Chama-se Death of a Fantastic Machine, tem assinatura de Maximilien Van Aertryck e Axel Danielson, e está disponível na secção de documentários de The New York Times. Ou como a câmara não é um mero instrumento de reprodução do mundo, mas um elemento determinante da nossa visão e para a nossa visão. Mais do que isso, um objecto actuante no modo como escolhemos e ocupamos um lugar nesse mundo — eis um exemplo maior de um jornalismo brilhante a integrar as imagens, sem nunca desistir de as questionar.
sound + vision
terça-feira, junho 24, 2025
segunda-feira, junho 23, 2025
Um suicídio cultural
[a propósito do filme Portugueses]
A representação cinematográfica (e não só) do 25 de Abril foi sendo reduzida a um catecismo de lugares-comuns — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 junho).
Estreado esta semana [5 junho], Portugueses, de Vicente Alves do Ó, é um filme que se deixa resumir na breve frase com que é apresentado no site da Cinemundo, a sua distribuidora: “Somos todos... Portugueses.” Assim mesmo: com as reticências a suspender a frase na expectativa de uma revelação e a identificação da nossa nacionalidade com maiúscula. Estamos perante um trabalho que nasce de uma sincera e honesta vontade de celebrar a herança do 25 de Abril, partilhando-a com os espectadores. Acontece que sinceridade e honestidade, por mais respeito que possam merecer, não bastam para pensar o cinema enquanto linguagem e cruzamento de linguagens.
O filme parte de um axioma moral em que se confundem e, supostamente, se harmonizam os factos da história e a transcendência da mitologia. O dispositivo dramático — uma série de episódios antes e durante o 25 de Abril "comentados" por canções — vai-se esgotando em estereótipos de uma dramaturgia esquemática, sustentada pelo formalismo da “oposição” entre o preto e branco das memórias e as cores das canções. Com algumas ironias bizarras, como seja a associação da burguesia do Estado Novo ao Conquistador dos Da Vinci (canção que representou Portugal na Eurovisão, em 1989). Enfim, Portugueses revela a ambição de uma parábola política — falemos, então, de política.
Que estereótipos? Não esquecendo as formas de violência postas em prática pelo Estado Novo, não parece muito produtivo tratar os respectivos tempos como se no país só houvesse dois tipos de personagens: militantes do Partido Comunista e mulheres marginalizadas (espancadas as do povo, estúpidas as da burguesia). Ninguém contesta que a acção do PC foi fulcral para a queda da ditadura salazarista/marcelista, nem que a igualdade entre homens e mulheres estava longe de ser um princípio unificador da sociedade. O que se discute é algo que a esquerda, principal indutora deste modelo de representações, já não pensa. Pensar o quê? A pueril transformação narrativa de tais referências num catecismo bolorento que promove o tratamento da ditadura como uma encarnação abstracta do mal. Como se essa fosse uma forma inteligente, politicamente produtiva, de pensar o passado — e viver no presente.
São questões que excedem o filme: Portugueses não passa de um pormenor benigno de uma conjuntura muito mais geral. Será preciso falar de um aparato ideológico há muito dominante no espaço televisivo português, reforçado ao longo de 2024, ano em que se assinalaram os 50 anos do 25 de Abril: há todo um discurso mediático, panfletário e artístico, enraizado num certo imaginário de esquerda (com a bem disposta chancela da direita), que se organiza a partir de duas leis narrativas. Primeiro, encena-se o 25 de Abril como uma barreira mágica, de verdadeiro conto de fadas, que separa a ditadura da revelação religiosa da democracia; depois, a palavra “liberdade” é aplicada como um instrumento, também ele mágico, que nos permite usufruir dos valores democráticos, abstraindo da história a que pertencemos.
Vivemos e celebramos a democracia sem sair deste infantilismo ideológico. A esquerda, protagonista de tais atribulações narrativas, continua a trabalhar para o seu suicídio cultural. Porquê? Porque à esquerda falta a coragem de questionar o modo como a política foi sendo parasitada pelas lógicas mais especulativas e fulanizadas do espaço televisivo. Adia-se, assim, o enfrentamento da cultura como um complexo movimento de valores, actos e discursos que não se esgota na respectiva percentagem no Orçamento Geral do Estado (ainda que os políticos de esquerda pudessem prestar alguma atenção ao assunto).
Como é que a esquerda se pode repensar, ousando lidar com tudo isso? Não sei, mas tenho dúvidas que a resposta pertença aos “conselheiros de imagem” que por aí proliferam. Bastaria, então, maquilhar a pose televisiva de Pedro Nuno Santos? Os resultados são eloquentes: uma cruel sensação de falsidade de que o próprio foi a primeira e desamparada vítima.
