quarta-feira, dezembro 30, 2020

O ano em que Godard
fez 90 anos [4/4]

Bérangère Allaux, Para Sempre Mozart (1996)

No dia 3 de dezembro, Jean-Luc Godard celebrou 90 anos. Do cinema clássico à sedução das novas tecnologias, a sua obra de mais de seis décadas evolui em paralelo com as convulsões das sociedades: ele é um experimentador e, à sua maneira, um observador crítico das histórias individuais e colectivas — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'Godard, o louco'.

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No constante processo de inventariação e discussão de novas linguagens, Godard tem sido também um criador atento às transformações das bases técnicas do cinema. Ou melhor, do audiovisual. A par de cineastas como o sueco Ingmar Bergman (1918-2007) e o italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007), foi mesmo pioneiro na utilização das novas câmaras de video. Exemplo fulcral é, em 1975, o filme Número Dois, retrato de uma família contemporânea, entre realismo e fábula, dando conta, em particular, de uma realidade cujo peso social e político, 45 anos depois, conhecemos bem: a crescente exposição do cidadão comum às mensagens televisivas. 
O cruzamento da memória do cinema com os novos recursos videográficos de tratamento e manipulação das imagens (e sons) teria a sua concretização nas História(s) do Cinema (1989-1999), objecto monumental de quatro horas e meia de duração (apresentado nas televisões, regra geral, em quatro episódios). O plural entre parêntesis sublinha o poder do cinema face ao tempo da sua gestação: fazer a história do cinema é também coleccionar as histórias que nele desembocam, ou dele emanam, a começar pelas memórias do Holocausto e de todos os traumas colectivos que pontuam o século XX (o “século do cinema”, precisamente). 
Dizer que Godard se coloca numa posição de vanguarda será, talvez, demasiado fácil. Vejam-se as suas experiências com o 3D, primeiro no filme colectivo 3x3D (2012) [trailer], depois na longa-metragem Adeus à Linguagem (2014). O que mais conta não é, de modo algum, a ostentação tecnológica, mas sim a demanda existencial, essa loucura branda que assombra Pierrot/Belmondo. Veja-se também esse filme mágico, rodado em 1996, em que algumas personagens, num cenário de muitas memórias trágicas (Sarajevo), procuram linguagens e modos de encenação para dar conta dos impasses do destino individual e colectivo. O título possui qualquer coisa de libertador: Para Sempre Mozart

10 álbuns de 2020 [6]

Bernard Herrmann

Mago musical de nove filmes de Alfred Hitchcock, Herrmann, falecido em 1975 (contava 64 anos), teve em 2020 uma estreia discográfica: esta é, de facto, a primeira gravação editada de "Whitman", um drama radiofónico com texto organizado por Norman Corwin a partir de poemas da obra-mestra de Walt Whitman, Leaves of Grass. Uma verdadeira pérola, realmente "melo-dramática", interpretada pelo PostClassical Ensemble, sob a direção Angel Gil-Ordóñez — para que não haja confusões, o álbum fecha com esta prodigiosa recriação da música de Psycho (1960), num arranjo de John Mauceri.



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[ 1. Fiona Apple ] [ 2. Víkingur Ólafsson ] [ 3. Bob Dylan ] [ 4. Lianne La Havas ] [ 5. Keith Jarrett ]

terça-feira, dezembro 29, 2020

McCartney a solo — Parte III

Ciclos da vida: em 1970, McCartney surgiu como afirmação de solidão e identidade na sequência do apocalipse dos Beatles; em 1980, McCartney II partiu do fim dos Wings para dizer que a música continuava. 2020 e McCartney III aí está para dizer que... Paul McCartney está aí. 
Aos 78 anos, não se trata de provar nada, a não ser que a solidão continua a não decompor a identidade, antes enriquecendo-a com mais um disco a solo. Literalmente: tal como nos capítulos anteriores, Paul tem tudo a seu cargo, voz e instrumentos, composição e imaginação. E não deixa de ser surpreendente que aquele a quem foi colada a imagem da personagem soft, suave e romântica, seja um tão elaborado artesão da crueza envolvente das percussões.
Dessa plenitude feliz, pudica em relação à possibilidade de qualquer transcendência, eis a abertura, Long Tailed Winter Bird.

"Diário de Notícias", 156 anos

29 de dezembro de 2020: no dia do seu 156º aniversário, o Diário de Notícias volta a ser um jornal diário em papel — também disponível na internet.

segunda-feira, dezembro 28, 2020

10 filmes de 2020 [5]

Spike Lee

Eis uma conjugação criativa nascida de uma cumplicidade perfeita: de um lado, a lógica teatral da performance de David Byrne; do outro, a subtileza de Spike Lee face ao espectáculo e às suas nuances metafóricas. O resultado parece abrir uma nova gramática para o próprio conceito de "filme-concerto", ainda que não possamos deixar de evocar um modelo inspirador: Stop Making Sense (1984), de Jonathan Demme, com os Talking Heads — entenda-se: David Byrne.



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[ 1. Uma Vida Alemã ] [ 2. Mank ] [ 3. Malmkrog ] [ 4. Da 5 Bloods ]

10 álbuns de 2020 [5]

Keith Jarrett

Impossível escutar este registo de uma digressão europeia de 2016 sem sentir a sua cruel simbologia: Keith Jarrett sofreu dois AVC em 2018 (ele próprio o revelou em outubro deste ano, em entrevista a The New York Times); com o lado esquerdo parcialmente paralisado, o seu regresso aos palcos afigura-se altamente improvável. Entre os geniais improvisos e a recriação de standards, o concerto de Budapeste, realizado na Sala Béla Bartók, possui qualquer coisa de cerimónia religiosa tecida de trágica alegria — eis a "Parte VII".



