1. Mesmo para os que se sentem distantes das canções dos Deolinda, o seu impacto — dir-se-ia de fenómeno de culto — é assaz interessante. Como muitos outros comportamentos revivalistas, na música e não só, há neles um efeito de "repetição" (de modelos da tradição popular) que, de uma maneira ou de outra, relança a questão social e simbólica das gerações e dos seus diferentes universos e valores.
2. Agora, o poder viral da canção Parva que Sou [em baixo, no Coliseu do Porto] está a gerar um efeito bem típico da aceleração mediática em que vivemos: em poucos dias, o tema desencadeou uma multiplicação de mensagens e links que faz com que seja já tratado como "hino" de uma geração [sugere-se a leitura do dossier publicado no Diário de Notícias, nomeadamente o artigo de Davide Pinheiro]. Vale a pena reflectir sobre tal conjuntura.
3. Não está em causa, repare-se, que a canção suscite pensamentos e afectos muito genuínos nas pessoas da referida geração — já definida como entre os 20 e 35 anos, isto é, genericamente envolvendo os que nasceram entre o pós-25 de Abril e o começo da década de 90. O que se discute é este efeito mediático que confunde a mera proliferação de mensagens com a produção de uma unidade simbólica que, de imediato, recebe o nome de "geração". É, aliás, um efeito característico das redes "sociais": impõem uma noção de colectivo apenas porque conseguem gerar quantificações mais ou menos elevadas — o trabalho ideológico, seja ele qual for, é substituído pela ideologia da quantidade.
4. Não estou, sequer, a contrapor um qualquer ideal geracional. Não estou, pelo menos, a contrapor crenças ou valores da minha geração — que é, também genericamente, a dos progenitores da que agora se identifica. Aliás, se formos por esse caminho (legítimo), teremos que reconhecer que aqueles que, actualmente, têm entre 50 e 65 anos deixaram um legado muito fraco que, agora, se mostra na sua anódina impotência utópica: é, no mínimo, uma desilusão que, de acordo com a letra de Parva que Sou, os filhos se fiquem pela queixa sindical de uma "geração sem remuneração" a quem ainda "falta o carro pagar".
5. Não posso esconder que, quando surgem comparações (e filiações) musicais entre os Deolinda e José Afonso, não encontro qualquer base pertinente de avaliação — em última análise, não encontro nada de comum entre o popular soft dos Deolinda e a crueza poética do autor de Venham Mais Cinco (o que, entenda-se, não me impede de rejeitar as muitas apropriações político-partidárias a que o legado musical de José Afonso tem sido sujeito). Em todo o caso, nesse aspecto, estamos no domínio das singularidades subjectivas — e geracionais, talvez... O que me choca é a possibilidade de este efeito viral, rapidamente exponenciado pela Net, lançar no domínio do debate público (?) o rótulo de 'Geração Parva' como uma espécie de item obrigatório para pensar e discutir os problemas — que não são poucos — dos que têm entre 20 e 35 anos. Nenhum deles se livra de, um dia destes, num qualquer programa de televisão, ser questionado nesse tom disparatado que triunfou no nosso espaço (des)informativo: "Afinal, a sua geração é parva ou não?..." Quando isso acontecer, acho que perderemos todos, seja qual for a data de nascimento que possamos encontrar no bilhete de identidade.