![]() |
Astroworld Festival, ou a multidão dos telemóveis |
Realizado na cidade de Houston, o Festival Astroworld de 2021, promovido pelo rapper Travis Scott, teve um saldo trágico de uma dezena de mortos: Trainwreck: The Astroworld Tragedy (Netflix) tenta compreender como tudo aconteceu — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 junho).
Em 2022, surgiu na Netflix Trainwreck: Woodstock ‘99, mini-série documental (três episódios) assinada por Jamie Crawford sobre o fiasco e, mais do que isso, a dantesca confusão vivida, em 1999, num concerto de celebração dos 30 anos do Festival de Woodstock (registado nesse clássico absoluto que é Woodstock, de Michael Wadleigh, estreado em 1970). Agora, a mesma plataforma lança Trainwreck: The Astroworld Tragedy, sobre os acontecimentos realmente trágicos vividos no Astroworld Festival de 2021, organizado pelo rapper Travis Scott na sua cidade natal, Houston (Texas).
Não é por acaso que a palavra “trainwreck” (cuja tradução mais eloquente será “catástrofe”) surge nestes dois títulos. Trata-se de testemunhar ocorrências que, até mesmo no plano mitológico, aproximam alguns eventos da música popular a vivências trágicas que, em última instância, podem pôr em causa a sobrevivência dos espectadores — lembremos o exemplo de Gimme Shelter (1970), sobre o mais terrível concerto (Altamonte) que os Rolling Stones protagonizaram.
No caso de Trainwreck: The Astroworld Tragedy, a realização de Yemi Bamiro, ainda que aplicando uma matriz de documentário tipicamente televisivo (cruzando imagens do evento e entrevistas), garante o bom senso necessário e suficiente para não transformar a sua exposição num “panfleto” sobre conceitos simplistas e, no limite, irresponsáveis. Dito de outro modo: este não é um filme que se refugie em generalizações moralistas sobre o “rap”, a “juventude” ou, em última instância, essa palavra “violência” que alguns discursos televisivos transformaram em bandeira pueril de muitas especulações gratuitas — o objectivo é a elaboração de um inventário jornalístico dos acontecimentos.
O Astroworld Festival nasceu em 2018 como uma evocação nostálgica de um parque temático (“Six Flags Astroworld”) ligado ao imaginário juvenil do próprio Travis Scott — o seu terceiro álbum de estúdio, editado nesse mesmo ano, intitula-se, precisamente, Astroworld. A edição que o documentário evoca, marcada por muitos erros de gestão dos movimentos da multidão de 50 mil espectadores, teria o saldo cruel de dez mortes, oito delas por asfixia.
Os testemunhos audiovisuais são tanto mais perturbantes quanto, na sua maioria, provêm de telemóveis de espectadores, por vezes continuando a dançar enquanto, a poucos metros, sem que ninguém se desse conta, havia pessoas a morrer. Da polícia local até à Live Nation (entidade organizadora do festival), a teia de responsabilidades da tragédia permanece, em vários aspectos, em discussão. Como possível ponto de partida dessa análise, fica uma observação de Scott Davidson, especialista na gestão de multidões: “A ideia de continuar um espectáculo, ao mesmo tempo que há nem que seja uma só pessoa a ser sujeita a uma massagem cardíaca, é totalmente louca.”