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[ 1. Fiona Apple ] [ 2. Víkingur Ólafsson ] [ 3. Bob Dylan ] [ 4. Lianne La Havas ]

O ano em que Godard
fez 90 anos [3/4]

Brigitte Bardot, O Desprezo (1963)

No dia 3 de dezembro, Jean-Luc Godard celebrou 90 anos. Do cinema clássico à sedução das novas tecnologias, a sua obra de mais de seis décadas evolui em paralelo com as convulsões das sociedades: ele é um experimentador e, à sua maneira, um observador crítico das histórias individuais e colectivas — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'Godard, o louco'.

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A dimensão social dos filmes de Godard envolve [mesmo], por vezes, a integração dos símbolos mais universais do continente cinematográfico. Ou seja: as estrelas. A noção segundo a qual o experimentalismo godardiano foi acontecendo apenas através de actores mais ou menos marginais, sem qualquer relação afectiva com o chamado grande público, é mesmo produto de uma disparatada cegueira histórica. 
Será preciso recordar o caso exemplar de O Desprezo (1963)? Ao fazer a crónica dos bastidores da rodagem de um filme na ilha de Capri, tendo como ponto de partida o romance homónimo de Alberto Moravia, Godard integrava no elenco um outro dos seus mestres, o alemão Fritz Lang (“no papel de Fritz Lang”), a par de Michel Piccoli e Brigitte Bardot — e não será exagero sublinhar que Bardot, mais do que um símbolo do cinema francês, era uma das grandes estrelas internacionais. 
E que dizer do paradoxo de Tudo Vai Bem? Estava-se em 1972 e Godard saía da chamada “fase militante”: os seus filmes sobre as clivagens do pós-Maio de 68 ilustravam a utopia de fazer “politicamente filmes políticos”, ao mesmo tempo que enfrentavam imensas dificuldades de difusão. Como superar esse isolamento? Reflectindo sobre tais impasses, sem dúvida, mas também voltando a fazer um filme no coração da grande indústria: Tudo Vai Bem tem chancela da Gaumont francesa, contando com duas estrelas que há muito tinham transcendido as fronteiras dos respectivos países. Quer dizer: a americana Jane Fonda e o francês Yves Montand. 
Estamos, afinal, a falar do cineasta que vive os efeitos de Maio de 68 estipulando a necessidade de não encerrar o labor cinematográfico nos limites das fronteiras nacionais. Na prática, isso levou-o a Inglaterra para rodar One Plus One (“um mais um” porque era preciso “recomeçar do zero”). Não exactamente para fazer uma “reportagem”, antes para acompanhar os Rolling Stones durante as sessões de gravação do álbum Beggars Banquet… Aliás, contra a opinião de Godard, o filme passou a ser distribuído como Sympathy for the Devil, título da faixa de abertura do álbum [trailer — restauro 4K].

domingo, dezembro 27, 2020

A omnipresença da pandemia
ou o império da emoção

GEORGE GROSZ
Pessoas
1919

A. Hiper-saturação do social pelas emoções: não é um efeito directo da pandemia, antes uma componente cultural — nada mais cultural que o mediático, sobretudo o televisivo — que a omnipresença do vírus veio empolar até ao mais irracional delírio.

B. A saber: tudo se pode converter em manifestação discursiva de alguma emoção, emoção essa que é apresentada, tratada e incensada como uma verdade sem contradições, mecânica no funcionamento, compulsiva na aceitação.

C. Em nome da emoção quase tudo se transfigura em arma ideológica, tudo pode adquirir o valor de uma normalização inquestionável. Ninguém arrisca, politicamente, problematizando a vivência unilateral da democracia através da emoção e do seu imperialismo cognitivo.

sábado, dezembro 26, 2020

10 filmes de 2020 [4]

Spike Lee

Das muitas facetas da identidade afro-americana às convulsões da América de Trump, na senda do anterior BlacKkKlansman (2018), Spike Lee desenha o mapa de um tempo interior, made in USA, de que a guerra do Vietname é, de uma só vez, a origem e o fantasma. Tudo isso envolvido numa tessitura musical — da música original do fiel aliado Terence Blanchard às memórias lendárias de Marvin Gaye — que confirmam o seu cinema como uma admirável aventura sinfónica. Monumental, eis a palavra.



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[ 1. Uma Vida Alemã ] [ 2. Mank ] [ 3. Malmkrog ]

Para acabar com os anos 60
— "Gimme Shelter" & etc.

Mick Jagger, Gimme Shelter (1970)

O documentário Gimme Shelter, realizado pelos irmãos Maysles, completou meio século de existência (foi lançado a 6 de Dezembro de 1970): nele se regista o lendário e trágico concerto de Altamont, na Califórnia, com os Rolling Stones como protagonistas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 dezembro). 

