A história real, todavia já feita lenda, transformou a princesa índia Pocahontas numa figura com um peso na identidade norte-americana, tal e qual o romance de um Pedro e Inês está inscrito na memória colectiva portuguesa. Filha do grande chefe Wahunsunacock (também conhecido como Powatan), foi protagonista do primeiro romance com um colono inglês, e chegou mais tarde a ser a sensação da corte londrina quando ali se deslocou em viagem solicitada pelo próprio rei, em 1616. Não escrevia, pelo que a história da sua vida começou por ser transmitida, geração após cada geração, no tradicional jeito “cada conto acrescenta um ponto”. Atingindo paradigma romanesco na medíocre leitura em filme de animação que a Disney apresentou em 1995. Os seus pensamentos, a sua visão de dois mundos que se descobrem, colidem e transformam um perante o outro, as suas reflexões sobre o universo ocidental que a acolhe, não são conhecidos, deles podendo apenas a imaginação inferir. Ficcionar. E de certa maneira essa é a proposta central ao magnífico novo filme de Terrence Malick, O Novo Mundo, que ostensivamente se afasta da necessidade de seguir uma agenda cronológica meticulosa na vida da princesa índia, optando antes por tomá-la como fonte protagonista de olhares longos, sensações, sugestões e motor de acontecimentos. E sem nunca usar sequer o seu nome que, de resto, apenas vemos enunciado nos créditos finais, confirmando que, de facto, é de Pocahontas que aqui se fala…
Essencialmente contemplativo, deixando a natureza roubando ao elenco (Colin Farrell, Q’orianka Kilcher, Christrian Bale, Christopher Plummer) algum espaço de protagonismo na esmagadora maioria dos planos tal como nos dois anteriores filmes de Malick (mas sem atingir novamente a excelência superlativa de A Barreira Invisível, de 1988), e tomando uma vez mais a música como catalisador superlativo do convite ao êxtase perante a descoberta de espaços e gentes, O Novo Mundo é um conjunto de quadros sobre a instalação da primeira colónia em Jamestown, na Virgínia, e da forma como colonos ingleses e índios autóctones partiram de uma atitude de curiosidade inicial e ansiedade consequente, rumo a uma série de confrontos que rapidamente transformaram uma (impossível) coexistência idílica numa luta pelo espaço. Malick cristaliza no filme uma inteligente opção pelas ignorâncias recíprocas entre os povos que se vêm inesperadamente num mesmo terreno, e evita quaisquer moralismos sobre os rumos futuros que a história do relacionamento entre índios e colonizadores eventualmente tomou. A acção decorre entre 1607 e 1616 e apenas do que se sabe e viveu nesses duas vive uma história que raramente recorre a sequências de acção, optando por um registo de plácida reflexão interior, abusando aqui, por vezes, do excesso de monólogos em off.
A música tem um um papel determinante na construção da atitude contemplativa de Malick sobre a princesa, os que consigo contracenam e, sobretudo, o espaço físico e emocional que a acolhe. A James Horner coube o papel que Hanz Zimmer desempenhara com distinção e louvor n’A Barreira Invisível. Conhecido por piscar o olho (para não dizer mais) a outras músicas e compositores, Horner cita sobretudo Philip Glass, criando a dados momentos uma teia obsessiva que nos agarra e faz mergulhar no rio, na floresta, na intensidade e ansiedade dos momentos vividos. Mas mais marcante ainda é a sequência de abertura, assombrosa utilização dos primeiros minutos da primeira cena de O Ouro do Reno, de Wagner, envolvente sugestão de entrada nas águas de um rio que nos vai abrir novas histórias e descobertas.
O filme documenta depois a fragilidade (física e moral) e ignorância da colónia inglesa, sugere por contraponto a solidez da integração no meio da cultura autóctone, o embate entre ambas, vincando a ideia da descoberta de novos mundos: a América para os ingleses, Londres para Pocahontas. E explora o universo interior de emoções e sensações da jovem princesa, do pai que a proscreve, de John Smith que a abandona, de John Rolfe que com ela casa. O filme foi vítima de longos cortes que as lógicas de exibição exigem, pelo que teremos de esperar pelo eventual director’s cut em DVD para o apreciar em pleno. Mesmo assim, golpeado, O Novo Mundo é um dos acontecimentos cinematográficos do ano.
Versão "longa" de texto publicado no DN, na edição de hoje da revista '6a'.
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