sábado, agosto 26, 2006

O que a RTP pensa de nós

O CONTEXTO. Digamos que o concurso A Herança, trans-mitido diariamente pela RTP1, não é um primor de concepção. Nele encontramos essa jurás-sica noção de cultura "geral" que confunde o conhecimento com o débito das datas de acontecimentos por vezes de importância mais que discutível, ou ainda com a celebração dos nomes latinos de simpáticos vermes ou animais em extinção. Seja como for, importa também dizer que, face à festiva degradação dos padrões globais de programação da televisão pública, A Herança faz figura de banalidade limpa e, por vezes, estimulante para os neurónios. Afinal de contas, estamos a falar da mesma televisão que, ontem, dia 25 de Agosto de 2006, achou por bem abrir o seu Telejornal das 21h45 (logo após a transmissão do jogo de futebol Barcelona-Sevilha) com a proclamação do CAOS — onde? No futebol português. Foram mais de 5 minutos de devota preocupação com as recentes atribulações legais do nosso admirável futebol, certamente vitais para compreendermos o destino do planeta, sobretudo face a coisas anedóticas como o envolvimento da União Europeia na força de paz no Líbano...

A IDEOLOGIA. Dito isto, há que dizer também que A Herança multiplica até ao delírio mais pornográfico (sim, se for caso disso, podemos discutir o conceito formal de pornografia) essa ideologia dos tempos correntes que é o paternalismo televisivo. Em que consiste? Por um lado, na infantilização grosseira de toda a gente — desde os concorrentes aos assistentes, passando pelos espectadores caseiros —, a ponto de, por vezes, não se perceber se nos encaram como crianças desgraçadamente estúpidas ou como patéticos atrasados mentais; por outro lado, na generalização forçada de um conceito "familiar" onde toda a gente é tratada como emanação (involuntária) de uma noção pré-salazarista de família e onde, mesmo um concorrente adulto-mesmo-adulto, desde que venha acompanhado por um familiar mais idoso, corre o risco de ser tratado como um menino traquinas que apareceu na RTP de bibe e chupeta ao pescoço. É, de facto, admirável o rol de ideias medíocres e sentimentos conformistas que se proclamam e põem a circular em nome do "entertenimento" e da "boa disposição".

O SISTEMA. Confesso que, durante algum tempo, atribuí a principal responsabilidade de tão deprimente aparato emocional e espectacular ao primeiro apresentador (José Carlos Malato) do concurso e aos efeitos do seu estilo superficial, a meu ver formalmente muito pobre e maniqueísta em termos comunicacionais. Mas não: agora que o concurso tem sido conduzido por uma apresentadora (Tânia Ribas de Oliveira), as coisas mantêm-se rigorosamente na mesma. Que é como quem diz: há, de facto, um sistema de apresentação e, sobretudo, de representação daquilo que é a televisão e são os espectadores. Trata-se de um sistema que favorece essa ideia forte (?) segundo a qual somos todos pessoas que sentem, pensam e reagem como crianças encurraladas, temerosas de tudo o que nos possa interrogar ou desafiar. Na verdade, não poderia haver método mais esclarecedor sobre o modo como a RTP encara quem a contempla — podemos ser até religiosamente benevolentes no nosso olhar, mas não há nada a fazer: a nossa televisão não nos toma a sério.

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