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Bono como cantor e actor da sua própria história |
Redescobrimos Bono como cantor dos U2 e actor da sua própria vida: filmado no palco do Beacon Theatre, em Nova Iorque, Bono: Stories of Surrender (Apple TV+) supera os limites do tradicional “filme-concerto”; a realização é de Andrew Dominik, o cineasta de Blonde — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 maio).
Decididamente, na maior parte das plataformas disponíveis em Portugal, a arte de dar títulos aos filmes não é questão prioritária. O exemplo de Bono: Stories of Surrender aí está para ilustrar a indiferença com que, tantas vezes, o assunto é encarado. Assim, o filme foi lançado na Apple TV+ como Bono: Histórias de Surrender.
“Histórias de Surrender”? Acontece que, em 2022, o vocalista dos U2 lançou uma autobiografia intitulada Surrender: 40 Songs, One Story — a edição portuguesa, também de 2022, com chancela da editora Objectiva, chama-se Surrender: 40 Canções, uma História. Além do mais, as memórias de Bono estão interligadas com a edição, em 2023, de um álbum dos U2, Songs of Surrender, revisitando, precisamente, com novos arranjos, alguns dos seus temas mais emblemáticos.
Dito de outro modo: não é fácil traduzir ou contextualizar o verbo “surrender”. No caso do filme, talvez esta fosse uma das excepções em que, serenamente, mais valia manter (todo) o original, evitando a confusão adoptada. Até porque, de facto, o verbo emerge em várias significações que pontuam o concerto que constitui a matéria viva do filme realizado pelo neo-zelandês Andrew Dominik.
O significado de “render” ou “rendição” (imediatamente evocado por “surrender”) é escasso para dar conta daquilo que está em jogo — e que, importa sublinhar, se revela vital no discurso de Bono ao longo de todo o concerto. Este é mesmo um daqueles casos em que nenhum verbo português parece poder abarcar a pluralidade de sugestões e significações do original. Porquê? Porque a “rendição” de que aqui se fala não se confunde com a entrega a um poder superior. O que Bono descreve, comenta e canta é a sua capacidade de, finalmente, lidar com as convulsões de toda uma vida. Trata-se, primeiro, de reconhecer ilusões e equívocos, desembocando na capacidade de os colocar lado a lado com as alegrias vividas — humildade e aceitação são, assim, os temas aglutinadores destas Stories of Surrender.
A noção corrente de “filme-concerto” é, por isso, insuficiente para dar conta daquilo a que assistimos. São vibrantes e contrastadas as memórias que se cruzam — do nascimento dos U2 até à sua condição de banda “mainstream” (de acordo com o termo que o próprio Bono aplica), passando pelas palavras e, sobretudo, os silêncios da sua difícil relação com o pai. São matérias de uma teatralidade feliz, com o palco do lendário Beacon Theatre, na Broadway (sala inaugurada em 1929), a transfigurar-se em lugar de muitas evocações minimalistas, no limite bastando uma cadeira e um foco de luz. Sem esquecer que tudo isso se intensifica através da poesia primitiva das imagens a preto e branco, assinadas por Erik Messerschmidt (“oscarizado” em 2021 pela direção fotográfica de Mank, de David Fincher).
Com a realização de Bono: Stories of Surrender, Andrew Dominik merece que o encaremos para lá da condição de funcionário versátil que, por vezes, tende a resumir o seu trabalho. Lembrando, antes do mais, que na sua filmografia encontramos uma importante ligação com as matérias musicais: são dele os documentários One More Time with Feeling (2016) e This Much I Know to Be True (2022), ambos sobre Nick Cave.
Depois da estreia na longa-metragem, com o policial Chopper (2000), uma produção australiana, Dominik assinou dois títulos capazes de reimaginar as regras clássicas dos respectivos géneros: um western, O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford (2007), e um thriller, Mata-os Suavemente (2012), ambos protagonizados e produzidos por Brad Pitt. Finalmente, o seu retrato trágico de Marilyn Monroe, Blonde (2022), com Ana de Armas, a partir do romance de Joyce Carol Oates (de novo com produção de Brad Pitt), confirmou-o como um invulgar arqueólogo das mitologias do espectáculo.