A pandemia impediu que chegasse este ano às salas de cinema o filme The Beatles: Get Back, de Peter Jackson — teve estreia marcada para 4 de setembro, está agora agendado para 27 de agosto de 2021. O seu ponto de partida é outro filme, Let it Be (1970), de Michael Lyndsay-Hogg, sobre as sessões de gravação do álbum homónimo dos Beatles, o derradeiro da banda de Liverpool. Jackson teve acesso a todo o material filmado por Lyndsay-Hogg (55 horas!), podendo assim recontar uma despedida simbolicamente indissociável das convulsões culturais da década de 60. 
Através da música, e muito para lá da música, importa voltar a questionar a visão simplista segundo a qual os sixties descobriram a ideia de “liberdade”, tendo sido vividos como um catálogo de êxtases pueris, aqui e ali pontuados por alguns excessos mais ou menos caricatos… Como se as vidas de tempos tão complexos e fascinantes pudessem ser reduzidas a essa liofilização mediática. 
As memórias do filme dos Beatles são vibrantes e paradoxais. Numa época de sensibilidade potencialmente trágica, sem o moralismo quotidiano das redes (ditas) sociais, a sociabilidade das notícias envolvia outras durações e diferentes modelos de percepção. Assim, o fim dos Beatles não surgiu como manchete abrupta de determinado dia — mesmo se sabemos que foi a 10 de abril de 1970 que Paul McCartney declarou publicamente que não via hipótese de renovar a dupla criativa Lennon-McCartney —, para desaparecer poucos dias depois na voragem de outras “notícias” sobre coisa nenhuma. 
Dir-se-ia que a irreversível decomposição dos Beatles se instalou, não apenas como ruptura temporal, mas também como desafio às próprias medidas do tempo. A pulsão utópica que o quarteto protagonizou (a par de muitas outras figuras da época) esvaziava-se como uma epopeia a que alguma força maligna teria roubado a redenção de um capítulo final. 
A narrativa de “fim de um tempo” parece ter contribuído para que o filme Let it Be desaparecesse, até mesmo do mercado do DVD, como se o pressentimento do desenlace artístico que nele se expõe fosse mitologicamente intolerável. Seja como for, está prevista a sua reposição em paralelo com a estreia do filme de Jackson. Para já, em algumas lojas virtuais, embora mantido no catálogo, surge acompanhado por um esclarecimento bizarro: “Não sabemos quando, ou se, este item voltará a estar disponível.” 
Mesmo invisível, vale a pena lembrar que Let it Be possui a capacidade simbólica de condensar alegrias e dores de uma conjuntura que, de modo exemplar, foi apropriada pelo cinema, ou melhor, também vivida através dos filmes. Igualmente emblemático dessa dinâmica é outro título estreado no mesmo ano, há precisamente meio século: Gimme Shelter, lançado a 6 de dezembro de 1970. 
Trata-se de um momento fundamental na obra documental dos irmãos Albert e David Maysles, neste caso associados a Charlotte Zwerin. O título provém da canção dos Rolling Stones que serve de abertura ao álbum Let it Bleed (1969), mas o contexto é totalmente diferente daquele que gerou o filme dos Beatles: este é o registo do lendário e trágico concerto de Altamont, na Califórnia, realizado a 6 de dezembro de 1969 (um ano antes, portanto, do lançamento do filme dos Maysles). 
Musicalmente exuberante, o evento ficou marcado por diversos episódios de violência. Num deles, junto ao palco, envolvendo elementos dos Hells Angels encarregados da “segurança” do concerto, morreu Meredith Curly Hunter, jovem afro-americano que completara 18 anos há pouco mais de um mês. Numa das sequências mais perturbantes de Gimme Shelter, vemos os elementos dos Rolling Stones a assistir pela primeira vez às imagens registadas pelos Maysles, silenciosos e estupefactos perante a confusão que, em boa verdade, na altura, não conseguiram decifrar [video]. São momentos reveladores de um poder cinematográfico cuja pertinência não se perdeu: não a produção de manchetes sensacionalistas para usar e deitar fora, antes a contemplação de uma realidade irrecusável. Para muitos, os anos 60 acabaram aí — no calendário e na mitologia. 

sexta-feira, dezembro 25, 2020

10 álbuns de 2020 [4]

Lianne La Havas

Inglesa de ascendência grega e jamaicana, Lianne La Havas identificou o seu terceiro álbum pelo próprio nome. A pouco habitual "redundância" faz todo o sentido: no domínio de uma pop dita alternativa, contaminada pelos muitos sabores da herança R&B, ela impôs-se como uma voz de depurada sofisticação, tradicional na postura, heterodoxa nas deambulações. Tudo apresentado em nome de uma intimidade magoada que encontra na música a simbologia perfeita do seu resgate — Bittersweet, precisamente.



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[ 1. Fiona Apple ] [ 2. Víkingur Ólafsson ] [ 3. Bob Dylan ]

Na América de Patti Smith

São Jerónimo no seu estúdio:
a gravura de Dürer, com data de 1514,
é convocada por Patti Smith para escrever sobre o presente

O mais recente livro de Patti Smith, O Ano do Macaco, começa no ano da eleição de Donald Trump para desembocar nas agruras deste tempo de pandemia: compreender o mundo é também viajar num sonho dentro de um sonho — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Novembro). 