Sem negar as diferenças esquerda/direita, o 25 de Abril doou-nos a hipótese de reconhecer que essa formulação (“esquerda/direita”) está longe de esgotar a complexidade do mundo — vale a pena, a propósito, reler alguns textos escritos por Eduardo Prado Coelho há meio século, quando ele lembrava o risco e a alegria de uma linguagem em que “se dissolvam os mitos que fomos construindo”.
O novo quarteto de Joshua Redman
No álbum World Falls Short [Blue Note], o saxofonista americano Joshua Redman apresenta um novo quarteto. Assim, na sua companhia estão Paul Cornish (piano), Philip Norris (baixo) e Nazir Ebo (bateria): uma estreia sedutora, enraizada em muitas e envolventes cumplicidades sonoras — eis o tema-título.
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>>> Paul Cornish lançará o seu primeiro álbum a 22 de agosto.
Travis Scott
— uma catástrofe vivida entre telemóveis
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Astroworld Festival, ou a multidão dos telemóveis |
Realizado na cidade de Houston, o Festival Astroworld de 2021, promovido pelo rapper Travis Scott, teve um saldo trágico de uma dezena de mortos: Trainwreck: The Astroworld Tragedy (Netflix) tenta compreender como tudo aconteceu — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 junho).
Em 2022, surgiu na Netflix Trainwreck: Woodstock ‘99, mini-série documental (três episódios) assinada por Jamie Crawford sobre o fiasco e, mais do que isso, a dantesca confusão vivida, em 1999, num concerto de celebração dos 30 anos do Festival de Woodstock (registado nesse clássico absoluto que é Woodstock, de Michael Wadleigh, estreado em 1970). Agora, a mesma plataforma lança Trainwreck: The Astroworld Tragedy, sobre os acontecimentos realmente trágicos vividos no Astroworld Festival de 2021, organizado pelo rapper Travis Scott na sua cidade natal, Houston (Texas).
Não é por acaso que a palavra “trainwreck” (cuja tradução mais eloquente será “catástrofe”) surge nestes dois títulos. Trata-se de testemunhar ocorrências que, até mesmo no plano mitológico, aproximam alguns eventos da música popular a vivências trágicas que, em última instância, podem pôr em causa a sobrevivência dos espectadores — lembremos o exemplo de Gimme Shelter (1970), sobre o mais terrível concerto (Altamonte) que os Rolling Stones protagonizaram.
No caso de Trainwreck: The Astroworld Tragedy, a realização de Yemi Bamiro, ainda que aplicando uma matriz de documentário tipicamente televisivo (cruzando imagens do evento e entrevistas), garante o bom senso necessário e suficiente para não transformar a sua exposição num “panfleto” sobre conceitos simplistas e, no limite, irresponsáveis. Dito de outro modo: este não é um filme que se refugie em generalizações moralistas sobre o “rap”, a “juventude” ou, em última instância, essa palavra “violência” que alguns discursos televisivos transformaram em bandeira pueril de muitas especulações gratuitas — o objectivo é a elaboração de um inventário jornalístico dos acontecimentos.
O Astroworld Festival nasceu em 2018 como uma evocação nostálgica de um parque temático (“Six Flags Astroworld”) ligado ao imaginário juvenil do próprio Travis Scott — o seu terceiro álbum de estúdio, editado nesse mesmo ano, intitula-se, precisamente, Astroworld. A edição que o documentário evoca, marcada por muitos erros de gestão dos movimentos da multidão de 50 mil espectadores, teria o saldo cruel de dez mortes, oito delas por asfixia.
Os testemunhos audiovisuais são tanto mais perturbantes quanto, na sua maioria, provêm de telemóveis de espectadores, por vezes continuando a dançar enquanto, a poucos metros, sem que ninguém se desse conta, havia pessoas a morrer. Da polícia local até à Live Nation (entidade organizadora do festival), a teia de responsabilidades da tragédia permanece, em vários aspectos, em discussão. Como possível ponto de partida dessa análise, fica uma observação de Scott Davidson, especialista na gestão de multidões: “A ideia de continuar um espectáculo, ao mesmo tempo que há nem que seja uma só pessoa a ser sujeita a uma massagem cardíaca, é totalmente louca.”
domingo, junho 22, 2025
Haim, All Over Me
Mais um teledisco das Haim, All Over Me, ampliando a multiplicaão audioviual do seu novo álbum, I Quit — numa sofisticação simples e eficaz, são reminsicências de um estilo primitivo, contaminado por um certo gosto cinéfilo. Realização de Ferina.
Uma história de amor assombrada pelo nazismo
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Johannes Hegemann e Liv Lisa Fries: memórias alemãs de 1942 |
As memórias da Segunda Guerra Mundial surgem em De Hilde, com Amor através de um par amoroso envolvido na resistência ao nazismo. com assinatura de Andreas Dresen, esta é uma narrativa diferente do tradicional “filme-de-guerra” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 junho).
