segunda-feira, junho 23, 2025

Travis Scott
— uma catástrofe vivida entre telemóveis

Astroworld Festival, ou a multidão dos telemóveis

Realizado na cidade de Houston, o Festival Astroworld de 2021, promovido pelo rapper Travis Scott, teve um saldo trágico de uma dezena de mortos: Trainwreck: The Astroworld Tragedy (Netflix) tenta compreender como tudo aconteceu — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 junho).

Em 2022, surgiu na Netflix Trainwreck: Woodstock ‘99, mini-série documental (três episódios) assinada por Jamie Crawford sobre o fiasco e, mais do que isso, a dantesca confusão vivida, em 1999, num concerto de celebração dos 30 anos do Festival de Woodstock (registado nesse clássico absoluto que é Woodstock, de Michael Wadleigh, estreado em 1970). Agora, a mesma plataforma lança Trainwreck: The Astroworld Tragedy, sobre os acontecimentos realmente trágicos vividos no Astroworld Festival de 2021, organizado pelo rapper Travis Scott na sua cidade natal, Houston (Texas).
Não é por acaso que a palavra “trainwreck” (cuja tradução mais eloquente será “catástrofe”) surge nestes dois títulos. Trata-se de testemunhar ocorrências que, até mesmo no plano mitológico, aproximam alguns eventos da música popular a vivências trágicas que, em última instância, podem pôr em causa a sobrevivência dos espectadores — lembremos o exemplo de Gimme Shelter (1970), sobre o mais terrível concerto (Altamonte) que os Rolling Stones protagonizaram.
No caso de Trainwreck: The Astroworld Tragedy, a realização de Yemi Bamiro, ainda que aplicando uma matriz de documentário tipicamente televisivo (cruzando imagens do evento e entrevistas), garante o bom senso necessário e suficiente para não transformar a sua exposição num “panfleto” sobre conceitos simplistas e, no limite, irresponsáveis. Dito de outro modo: este não é um filme que se refugie em generalizações moralistas sobre o “rap”, a “juventude” ou, em última instância, essa palavra “violência” que alguns discursos televisivos transformaram em bandeira pueril de muitas especulações gratuitas — o objectivo é a elaboração de um inventário jornalístico dos acontecimentos.
O Astroworld Festival nasceu em 2018 como uma evocação nostálgica de um parque temático (“Six Flags Astroworld”) ligado ao imaginário juvenil do próprio Travis Scott — o seu terceiro álbum de estúdio, editado nesse mesmo ano, intitula-se, precisamente, Astroworld. A edição que o documentário evoca, marcada por muitos erros de gestão dos movimentos da multidão de 50 mil espectadores, teria o saldo cruel de dez mortes, oito delas por asfixia.
Os testemunhos audiovisuais são tanto mais perturbantes quanto, na sua maioria, provêm de telemóveis de espectadores, por vezes continuando a dançar enquanto, a poucos metros, sem que ninguém se desse conta, havia pessoas a morrer. Da polícia local até à Live Nation (entidade organizadora do festival), a teia de responsabilidades da tragédia permanece, em vários aspectos, em discussão. Como possível ponto de partida dessa análise, fica uma observação de Scott Davidson, especialista na gestão de multidões: “A ideia de continuar um espectáculo, ao mesmo tempo que há nem que seja uma só pessoa a ser sujeita a uma massagem cardíaca, é totalmente louca.”

domingo, junho 22, 2025

Haim, All Over Me

Mais um teledisco das Haim, All Over Me, ampliando a multiplicaão audioviual do seu novo álbum, I Quit — numa sofisticação simples e eficaz, são reminsicências de um estilo primitivo, contaminado por um certo gosto cinéfilo. Realização de Ferina.

Uma história de amor assombrada pelo nazismo

Johannes Hegemann e Liv Lisa Fries: memórias alemãs de 1942

As memórias da Segunda Guerra Mundial surgem em De Hilde, com Amor através de um par amoroso envolvido na resistência ao nazismo. com assinatura de Andreas Dresen, esta é uma narrativa diferente do tradicional “filme-de-guerra” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 junho).

