Sem favor (nem exagero), Roma é mais um exemplo de excelência na actual produção dramática para televisão. A sua primeira época (uma segunda e, diz-se, derradeira, anunciada para Janeiro de 2007) representou um dos mais cativantes e requintados exemplos de grande cuidado em todas as frentes. Com um sentido de verdade (tanto na face histórica como na construção de uma pulsão ficcional) que funciona como cereja sobre um bolo técnico de exigência superior.
Muito do sentido de “realismo” que Roma pretendeu chamar a si deve-se a uma correcta opção pela rodagem dos 12 episódios num conjunto de estúdios “reais” construídos na mítica Cinecittá. O digital serve-se, discreto, imperceptível, apenas como retoque, a verdade das paredes, do chão, dos grandes e pequenos espaços a fornecer à série uma noção de corpo físico que permite encenar, entre as suas ruas e praças, a vida agitada e socialmente complexa de uma cidade que então somava já alguns séculos de história. À rede de ruas e largos (o maior dos quais o fórum) erigidos na Cinecittá juntou-se, na exigente pré-produção, o trabalho igualmente preciso e cuidado de equipas que construíram adereços, guarda roupa, treinaram figurantes do corpo militar, sob a orientação de um consultor histórico que tentou manter tudo o mais próximo possível das verdades do tempo retratado. De resto, num dos documentários servidos como extra, Bruno Heller, o principal responsável pela ideia, gracejou, afirmando que, se, por uma vez, fosse fiel à verdade histórica da Roma de então, só por si haveria motivos suficientes para servir novidade aos espectadores. Assim foi.
A acção retratada nos 12 episódios da primeira série de Roma transporta-nos para um período de mudanças políticas e sociais. Estamos a viver a derrocada da velha República e a assistir a uma cadeia de eventos que desencadearão o nascimento do Império alguns anos depois.
Tudo começa em 52 a.C., quando Júlio César sai triunfante, apesar da enorme desvantagem numérica, na guerra da Gália, confirmando o sucesso da estratégia romana sobre a multidão gaulesa. Ao longo dos 12 episódios acompanhamos a degradação das boas relações entre os dois homens mais prestigiados de Roma, César e Pompeu, protagonistas de um triunvirato em 60 a.C. (com terceiro elemento em Crasso, ignorado nesta história). A queda de Pompeu e consequente vitória de Júlio César, a sua passagem pela Grécia e Egipto (aqui arbitrando uma disputa de poder entre os irmãos Ptolomeu XII e Cleópatra), e regresso triunfal a Roma, ocupam o coração da acção. Na recta final, inevitável, a conjura de opositores e morte, no ano 42 a.C, do homem que havia sido decretado ditador para toda a vida, crime promovido pela honra da república, mal imaginando os seus responsáveis que, de certa maneira, desferiram no corpo de César a estocada de morte no sistema que, 15 anos depois, desaparecia, dele descendendo directamente o novo poder que, gradualmente, seria transformado numa nova ordem imperial (monárquica, portanto), cabendo a Augusto (nome pelo qual passava a responder o jovem Octávio, sobrinho de Júlio César). O período conturbado entre a morte de César e a ascensão ao poder de Octávio, implicando a dada altura um segundo triunvirato deste, com Marco António e Lépido, e a derrota consequente destes últimos pelo primeiro, deverão constituir a medula que definirá o rumo dos episódios da segunda série, já em produção.
O que faz de Roma uma série narrativamente pujante, destacando-a de um patamar de mera reconstituição histórica, é o facto de não tomar os seus protagonistas “históricos” como estátuas ambulantes com texto a debitar, mas gente de carne e osso com uma dimensão privada que surge como inevitável complemento a uma vida pública, política ou meramente militar. Como peças do puzzle político que acompanhamos vemos figuras militares como Júlio César, Pompeu, Marco António e os senadores Cícero, Cato ou Brutus (filho adoptivo de César e autor do golpe de misericórdia que o mata). Como protagonistas plebeus transversais a toda a acção, conhecemos o centurião (e futuro senador) Lucius Vorenus e o legionário Titus Pullo, militares pontualmente referidos em textos reais de Júlio César, aqui recriados com total liberdade de ficção. Entre a ficção e traços de realidade entramos na vida familiar em torno de César e Pompeu, na qual circulam figuras como o então ainda muito jovem Octávio, a sua ambiciosa mãe Attia ou Sevillia, uma antiga amante do ditador. Contraponto a estas figuras da elite nobre, o agregado familiar de Voreuns, integralmente ficcionado, permite-nos um mergulho em paralelo pela vida quotidiana plebeia na Roma de há dois mil anos.
O desenrolar da acção entrecruza factos políticos e militares com histórias da vida privada. Evoca factos, revela hábitos e modos de vida, mas não deixa nunca de nos apresentar as profundezas das dúvidas, medos, alegrias, surpresas ou desencantos de um aglomerado de figuras com as quais, episódio a episódio, aprendemos a conviver. Com eles sentimos o gelo de jantares entre patrícios onde segundos sentidos se cheiram antes dos odores das comidas chegarem frente aos convidados, a omnipresença de um sistema religioso que não comportava em si um discurso moral, as cores dos eventos públicos, o buliço do fórum e dos mercados, os jogos de hierarquia, pequenas marcas do quotidiano. E, sem nunca perder segundos com panorâmicas, a movimentação das câmaras, sempre atentas a acções e figuras concretas, deleitamo-nos com uma soberba recriação da velha Roma. Sublinhe-se ainda, em jeito de nota final, a segurança com que uma série claramente nascida de um surto de interesse popular pela Roma antiga desencadeado pelo apenas mediano Gladiador, de Ridley Scott, guarda o único combate de gladiadores para o penúltimo episódio. E sem descuidar, uma vez mais, a verdade dos factos de um tempo em que a ideia de um Coliseu para ver semelhantes espectáculos ainda estava a décadas de acontecer.
PS. Versão longa de um texto originalmente publicado na revista 6ª, do Diário de Notícias