Pode um inesperado e aparentemente ocasional tiroteio de auto-defesa transformar-se em mais que simples assunto de noticiário local, com cabeçalhos de heroísmo para a menos provável figura da pequena cidade? Em Uma História de Violência (estreia hoje) vemos sinais de solidificação de novas demandas no cada vez mais depurado e entusiasmante cinema de David Cronenberg. Esta é a história de uma família em tudo comum, pai com diner para clientes comuns e habituais numa simples rua de uma pacata cidade de província, mãe de emprego regular, filho feito saco de batatas de bullys “dominantes” no liceu, irmã mais nova ainda na primária.
O incidente desperta inesperada perícia em Tom Stall, que todos conheciam como veterano do café de saco e tosta mista (interpretado por um convincente Viggo Mortensen), e uma cadeia de acontecimentos vai mostrar que, na cave da sua vida, há segredos que nem os mais próximos de si imaginavam (e não se conta mais…). No filme, Cronenberg explora magistralmente os cenários de vida em sociedade rural onde lógicas de proximidade geram manifestações de protecção entre pares, mesmo se aparente erro acontece no sistema; retrata o esboroar de uma mentira alicerçada por anos de aparências; mergulha nas teias dos relacionamentos familiares; sublinha a perenidade das piores memórias, mesmo quando sujeitas a operações de tampão e, acima de tudo, investiga exemplos de violência contida que, sob o estímulo certo, aflora e revela personalidades e acções no mínimo inesperadas. Num tempo em que as manifestações de violência foram banalizadas pelos media (sobretudo as linguagens televisivas, tanto na informação como até na ficção), este olhar de Cronenberg ganha particular peso pela sua capacidade em impressionar e mover angústias e receios e, acima de tudo, gerar reacções emocionais no espectador entretanto vacinado pelas imagens “vulgares” da era das más notícias.
Nota ainda para o facto de este ser mais um filme baseado numa BD (ou, sejamos mais precisos, uma graphic novel). Mas em nada estamos no comprimento de onda de outras adaptações do mundo dos quadradinhos para o do grande ecrã. De resto, Cronneberg fez questão de tomar a história de partida como argumento para dele fazer nascer um filme, não uma adaptação ao cinema de um universo do desenho.
O “velho” Cronenberg desapareceu? Nem por isso, antes encontrou espaço de evolução para uma busca de novos espaços e temas, deixando marcas da sua genética (nunca rejeitada) nas faces esfaceladas por tiros, que filma com invulgar curiosidade face aos modelos habituais. O próprio Cronenberg consegue, num discreto diálogo entre pai Stall e filha Sarah (Heidi Hayes) auto-parodiar alguns dos seus filmes antigos: a meio de um pesadelo, filha acorda e pai tenta acamá-la, ao dizer “there’s no such thing as monsters”… Quem o diria, num filme do autor de um The Brood (A Ninhada)… NG
Provavelmente, um poder comum aos grandes filmes é o de nos fazer olhar para aquilo que conhecemos como se, subitamente, todas as nossas certezas vacilassem — como se o real filmado se tornasse mais forte e, por assim dizer, mais imperioso que o real vivido. Uma História de Violência é um genial exemplo desse poder: por um lado, porque nos recoloca face a cenários correntes (de uma América interior) que parecem revistos através de uma matriz também tradicional (o "thriller" mais ou menos intimista); por outro lado, porque a sua lógica vai evoluindo no sentido de abrir um vazio imenso que parece impossibilitar qualquer redenção e, mais do que isso, qualquer reencontro com a inocência primordial que atribuímos àqueles lugares e personagens.
Dir-se-ia que este é um filme sobre a continuada crise de formas de heroísmo que assola o nosso mundo contemporâneo. Em última análise, apenas resta a evidência incontornável da violência e a intensidade sem rosto do sexo — entre uma coisa e outra, Uma História de Violência pergunta se ainda sabemos relacionar-nos com a verdade? A resposta é: talvez, se soubermos (e quisermos) pagar o seu preço. JL
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