A imagem de São Jerónimo no seu estúdio, criada por Albrecht Dürer em 1514, é uma das ilustrações do novo livro de Patti Smith, O Ano do Macaco (ed. Quetzal, tradução de Helder Moura Pereira). Em boa verdade, designá-la como uma “ilustração” pressupõe uma lógica descritiva que o próprio livro nos leva a questionar. Para Patti Smith, as imagens não são uma mera visualização de tudo aquilo que as palavras referem, evocam ou pressentem; antes uma companhia que nos ajuda a lidar com um mistério antigo: escrever e produzir imagens são formas entrelaçadas de compreender o mundo.
Compreender o mundo? Eis um trabalho que vale a pena empreender para lá da esforçada objectividade dos noticiários televisivos. Em jogo está a ilusória transparência do tempo, esse falhanço permanente com que designamos o “agora”, para logo a seguir reconhecermos que chegamos sempre atrasados — já passou. A ampulheta de vidro que Dürer colocou lá ao fundo, ao centro, atrás de São Jerónimo, testemunha o irrisório desejo de tudo medirmos: “Ainda que seja mais do que provável a existência de um princípio objetivo que nos diga a velocidade com que a areia passa de um lado ao outro da ampulheta, não há vantagem em possuir um vidro de melhor qualidade ou grãos de areia mais perfeitos.”
Esta corrida contínua do tempo, porventura contra o tempo, não é um aparato teórico. E também não tem nada de inacessível ou esotérico. É mesmo um dado corrente, singelo, não necessariamente banal, de qualquer existência humana. Pode manifestar-se, por exemplo, como desconcertante saldo de uma refeição: “O meu esparguete já não estava no prato. Mal me lembrava de o ter comido. A conta tinha a data de 1 de fevereiro. Para onde se teria evaporado janeiro?”
Daí que os sonhos de Patti Smith pontuem muitos momentos do livro, a ponto de levar o leitor a formular uma pergunta bizarra: será que ela escreveu enquanto sonhava? Isto porque o sonho não se anuncia como uma cena alternativa, à maneira daqueles filmes em que o ecrã começa a ficar turvo, a imagem a desfocar-se, e já sabemos que “isto agora não é a realidade”… Na escrita de Patti Smith sonhar é tão só alargar as fronteiras da realidade, aceitando o misto de insensatez e beleza que todo esse movimento pode envolver: “Um botão ficara caído aos meus pés. Um pequeno botão de plástico cinzento com uma fina linha agarrada, que meti no bolso como se fosse uma moeda da sorte, uma espécie de sinal de um sonho dentro de outro sonho.”
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Qual ponto de fuga em que brilha uma luz difícil de contemplar, a morte vai-se instalando como destino suspenso de todo o paciente labor da escrita. Naturalmente, apetece dizer — mesmo se esta Natureza resiste a ser descrita ou apropriada. É preciso aceder a diferentes medidas do tempo, incluindo o calendário chinês que justifica o título do livro: “Era o Ano do Macaco e eu tinha sido teletransportada para um novo território, sendo deixada sob sol impiedoso numa estrada sem uma única sombra.”
Aqueles que vão morrer adquirem, por isso, uma intensidade tecida de amor e angústia. Corria o ano de 2016 e Patti Smith convoca duas personagens fulcrais da sua intimidade artística: o poeta e produtor musical Sandy Pearlman, ligado aos Blue Öyster Cult, banda essencial na trajectória da autora, e o escritor, actor e cineasta Sam Shepard, companheiro de todas as aventuras afectivas e filosóficas (falecidos com um ano de intervalo, a 26 de julho de 2016 e 27 de julho de 2017, respectivamente).
Recordá-los é um gesto pleno de contrastes: olhamos uma privacidade que mantemos a uma distância pudica, ao mesmo tempo que ziguezagueamos entre o triunfo de Donald Trump nas eleições de 2016 (“Tentei ignorar o aperto na garganta, consequência de um pavor que crescia a cada segundo”) e a evidência da pandemia de 2020 em que o livro se suspende. No horizonte, afinal mágico, deparamos com a mesma entidade, terna e cruel, retratada por outros grandes narradores, de David W. Griffith a Don DeLillo, passando por Bob Dylan. A saber: a mãe América.

quinta-feira, dezembro 24, 2020

10 filmes de 2020 [3]

Cristi Puiu

Subitamente, um filme devolve-nos a matéria mais sensual que o cinema pode conter: a palavra. A bavardage dos senhores que se encontram numa mansão romena, em finais do século XIX, envolve mecanismos de poder que são, necessariamente, formas de entendimento do mundo, suas hierarquias, valores e fantasmas. O espaço e o tempo ressurgem, assim, não apenas como medidas narrativas, mas também matérias políticas da vida social — cristalino.



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[ 1. Uma Vida Alemã ] [ 2. Mank ]

quarta-feira, dezembro 23, 2020

10 álbuns de 2020 [3]

Bob Dylan

O lançamento do single Murder Most Foul, em Março, deu o mote: Dylan reassumia-se como trovador do seu país, história e imaginário confundidos numa mesma mágoa utópica, tendo como ponto de fuga a figura emblemática de John Kennedy. O criador e intérprete de trovas faz questão em explorar a ambivalência de qualquer rótulo — há mesmo uma canção que se intitula False Prophet, mas o que nela se diz é que "Não sou um falso profeta / Apenas sei o que sei / Vou onde só os solitários conseguem ir."



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[ 1. Fiona Apple ] [ 2. Víkingur Ólafsson ]

O ano em que Godard
fez 90 anos [2/4]

A Mulher Casada (1964)

No dia 3 de dezembro, Jean-Luc Godard celebrou 90 anos. Do cinema clássico à sedução das novas tecnologias, a sua obra de mais de seis décadas evolui em paralelo com as convulsões das sociedades: ele é um experimentador e, à sua maneira, um observador crítico das histórias individuais e colectivas — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'Godard, o louco'.