Será que faz sentido abordar a Alemanha nazi através de uma narrativa melodramática? A pergunta é, obviamente, dispensável, quanto mais não seja porque a Segunda Guerra Mundial tem sido matéria narrativa dos géneros mais diversos, do musical segundo Otto Preminger (Carmen Jones, 1954) até à comédia do absurdo reinventada por Jerry Lewis (Onde Fica a Guerra?, 1970). Seja como for, não é todos os dias que deparamos com um filme sobre a repressão nazi como De Hilde, com Amor, produção alemã com assinatura de Andreas Dresen, tendo como base um argumento de Laila Stieler.
Melodrama, entenda-se, nada tem que ver com o sentido pejorativo com que a ideologia “telenovelesca” passou a citar aquele que é, para todos os efeitos, um dos géneros fulcrais da história do cinema — de Charles Chaplin a Paul Thomas Anderson. A sensibilidade melodramática interessa-se pelos recantos da intimidade humana, celebrando a irredutibilidade dos seus sentimentos e emoções.
Embora vivido em cenários alemães de 1942, De Hilde, Com Amor escapa às regras correntes do “filme de guerra” como retrato dos respectivos confrontos terrestres, aéreos ou marítimos. Estamos mesmo perante uma história centrada em cidadãos comuns alemães que, no começo, vivem as perseguições aos judeus como algo que permanece exterior à (aparente) estabilidade do seu mundo.
No seu centro está Hilde (Liv Lisa Fries), a jovem enfermeira que, como o título sugere, irá escrever ao seu bem-amado Hans (Johannes Hegemann), quando este é preso pela Gestapo. Acontece que Hans integra um foco de resistência que, através de um telégrafo, comunica com a União Soviética (a história inspira-se no grupo que ficou conhecido como “Orquestra Vermelha”); também envolvida nas actividades clandestinas de Hans, Hilde será acusada de traição e presa quando está grávida...
O filme segue, assim, uma história romântica brutalmente interrompida pela prisão dos protagonistas. Com uma componente social que está longe de ser secundária: Hilde e Hans não são personagens que se esgotem num qualquer padrão de “heróis políticos”, já que a acção surge sempre contaminada pela vulnerabilidade sua relação amorosa. O filme desenvolve-se através de uma estrutura que, embora tradicional, sabe criar uma fluidez dramática plena de contrastes.
Dito de outro modo: De Hilde, com Amor organiza-se através do recurso regular a “flashbacks” tanto mais sugestivos quanto não surgem por ordem cronológica, antes funcionam como ecos díspares e distantes do presente. O envolvimento emocional da realização de Dresen (e também do hábil argumento de Stieler) evita qualquer heroicização fácil dos protagonistas. Numa cena emblemática do género melodramático (a conversa noturna junto a uma fogueira), Hilde fará mesmo um pequeno inventário de tudo aquilo de que tem medo: “De aranhas, de escaravelhos, dos nazis, do meu dentista, do amor.”
É provável que, face a De Hilde, com Amor, alguns espectadores evoquem a memória próxima de A Zona de Interesse, a realização de Jonathan Glazer que, em representação do Reino Unido, arrebatou o Óscar de melhor filme internacional de 2023 (depois de ter sido distinguido com o Grande Prémio do Festival de Cannes). É verdade que o trabalho de Glazer possui uma invulgar vibração trágica que o coloca entre os mais notáveis filmes deste século XXI sobre o nazismo, mas não é menos verdade que Dresen consegue também revisitar a Alemanha de 1942 sem ceder a esquematismos dramáticos ou ideológicos.
Daí que se justifique um destaque especial para a direção fotográfica assinada por Judith Kaufmann. A paleta cromática de De Hilde, com Amor evoca com subtileza as imagens da época, sem ceder a qualquer decorativismo “kitsch” e, sobretudo, sabendo utilizar a mais sedutora (e também mais complexa) fonte de iluminação: a luz natural.

Como se fosse um TikTok visto no telemóvel...

sexta-feira, junho 20, 2025

Haim em The Tonight Show

Quando as canções resistem ao teste do palco... Eis um belo exemplo: as Haim visitaram Jimmy Fallon, em The Tonight Show, e Down to Be Wrong, um dos temas do novíssimo I Quit, renasceu através de uma contagiante fisicalidade — incluindo a guitarra de Danielle.
     

Gone girls

Aí está I Quit — o novo álbum das irmãs Haim é mesmo brilhante. Para já, eis o tema de abertura, Gone, contundente panfleto individualista disfarçado de balada romântica — poderoso.
 
I'll do whatever I want
I'll see who I wanna see
I'll fuck off whenever I want
I'll be whatever I need

quinta-feira, junho 19, 2025

Bruce Springsteen, Sunday Love

A nova antologia de Bruce Springsteen, Tracks II: The Lost Albums, chega às lojas no dia 27 de junho. Para já, vamos conhecendo alguns dos temas dos anunciados (e muito aguardados) "sete álbuns nunca ouvidos" — eis uma bela divagação romanesca intitulada Sunday Love.

quarta-feira, junho 18, 2025

Veronica Electronica, aliás, Madonna

As remisturas de Ray of Light (1998), concebidas como uma espécie de duplicação electrónica do original vão, finalmente, ser editadas. Madonna reencontra, assim, o seu fantasma artístico a que deu o nome de Veronica Electronica — um renascimento musical e conceptual com lançamento marcado para 25 de julho. Eis o trailer do álbum e, em baixo, o tema Skin.
 


Alfred Brendel (1931 - 2025)

Na companhia de Minnie

Escutemos o Impromptu Op. 90 (Andante), de Franz Schubert, por Alfred Brendel. Ou como o pianista que, depois dos 16 anos, nunca mais recebeu lições formais de piano transfigurava em coisa muito sua os sons ambíguos do classicismo marcado pela libertação romântica.
Brendel nasceu em Wizemberk, Checoslováquias, a 5 de janeiro de 1931, tendo falecido a 17 de junho, em Londres — contava 94 anos.
 

>>> Obituário: NPR + Gramophone + BBC.

domingo, junho 15, 2025

Fiona Apple: como fazer uma canção política

Nas suas actividades filantrópicas e de apoio social, Fiona Apple tem servido como observadora do funcionamento dos tribunais, deparando com muitas situações em que as pessoas presentes aos juízes (sobretudo mulheres), mesmo quando não se confirma qualquer acusação, só são libertadas depois de pagarem uma fiança específica (cash bail: valor médio de 10 mil dólares) para os seus casos. Na prática, sem condições para pagar o valor imposto por lei, acabam por ser encarceradas.
A autor de Fetch the Bolt Cutters (o seu álbum mais recente, 2020) decidiu dar conta da situação numa composição de sua autoria. Pretrial (let her go home) é um exemplo modelar do que é, ou pode ser, um tema de consistente intervenção política, alheio a estereótipos "militantes" — ficará, por certo, como uma das grandes canções de 2025.