quinta-feira, agosto 24, 2006

Como filmar o 11 de Setembro?

Será que faz sentido perguntar: se tirássemos o "Rosebud" ao Citizen Kane, de Welles, o que é que restava? Sentido não faz. Mas é um facto que o filme resiste a tudo, até mesmo a banais perguntas de algibeira. Por isso, atrevo-me a perguntar: se tirarmos o "11 de Setembro" a Voo 93 (no original: United 93), que resta? Quase nada, digo eu.
Em todo o caso, é isso que o filme de Paul Greengrass insistentemente nos pede (inclusivé através do cuidado pedagógico com que foi lançado nos EUA). Ou seja: que o vejamos como uma ficção de "abertura" para a abordagem dos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001, nessa medida desempenhando uma inevitável função catártica — trata-se, afinal, de rasgar caminhos para que o cinema não se esqueça de um trauma que, obviamente, cinco anos de história dos EUA e do mundo não apagaram.
Repare-se: não está em causa que os filmes (ou qualquer outra forma de ficção) se envolvam com os factos mais dolorosos, complexos ou controversos da nossa contemporaneidade — neste caso, trata-se de evocar o 11 de Setembro a partir da tragédia do "quarto avião", cujos passageiros conseguiram resistir aos terroristas, desviando o avião do seu alvo (Washington e, provavelmente, a Casa Branca) e levando-o a despenhar-se na Pensilvânia. O que está em causa, isso sim, é que tais factos surjam investidos, menos como problemas de representação fílmica, e mais como cauções que tendem a "purificar" automaticamente o próprio labor ficcional. Dito de outro modo: Voo 93 começa por possuir a linearidade acomodada de um vulgaríssimo telefilme. As personagens não existem, a não ser como espectros bidimensionais de uma "intriga" que o próprio filme se limita a confirmar como verídica. Depois, a evolução dos acontecimentos obedece menos a um qualquer ponto de vista activo e mais a uma reprodução dos mecanismos mais simplistas do tradicional "filme-catástrofe".
Na prática, Voo 93 é um esclarecedor sintoma do conformismo ficcional que os modelos dominantes de televisão (entre nós, a telenovela) conseguiram impor por toda a parte. Tal conformismo enraíza-se na ideia de que os factos são uma espécie de nó inamovível do real — se as coisas aconteceram "assim", então a ficção deve aquietar-se na cega repetição desse "assim" e da sua lei simbólica de reconhecimento. Paradoxalmente, semelhante dispositivo retira aos espectadores exactamente aquilo que proclama como a sua oferta essencial: um ponto de vista, seja ele qual for, sobre aquilo que narra.
* Que é um ponto de vista? Não uma divisão confortável do "bem" e do "mal". Não uma fronteira segura entre "verdade" e "mentira". Antes a construção de uma visão que nos faça sentir que o conhecimento de um facto, seja ele qual for, não é algo que se "reproduza", mas o resultado de um labor multifacetado, por vezes árduo, com as muitas facetas de qualquer real. Tal como existe, Voo 93 exibe a agitação aparente de um thriller (ou de um thriller aparente), mas também a inanidade festiva de um telejornal feito sobre a ilusão de que nele se reflecte a luz divina do conhecimento.

Como será o "outro" filme sobre o 11 de Setembro? Ou seja: que diferenças existirão entre Voo 93 e World Trade Center, de Oliver Stone (estreia portuguesa: 21 de Setembro)? Para já, vale a pena conhecer algo da agitação mediática e ideológica que tem enquadrado o filme nos EUA, por exemplo através de um artigo do jornal britânico The Independent. Ou ainda escutar as palavras do próprio Stone, em entrevista a Debbie Elliott, na rádio pública americana, NPR.

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