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Foram tempos [no cinema francês] de genuínas revoluções formais e narrativas. A par dos companheiros da Nova Vaga — incluindo ainda autores como Eric Rohmer, Jacques Rivette ou Claude Chabrol —, Godard inspirava-se nos grandes mestres do classicismo europeu e americano para inventar surpreendentes formas de contar histórias, de alguma maneira desafiando o espectador para novas experiências, e diferentes prazeres, face a um ecrã de cinema.
Daí a imagem de marca de Godard como experimentador nato, capaz de conceber cada filme como um objecto susceptível de superar e até, no limite, desmentir as proezas do anterior. Depois de À Bout de Souffle, seguiram-se projectos tão diversos como Uma Mulher é uma Mulher (1961), celebrando a tradição da comédia musical, Viver a Sua Vida (1962), crónica social sobre a prostituição em Paris, e O Soldado das Sombras (1963), sobre a guerra da Argélia.
Há mesmo uma anedota clássica que define essa pulsão experimental. Assim, conta-se que, um dia, Godard terá sido questionado sobre as suas narrativas nada convencionais: afinal, os seus filmes tinham, ou não, “princípio, meio e fim”? A resposta, embora afirmativa, incluía uma pequena ressalva: “Sim, mas não necessariamente por essa ordem”…
Seja como for, a visão do mundo que perpassa em seis décadas de trabalho está longe de se esgotar num formalismo mais ou menos exuberante. A obstinada interrogação das formas — entenda-se: do modo de contar uma história — revela-se inseparável de uma ansiedade que, sendo estética, só pode ser compreendida através da sua sistemática atenção às grandes convulsões sociais e políticas.
Afinal, Godard e os seus “compagnons de route” são também herdeiros de Roberto Rossellini (1906-1977) e das convulsões do neo-realismo italiano. Para os neo-realistas, o estudo crítico do legado trágico da Segunda Guerra Mundial — de que Roma, Cidade Aberta (1945), de Rossellini, é o símbolo aglutinador — decorre de uma exigência humana e humanista que, no caso de Godard, se transfigurará em apaixonada desmontagem das ilusões e desilusões das novas formas de organização pública e privada. A saber: o sistema de valores e regras que cristalizou na chamada “sociedade de consumo”.
Títulos como o já citado Viver a Sua Vida, ou ainda A Mulher Casada (1964), sobre o novo enquadramento social da mulher, Masculino Feminino (1966), retratando os “filhos de Marx e da Coca-Cola”, e Duas ou Três Coisas sobre Ela (1967), observando as consequências do crescimento urbano de Paris, reflectem uma preocupação eminentemente didáctica, de uma só vez prática e filosófica. Que é como quem diz: que significa vivermos, aqui e agora? Por alguma razão, Weekend/Fim de Semana (1967), desesperado conto moral sobre a mercantilização das relações humanas, estreado entre nós no inverno de 1974, é definido na sequência de abertura através de duas frases programáticas: primeiro, “um filme perdido no cosmos”; depois, “um filme encontrado no ferro-velho”.

Claude Brasseur (1936 - 2020)

Na cena da corrida através das galerias do Museu do Louvre, em Bando à Parte (1964), de Jean-Luc Godard, ele corria na companhia de Anna Karina e Samy Frey — Claude Brasseur, actor de todas as transformações, rosto ilusoriamente impassível, faleceu no dia 22 de Dezembro, em Paris, contava 84 anos. 


Filho de actores (Pierre Brasseur e Odette Joyeux), foi um verdadeiro "bicho" do ecrã, monumental e ligeiro, aplicando e transfigurando as raízes teatrais do seu labor. Daí que, na sua filmografia de mais de uma centena de títulos possamos encontrar um pouco de tudo, das convulsões do burlesco em Uma Bela Rapariga (1972), de François Truffaut, à gravidade romântica de O Fio do Horizonte (1993), de Fernando Lopes. Vimo-lo sob a direcção de Jean Renoir (O Cabo de Guerra, 1962), André Téchiné (Barocco/Escândalo de Primeira Página, 1976) ou de novo Godard (Détéctive, 1985), afinal encarnando um modo muito francês de expor as ambivalências do ser. Tudo isto numa família de sucessivas gerações de actores, com Claude a transmitir o seu savoir faire ao filho Alexandre Brasseur [video INA]. 


>>> Obituário no jornal Le Monde.

terça-feira, dezembro 22, 2020

"Vitalina Varela" vs. Hollywood

Vitalina Varela, Vitalina Varela (2019)

Agora escolhido como candidato português a uma nomeação para o Oscar de melhor filme internacional, Vitalina Varela foi visto nas salas do nosso país, segundo os números oficiais do Instituto do Cinema e do Audiovisual, por 5.824 espectadores
Observamos, assim, um curioso fenómeno social: os espectadores podem escassear, mas orgulho nacional é coisa que não falta. Aliás, das duas uma: ou toda esta agitação resulta de 5.824 pessoas a celebrar o facto, ou podemos supor que esse orgulho até nos pode dispensar de ver os filmes. 
Na verdade, somos peões de uma cultura cuja paixão artística está toldada, para não dizer anulada, pela perversão do sucesso. A saber: o culto beato dos vencedores. 
Se tivesse havido um décimo desta agitação no momento da estreia de Vitalina Varela, teríamos, por certo, usufruido de uma interessante troca de ideias. 
Convém, por isso, lembrar aos mais precipitados que, com esta escolha, Pedro Costa não ganhou nada e que o seu prodigioso filme já valia o que vale antes de chegar à Academia de Hollywood

"Get Back" — à espera do filme

Foi assim há 50 anos (um pouco mais...). Agora, Get Back é também o título de um filme que Peter Jackson está a montar a partir de mais de 50 horas inéditas de filmagens dos Beatles, em grande parte ligadas a Let it Be (1970), o documentário de Michael Lyndsay-Hogg rodado durante as gravações do álbum homónimo. Atrasado por causa da pandemia, o projecto deverá chegar ao público em 2021 — para já, Jackson partilha algumas imagens preciosas. 

segunda-feira, dezembro 21, 2020

10 filmes de 2020 [2]

David Fincher

Paradoxos, mágoas e euforias deste tempo: um dos mais admiráveis filmes que se fizeram sobre a história mitológica de Hollywood — é da escrita de Citizen Kane que se trata... — tem chancela de uma plataforma de streaming (Netflix). Ou como o retrato do argumentista Herman J. Mankiewicz (1897-1953) nos devolve ao coração vivo da cinefilia: a sublime arte das imagens em movimento começa na energia da palavra e na sigularidade da escrita.



