quarta-feira, agosto 16, 2006

Daddy Cool

O cinema chinês começa a mostrar interessantes sinais de “liberdade” no olhar pela história do seu passado recente, levantando não só cenários políticos e sociais, como inclusivamente subtextos sexuais, e Sonhar Com Xangai é um dos mais recomendáveis exemplos dessa fundamental análise colectiva na primeira pessoa. Com uma respiração de realismo que lembra o igualmente espantoso A Bicicleta de Pequim (também de Xiaoshuai Wang, em 2001), esta é a história de uma família forçada a abandonar a cidade de Xangai para uma vida numa aldeia remota do interior, mudança que forçou inúmeros agregados familiares como este a uma deslocação em massa, ordenada pelo poder central.
Família proletária, os seus dias vivem como pêndulos, entre o trabalho (ou a escola) e a casa (e mais rotineiras tarefas). Os dois filhos adolescentes crescem silenciosos e esmagados pela presença de um duplo sistema repressivo: o do estado, implacável, imutável, verdades e consequências ditadas pelo partido; o da família, arcaico, sem resposta permitida, intolerante e intransigente, verdades e consequências aqui ditadas pelo pai (mesmo que comentadas por uma mãe insatisfeita com o excesso de uma severidade que não procura senão garantir a entrada na universidade da filha mais velha). Sublinhe-se aqui o facto de estarmos sobretudo a acompanhar uma família em cuja casa mora um cepticismo face ao partido, à ideologia dominante. Ouvem a Voz da América, juntam-se com colegas para discutir saídas possíveis para esta descentralização forçada que lhes roubou a vida que conheciam na cidade…
Mas há momentos de fuga. Sobretudo de noite, em barracos afastados da curiosidade paternal, juntando-se rapazes e raparigas, eles de calça boca-de-sino (proibida na escola), cabelo apanhado com gel (ou água) e óculos escuros, pose à Travolta; elas de fato domingueiro, penteadas, sem esquecer o batôn… Ser cool, nesta China rural de 1983 é fingir que se parece com um ocidental, dançando eles passos de “pintas” ao som dos Boney M, elas envergonhadas em roda à volta da improvisada pista de dança.
Mas estes são prazeres secretos, que convém que não cheguem ao conhecimento nem dos pais nem das autoridades. Estamos, afinal, numa terra e tempo em que uma gravidez se paga com o casamento, uma violação com a morte. E onde o sonho é o único escape possível.
Sonhar Com Xangai, que estreia esta semana, é um dos mais recomendáveis motivos para ir ao cinema este mês. Um filme sem muitos sorrisos, de cores pardas, mortas, como a vida da aldeia (contraste único num par de sapatos que um jovem operário oferece à filha mais velha da família acima referida). É um filme de bela fotografia, de dor tão contida, mas real, como a que se imagina (e tão bem aqui retrata). Imperdível!

MAIL