia o esforço de pioneiros divulgadores como o DJ de rádio Alan Freed (com o seu programa nocturno Moondog’s Rock’n’Roll Party), que inscreve assim a Flatbush Avenue em Brooklyn ao lado dos Sun Studios em Memphis (onde Elvis registou as primeiras sessões) como determinante lugar de origem para o som emergente. O programa, que Alan Freed havia começado a apresentar numa rádio de Cleveland, mudou-se consigo para Nova Iorque e deixou a sua marca na cidade quando, em 1955, se transformou em evento de música ao vivo no Brooklyn Paramount, com actuações de Fats Domino, The Drifters e Joe Turner. A revolução envolvia também a aposta ousada de jovens editores como Ahmet Ertgun (na Atlantic, até então com história feita no jazz). E denunciava já uma característica que dominaria toda a vivência rock’n’roll de Nova Iorque: o sentido da rua, a consciência streetwise que, herdada dos doo woppers que se apresentavam aqui e ali acabou assimilada pelas bandas e artistas que adoptaram as sucessivas novas linguagens e suas derivações.

Há muito baptizado como Brill Building, o número 1619 da Broadway albergou a primeira fonte de canções capaz de inscrever Nova Iorque como uma das primeiras cidades produtoras mundiais de rock’n’roll. A tradição já ali morava há muito, albergando o prédio sucessivas gerações de compositores e letristas ao serviço da canção popular. Em meados de 50, quando o R&B vira força de mercado, nomes como os Drifters, The Costers ou Shangri-Las ali foram buscar canções de sucesso. Fechados nos seus gabinetes de trabalho, os mestres criadores talhavam canções à medida dos novos gostos, mantendo viva uma tradição de escrita para fins concretos que a cidade há muito (desde os anos 20) conhecia pelos lados da rua 28, zona baptizada por alguns detractores como Tin Pan Alley. Sem o exclusivo da criação musical da cidade, o Brill Building albergou no entanto, e até à invasão da cidade pelos Beatles (e todas as suas consequências nas mudanças de hábitos de composição), alguns dos mais bem sucedidos compositores da geração de finais de 50 e inícios de 60, Kirshner e Nevins, Goffine Carole King, Barry Mann e Cynthia Weill, Leiber e Stoller e ainda Neil Sedaka, este transformado em estrela teen em finais de 50 ou o mais bizarro e inventivo Phil Spector (aluno da dupla Lieber & Stoller mais tarde transformado num dos primeiros grandes produtores rock’n’roll).

Ao lado da emergente reinvenção de linguagens negras para consumo branco que era promovida nestas primeiras manifestações rock’n’roll, duas outras forças ganharam palco laboratorial em Nova Iorque, revelando amas uma consciência de raiz. Por um lado, a assimilação das recolhas de John e Alan Lomax colocavam na ordem do dia a descoberta dos blues. Por outro, a projecção urbana de outras linguagens rurais abria espaço a uma explosão de revivalismo folk. Ambas conheceram terreno de ensaio e divulgação na zona tradicionalmente boémia do Greenwich Village, albergue antigo de escritores e outros artistas, zona de rendas baixas, muitos bares e sobretudo cafés (como o Fígaro, o Bizarre ou o Wha?), coração da geração beat em 50, centro agitado de activismo político e sede de ideologias de esquerda. A espaçosa e ajardinada Washington Square, no coração do Village, serviu desde então de palco a inúmeras actuações de trovadores, dos pioneiros Dave Van Ronk ou Pete Seger aos sucessivos talentos ali depois revelados, de Joan Baez (fã de longa data de Seger e da sua música altamente politizada, e recém-chegada de Boston) aos jovens Bob Dylan ou Phil Ochs, estes a ensaiar, com o tempo, percursos de aproximação ao rock sem que tal comprometesse a essência da sua poesia. Dylan cruzava nas suas paletas de interesse um gosto pela folk e pelos blues e acabou por se afirmar como o grande protagonista da geração nascida da assimilação das folk e de toda uma vivência boémia característica do Village, onde viveu anos a fio numa casa em McDougal St, sistematicamente transformada em altar de campismo para hippies que o veneravam. Da multidão de folkniks (o ‘ik’ detreminava qualquer ligação a ideologias de esquerda, cortesia sputnik) emergiram ainda a dupla harmónica Simon & Garfunkel, assim como híbridos rumo a encontro com o rock, os mais marcantes dos quais os Lovin’ Spoonful.

Uma certa consciência de esquerda, com raiz na vivência boémia dos cafés do Village e das vidas nas ruas do Soho manifestou-se, depois da geração folk, numa outra família de músicos que marcou a história musical de Nova Iorque nos anos 70. Uma família de origem proletária, capaz de inscrever uma poética vivencial em regime rock’n’roll mais melodista que ritmado, mais atento à palavra que ao ensaio das molduras e da forma, reflectindo todavia mais o impacte das revelações da geração festivaleira que da seriedade pesada dos monstros roqueiros que então comiam o mercado. Entre os grandes representantes desta geração de cantautores rock’n’roll contam-se dois não autóctones: Bruce Springesteen, chegado de New Jersey e logo transformado num dos mais célebres pensadores rock de Nova Iorque e John Lennon, em asilo pós-Beatles, vivendo, primeiro em Bank Street, depois no luxuoso Dakota na rua 72, a etapa final da sua vida. O seu assassinato à porta do Dakota em 1980 inscreveu aquele local na mitologia da cidade, que lhe prestou homenagem dedicando à sua memória uma zona do Central Park ali perto, à qual chamou Strawberry Fields. (continua amanhã)

PS. Texto originalmente publicado no DNmúsica, em Agosto de 2005

Fotos:
1. O Figaro Cafe, na esquina da Bleeker St com a McDougal St, em pleno Village. Local de encontro de poetas beat e músicos folk. Dylan, em meados de 60, morava no mesmo quarteirão.
2. O Brill Building, na Broadway, pouco acima de Times Square.
3. A porta da velha casa de Dylan em McDougal St, nos dias dos acampamentos de fãs, hippies, ali mesmo em frente, que o músico agora confessor que era do que mais o irritava nesses tempos.
4. O Dakota Building, onde morava (e foi assassinado) John Lennon

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