Provavelmente, depois deste dia 4 de Outubro de 2006, será preciso traçar uma linha de separação na história das temporadas musicais da Fundação Gulbenkian: AA e DA, ou seja, "antes dos Abba" e "depois dos Abba" — a culpa, a maravilhosa culpa, é da mezzo-soprano Anne Sofie von Otter que veio ao Grande Auditório cantar as canções dos Abba (e outras de Benny Andersson), ligando-as com as memórias de gente como Friedrich Hollaender, Kurt Weill e, last but not least, Charles Trenet, num recital de serena celebração de todas as contaminações entre classicismo e sensibilidade pop, canto lírico e canções ligeiras.
Não se trata, obviamente, de uma descoberta. Não é essa a questão — a vida das formas artísticas não se faz de uma "revolução" por semana, mesmo se alguns discursos críticos, ignorando as componentes conservadoras do labor artístico, assim parecem acreditar... Acontece que Anne Sofie von Otter pertence ao precioso universo dos criadores que trabalham, não em função de hierarquias académicas, mas acreditando nos vasos comunicantes que as obras constroem e os artistas, se talento não lhes faltar, celebram. No fundo, "I Let the Music Speak" foi um concerto de variações sobre as nuances afectivas e os sobressaltos emocionais que uma voz pode conter — e, à sua maneira, contar.
Petite histoire (porventura para entrar também na história mais geral): Anne Sofie von Otter entrou em palco, pé ante pé, numa sugestão dançante, sublinhando o poder irónico da música tradicional com que a sua banda abria o espectáculo; na mão, em vez de folhas de música, trazia... uma garrafa de água. Não que tal postura pretendesse "desmanchar" a pose de diva. De alguma maneira, era o contrário: de túnica, calças de ganga, sandálias e... uma garrafa de água, compreendemos que nem isso anulava a singularidade de ser diva — compreendemos, vimos e, claro, ouvimos. O concerto do ano.
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Não se trata, obviamente, de uma descoberta. Não é essa a questão — a vida das formas artísticas não se faz de uma "revolução" por semana, mesmo se alguns discursos críticos, ignorando as componentes conservadoras do labor artístico, assim parecem acreditar... Acontece que Anne Sofie von Otter pertence ao precioso universo dos criadores que trabalham, não em função de hierarquias académicas, mas acreditando nos vasos comunicantes que as obras constroem e os artistas, se talento não lhes faltar, celebram. No fundo, "I Let the Music Speak" foi um concerto de variações sobre as nuances afectivas e os sobressaltos emocionais que uma voz pode conter — e, à sua maneira, contar.
Petite histoire (porventura para entrar também na história mais geral): Anne Sofie von Otter entrou em palco, pé ante pé, numa sugestão dançante, sublinhando o poder irónico da música tradicional com que a sua banda abria o espectáculo; na mão, em vez de folhas de música, trazia... uma garrafa de água. Não que tal postura pretendesse "desmanchar" a pose de diva. De alguma maneira, era o contrário: de túnica, calças de ganga, sandálias e... uma garrafa de água, compreendemos que nem isso anulava a singularidade de ser diva — compreendemos, vimos e, claro, ouvimos. O concerto do ano.