Será que faz sentido abordar a Alemanha nazi através de uma narrativa melodramática? A pergunta é, obviamente, dispensável, quanto mais não seja porque a Segunda Guerra Mundial tem sido matéria narrativa dos géneros mais diversos, do musical segundo Otto Preminger (Carmen Jones, 1954) até à comédia do absurdo reinventada por Jerry Lewis (Onde Fica a Guerra?, 1970). Seja como for, não é todos os dias que deparamos com um filme sobre a repressão nazi como De Hilde, com Amor, produção alemã com assinatura de Andreas Dresen, tendo como base um argumento de Laila Stieler.
Melodrama, entenda-se, nada tem que ver com o sentido pejorativo com que a ideologia “telenovelesca” passou a citar aquele que é, para todos os efeitos, um dos géneros fulcrais da história do cinema — de Charles Chaplin a Paul Thomas Anderson. A sensibilidade melodramática interessa-se pelos recantos da intimidade humana, celebrando a irredutibilidade dos seus sentimentos e emoções.
Embora vivido em cenários alemães de 1942, De Hilde, Com Amor escapa às regras correntes do “filme de guerra” como retrato dos respectivos confrontos terrestres, aéreos ou marítimos. Estamos mesmo perante uma história centrada em cidadãos comuns alemães que, no começo, vivem as perseguições aos judeus como algo que permanece exterior à (aparente) estabilidade do seu mundo.
No seu centro está Hilde (Liv Lisa Fries), a jovem enfermeira que, como o título sugere, irá escrever ao seu bem-amado Hans (Johannes Hegemann), quando este é preso pela Gestapo. Acontece que Hans integra um foco de resistência que, através de um telégrafo, comunica com a União Soviética (a história inspira-se no grupo que ficou conhecido como “Orquestra Vermelha”); também envolvida nas actividades clandestinas de Hans, Hilde será acusada de traição e presa quando está grávida...
O filme segue, assim, uma história romântica brutalmente interrompida pela prisão dos protagonistas. Com uma componente social que está longe de ser secundária: Hilde e Hans não são personagens que se esgotem num qualquer padrão de “heróis políticos”, já que a acção surge sempre contaminada pela vulnerabilidade sua relação amorosa. O filme desenvolve-se através de uma estrutura que, embora tradicional, sabe criar uma fluidez dramática plena de contrastes.
Dito de outro modo: De Hilde, com Amor organiza-se através do recurso regular a “flashbacks” tanto mais sugestivos quanto não surgem por ordem cronológica, antes funcionam como ecos díspares e distantes do presente.
O envolvimento emocional da realização de Dresen (e também do hábil argumento de Stieler) evita qualquer heroicização fácil dos protagonistas. Numa cena emblemática do género melodramático (a conversa noturna junto a uma fogueira), Hilde fará mesmo um pequeno inventário de tudo aquilo de que tem medo: “De aranhas, de escaravelhos, dos nazis, do meu dentista, do amor.”
É provável que, face a De Hilde, com Amor, alguns espectadores evoquem a memória próxima de A Zona de Interesse, a realização de Jonathan Glazer que, em representação do Reino Unido, arrebatou o Óscar de melhor filme internacional de 2023 (depois de ter sido distinguido com o Grande Prémio do Festival de Cannes). É verdade que o trabalho de Glazer possui uma invulgar vibração trágica que o coloca entre os mais notáveis filmes deste século XXI sobre o nazismo, mas não é menos verdade que Dresen consegue também revisitar a Alemanha de 1942 sem ceder a esquematismos dramáticos ou ideológicos.
Daí que se justifique um destaque especial para a direção fotográfica assinada por Judith Kaufmann. A paleta cromática de De Hilde, com Amor evoca com subtileza as imagens da época, sem ceder a qualquer decorativismo “kitsch” e, sobretudo, sabendo utilizar a mais sedutora (e também mais complexa) fonte de iluminação: a luz natural.
sexta-feira, junho 20, 2025
Haim em The Tonight Show
Quando as canções resistem ao teste do palco... Eis um belo exemplo: as Haim visitaram Jimmy Fallon, em The Tonight Show, e Down to Be Wrong, um dos temas do novíssimo I Quit, renasceu através de uma contagiante fisicalidade — incluindo a guitarra de Danielle.
Gone girls
Aí está I Quit — o novo álbum das irmãs Haim é mesmo brilhante. Para já, eis o tema de abertura, Gone, contundente panfleto individualista disfarçado de balada romântica — poderoso.
I'll do whatever I want
I'll see who I wanna see
I'll fuck off whenever I want
I'll be whatever I need
quinta-feira, junho 19, 2025
Bruce Springsteen, Sunday Love
A nova antologia de Bruce Springsteen, Tracks II: The Lost Albums, chega às lojas no dia 27 de junho. Para já, vamos conhecendo alguns dos temas dos anunciados (e muito aguardados) "sete álbuns nunca ouvidos" — eis uma bela divagação romanesca intitulada Sunday Love.
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