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[ 1. Uma Vida Alemã ]

domingo, dezembro 20, 2020

10 álbuns de 2020 [2]

Víkingur Ólafsson

Um sereno desafio, monumental na sua serenidade: o pianista islandês Víkingur Ólafsson faz um álbum com peças de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) e Claude Debussy (1862 - 1918), não tanto para propor uma "antologia" francesa, antes para experimentar e, de algum modo, fixar aquilo que os torna cúmplices de uma mesma arte de questionamento dos poderes e limites da própria melodia. O resultado é uma prodigiosa aventura técnica e criativa — de Debussy, eis La fille aux cheveux de lin, Preludes Op.1, Nº.8.



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[ 1. Fiona Apple ]

Lana Del Rey,
— "Let Me Love You Like a Woman"

Chemtrails over the Country Club: será este o título do sétimo álbum de estúdio de Lana Del Rey, a surgir em 2021, em data por anunciar. O primeiro single, Let Me Love You Like a Woman, foi apresentado recentemente no show de Jimmmy Fallon — a tradição ainda é o que era. 

O ano em que Godard
fez 90 anos [1/4]

Jean-Luc Godard, À Bout de Souffle (1959)

No dia 3 de dezembro, Jean-Luc Godard celebrou 90 anos. Do cinema clássico à sedução das novas tecnologias, a sua obra de mais de seis décadas evolui em paralelo com as convulsões das sociedades: ele é um experimentador e, à sua maneira, um observador crítico das histórias individuais e colectivas — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'Godard, o louco'. 

Pergunta de algibeira: quem é o Mozart da história do cinema? Pergunta perversa, entenda-se, já que através da sua simples formulação podemos estar a alimentar esse velho preconceito que, encarando o cinema como uma arte descartável, exige que os seus valores sejam definidos, e até legitimados, através de referências vindas de outras artes. Em todo o caso, permito-me avançar com a minha resposta: Jean-Luc Godard. Acrescentando uma humilde mensagem de “joyeux anniversaire” — Godard nasceu em Paris, no dia 3 de dezembro de 1930, quer dizer, completa 90 anos na próxima quinta-feira [este texto foi publicado na edição de sábado, dia de 28 de Novembro]. 


Para os cinéfilos portugueses que começaram a frequentar as salas escuras nas décadas de 1950/60, o seu Pedro, o Louco (1965), com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, impôs-se como uma referência tão mítica quanto etérea. Por um lado, exibia a assinatura de um lendário autor da Nova Vaga francesa; por outro lado, surgia como uma referência quase isolada desse movimento que tinha revolucionado o mapa do cinema europeu e, em boa verdade, mundial, despertando as energias criativas de novos cineastas dos mais variados contextos (incluindo Portugal). 
Por essa altura, Pedro, o Louco (título original: Pierrot le Fou) ficou como símbolo quase solitário de um cinema de muitas e arrojadas transformações. De tal modo que a revelação de alguns outros títulos emblemáticos da Nova Vaga, em particular de Godard, só viria a acontecer durante a contida liberalização do mercado ensaiada pelo governo de Marcelo Caetano, historicamente apelidada “Primavera Marcelista”. Assim, por exemplo, a primeira longa-metragem de Godard, o célebre À Bout de Souffle (1959), com Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg, homenageando a tradição do filme “noir” de Hollywood, chegaria às salas portuguesas em meados de 1970, com o título O Acossado
À Bout de Souffle é mesmo tradicionalmente apontado como um dos títulos da trilogia de 1959 — completada por Os 400 Golpes, de François Truffaut, e Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais — que inaugura a Nova Vaga. Recentemente, o seu 60º aniversário foi assinalado pelo lançamento de uma cópia restaurada 4K, com edição especial em Blu-ray.

10 filmes de 2020 [1]

Christian Krönes, Olaf S. Müller, Roland Schrotthofer e Florian Weigensamer

Brunhilde Pomsel recorda uma singular e perturbante experiência de vida: entre 1942 e 1945 trabalhou como secretária de Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda Nazi. A partir daquilo que, para todos os efeitos, é "apenas" uma entrevista, deparamos com um verdadeiro monumento histórico, exemplar dessa vocação cinematográfica que nenhum super-herói digital consegue destruir. Ou como diria Godard: "A televisão fabrica esquecimento, o cinema fabrica memórias."

sábado, dezembro 19, 2020

10 álbuns de 2020 [1]

Fiona Apple 

Tão só a certeza de que não se trata de colocar palavras na música ou inventar música para as palavras: tudo nasce num mesmo tempo, tudo pertence a uma unidade orgânica com vocação utópica. Dito de forma pedagógica: Fiona Apple volta a mostrar e demonstrar que deambulação experimental e intimidade poética são uma e a mesma coisa. Em 2020, nessa imaculada liberdade criativa, ninguém a igualou — exemplo: Under the Table

terça-feira, dezembro 15, 2020

The Strokes, entre adultos

Prós e contras da idade adulta, ou uma aventura de humanos e robots... Desportivo e surreal, assim é o novo teledisco de The Strokes: The Adults Are Talking, com realização de Roman Coppola.

segunda-feira, dezembro 14, 2020

"A crítica neste país" [citação]

JOSEPH WRIGHT OF DERBY
An Experiment on a Bird in the Air Pump
1768

>>> HUGO GOMES — Hoje em dia José Fonseca e Costa é recordado como um autor do nosso cinema, mas em tempos era dizimado pela crítica e desprezado como um “realizador comercial”. O próprio queixava-se dessa constante denominação... 
VÍTOR NORTE — Mas a crítica, bem, a crítica neste país é toda ela composta de ilhas, movimentos, de conhecidos e de amigos. Portanto, as críticas não são bem aquilo que deveriam ser, que era apontar os “bons” ou “maus” de um trabalho artístico, e são usadas para se fazerem ataques pessoais. Talvez seja isso que tenha acontecido ao José Fonseca e Costa, que era sobretudo um homem vertical. 

quarta-feira, dezembro 09, 2020

Só o cinema
— a propósito de um ciclo na Cinemateca

Ingmar Bergman e Jörgen Lindström
durante a rodagem de O Silêncio

Ao longo do mês de Novembro, a Cinemateca Portuguesa apresentou um ciclo a que foi dada a sugestiva designação de 'Só o cinema'. Objectivo: celebrar o carácter irredutível da linguagem cinematográfica: "Quando o cinema vem com um sopro de autenticidade que transcende as outras artes, como Bazin disse: “é preciso ler em filigrana a evidência da graça”, pois os signos de Deus não são sempre sobrenaturais. E só a arte cinematográfica tem o misterioso dom de nos remeter de forma única e direta para o reino secreto das emoções, com uma evidência tão pura, tão espontânea quanto inédita. Inédita pois é sem precedente nas artes: como só no cinema acontece, o que só o cinema transmite: Só o cinema!"
Em tempos de desvalorização do pensamento sobre o cinema, tratava-se (e trata-se) de resistir à mediatização pueril dos filmes: O Silêncio, de Ingmar Bergman, pode servir de pretexto e motivação para discutir o que está em jogo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Novembro). 

Há dias, ao ler um texto crítico sobre um filme, deparei com esta frase na respectiva caixa de comentários: “Detestei este filme!” Sem mais. E também sem assinatura, a não ser uma sigla indecifrável. Dito de outro modo: o trabalho de quem escreveu alguns milhares de caracteres a partir de um filme de modo a elaborar um pensamento (muito ou pouco consistente, não é isso que está em causa) pode ser “desmontado” através de impropérios deste teor, breves e… sem pensamento. Mais do que isso: há uma ingenuidade democrática que tolera a publicação desta aliança entre mediocridade e irresponsabilidade. 
Caí em mim, depressa dando conta da inutilidade da minha indignação face a tão microscópico episódio. De facto, no território da “comunicação social” (bela expressão, por sinal) a discussão sobre o grau de responsabilidade exigível a leitores e espectadores tem sido abafada pelo triunfo do liberalismo pueril das “redes sociais”. E tentar suscitar essa discussão apenas a partir de exemplos como o citado não passa de um gesto de vulgar quixotismo. 
A questão que, creio, vale a pena relançar é a da especificidade do próprio cinema. A saber: não apenas o valor atribuído ao filme A, B ou C, mas a consciência daquilo que o faz ser… um filme. O desenvolvimento da cultura do futebol, por exemplo, faz com que a maioria dos cidadãos tenha ideias razoavelmente informadas sobre a especificidade do jogo — dos sobressaltos do fora de jogo ao conceito de dois ou três defesas centrais, o saber futebolístico democratizou-se. Seria interessante que a profundidade de campo nos filmes de Orson Welles ou a utilização dos planos subjectivos por Alfred Hitchcock pudessem ser tratadas com a mesma abrangência social (leia-se: cultural). 
Creio que é a celebração dessa especificidade que serve de tema aglutinador ao belo ciclo que a Cinemateca Portuguesa apresentou ao longo do mês de novembro: 'Só o cinema' — a Cinemateca roubou o título a Jean-Luc Godard e eu roubo-o à Cinemateca. Que está em jogo? Pois bem, o conhecimento daquilo que faz que um filme exista como objecto que não se confunde com qualquer outro (mesmo quando, por exemplo, adapta “fielmente” um determinado romance). Ou como se escreve no texto de apresentação: “a pura linguagem cinematográfica”. 
Entenda-se: a pureza dessa linguagem é ambígua, já que provém de uma infinita diversidade. Envolve as emoções ascéticas de Robert Bresson em Peregrinação Exemplar (1966), a convivência com o impensável da morte em Frankenstein Criou uma Mulher (1966), de Terence Fisher, ou o confronto com os fantasmas da história de Portugal em O Quinto Império - Ontem como Hoje (2004), de Manoel de Oliveira (que encerrou o ciclo, dia 30). 
Exemplo extremo e fascinante dessa vibração sem nome que “só o cinema” sabe identificar e percorrer poderá ser O Silêncio (1963), de Ingmar Bergman. Nele encontramos um trio algo bizarro: duas irmãs, Anna (Gunnel Lindblom) e Ester (Ingrid Thulin) em cruel confronto afectivo, e o filho de Anna, Johan (Jörgen Lindström), vagueando pelos corredores do hotel em que se hospedam. Viajam no mais indecifrável dos cenários: um país fictício, algures na Europa central, cuja língua não dominam, numa conjuntura de guerra iminente. 
Como recorda o programa da Cinemateca, este é o “silêncio” de Deus perante os medos, perplexidades e ânsias dos pobres humanos, enredados em confrontos sem razão nem racionalidade. Ora, justamente, o cinema revela-se capaz de colocar em cena a longínqua abstração de tudo isso através de uma paradoxal sensação de proximidade (rima com carnalidade) que constitui, afinal, uma das fundamentais matérias do universo criativo de Bergman. 
Vivemos um tempo de crescente indiferença pelas nuances de tudo isso. A aceleração informativa que nos arrasta é estranha à simples possibilidade de pararmos para percorrer os labirintos bergmanianos. Daí também o desafio cultural que, aqui e agora, impõe a defesa intransigente das salas escuras. Não por ignorância ou indiferença pelas maravilhas do cinema em “streaming”. Apenas porque essas salas nos ensinaram a escutar o silêncio.

domingo, dezembro 06, 2020

"Mank"
— música para Herman J. Mankiewicz

Uma obra-prima dentro de uma obra-prima: a banda sonora original de Mank [Netflix], assinada por Trent Reznor e Atticus Ross comete a proeza de servir exemplarmente o retrato de Herman J. Mankiewicz (1897-1953) assinado por David Fincher — com argumento do seu pai, Jack Fincher (1930-2003) —, ao mesmo tempo que possui a dimensão de uma festiva sequela das ambiências musicais dos anos 40. A ponto de ter sido registada com instrumentos dessa década.
É a quarta vez que Reznor/Ross colaboram com Fincher, depois de A Rede Social (2010), Millennium 1: Os Homens Que Odeiam as Mulheres (2011) e Em Parte Incerta (2014) — eis a banda sonora e, em baixo, uma breve memória da rodagem de Mank através de uma deliciosa colecção de claquetes.



terça-feira, dezembro 01, 2020

Aldina Duarte
— elogio do essencial

Eis o fado devolvido à sua mais radical, e também mais bela, verdade primitiva: uma guitarra portuguesa (Paulo Parreira) e uma viola (Rogério Ferreira), e ainda a esplendorosa aventura de uma voz: Roubados, de Aldina Duarte, é um testemunho fundamental, tornado urgente, de retorno à teatralidade fundadora do fado, celebrando o desafio humano de devolver as palavras à sua solidão primordial — a única que, afinal, pode ser partilhada numa transcrição em disco (ou qualquer outro suporte sonoro), e também no espaço específico de um concerto.
Não simplifiquemos, claro. Não se trata de esquecer, muito menos demonizar, todas as derivações formais através das quais o fado tem sido vivido — e escutado — ao longo de décadas, a começar pelas sofisticadas e alegres variações de Amália. Não podemos esquecer as orquestrações mais ou menos "sinfónicas", como não fará sentido secundarizar as muitas "perversões" experimentadas por exuberantes linguagens que o tempo foi destruindo, a começar pelo teatro de revista.
Trata-se, isso sim, de reconhecer que a essência do fado nada — mas mesmo nada — tem que ver com a sua liofilização para exportação, em grande parte exponenciada por um entendimento pueril da condição de património imaterial da humanidade. Internamente, o principal efeito artístico de tal rótulo foi mesmo a multiplicação de fadistas de dramática incompetência técnica e artística, de facto, sem alma (este é um domínio em que a palavra alma pode e deve ser aplicada com todo o seu valor patrimonial).
Escutando Aldina Duarte em Roubados reencontramos um tempo — aliás, uma duração — em que a vibração da voz não depende da elaboração instrumental que a acompanha. Aliás, dito de outro modo: os instrumentos não "acompanham", antes se definem como elementos vivos de uma cenografia cujo ponto de fuga é sempre a presença cristalina das palavras. Exemplo: Veio a Saudade (António Campos/Jorge Barradas), com Rogério Ferreira na viola.

Eduardo Lourenço (1923 - 2020)

[ Centro Nacional de Cultura ]

>>> Octávio Paz supôs recentemente que a humanidade futura se dvidiria em duas raças: a dos homens livres e poderosos, aqueles que lêem, e os outros, aqueles que olham para a televisão. É pena que não tenha posto entre os poderes os que não lêem nem vêem televisão, mas são os senhores da televisão. De qualquer maneira, esta profecia pouco eufórica não me parece fatal. A televisão existe, não é em si um novo império do mal. Não é útil nem fácil distinguir nela uma boa ou má televisão. Que critérios conceber para isso? Mas é possível vivê-la como um desafio à nossa capacidade de discernimento, à essência mesma da nossa liberdade, que não criou a televisão para que ela nos devorasse. A pedagogia do consumidor de imagens em mais nada consistiria do que em aceitar o desafio e descobrir no que nos fascina uma autêntica mensagem libertadora, uma palavra que preserve a parte de silêncio necessária à respiração da existência humana e contra a qual o rolo compressor das imagens planetárias seria impotente, ou é, no fundo, impotente. Em última análise, essa pedagogia consistiria em recuperar o silêncio do tempo antes da televisão, apagar simplesmente a famosa caixa mágica. Simbolicamente ou praticamente. Sem remorso. 

EDUARDO LOURENÇO
Comunicação ao Congresso Internacional
sobre Comunicação e Defesa do Consumidor, 1993
in O Esplendor do Caos (Gradiva, 1998)

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