domingo, dezembro 31, 2017

Elvis, 1968

>>> Heartbrake Hotel, há 50 anos — imagens e sons de Elvis Presley par entrarmos em 2018.

Pedir desculpa em 2017

Será que temos todos que pedir desculpa pelo ano de 2017?... A pergunta não é essa, mas talvez pudesse ser. Em qualquer caso, aquilo que propõe um video de David Botti, do New York Times, é uma antologia amarga e doce das figuras que, ao longo do ano que agora termina, surgiram no espaço mediático a pedir desculpa — quatro minutos de catarse cultural.

Hugh Jackman ou o elogio do musical (1/2)

Hugh Jackman regressa em registo musical: O Grande Showman é uma exuberante evocação de P. T. Barnum, lendário empresário de circo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Dezembro), com o título 'Hollywood volta às delícias do grande espectáculo musical'.

Será o australiano Hugh Jackman a solução mágica para relançar o género musical de Hollywood como um registo eminentemente espectacular e, mais do que isso, tradicionalmente popular? O seu protagonismo em O Grande Showman [The Greatest Showman] justifica a pergunta — cantando e dançando, Jackman volta a dar provas de uma invulgar versatilidade ao interpretar a personagem verídica do empresário de circo P. T. Barnum (1810-1891).
Afinal de contas, muito para além da encarnação do mutante Wolverine (que regressou este ano em Logan, uma aventura de desencantada despedida), Jackman tem dado muitas provas da sua filiação nos artifícios do “entertainment”, tendo mesmo obtido uma nomeação para o Oscar de melhor actor graças à composição de Jean Valjean em Os Miseráveis (2012). Isto sem esquecer que a sua apresentação da 81ª cerimónia dos Oscars, em 2009, continua a ser reconhecida como uma das mais sofisticadas das últimas duas décadas [video].
O desafio inerente a O Grande Showman era tanto maior quanto a figura de Barnum está inscrita no imaginário “made in USA” como um dos símbolos mais puros do gosto e delícias do espectáculo. Trata-se, aliás, de uma referência que persistiu ao longo de muitas gerações. Por desconcertante ironia, a companhia de circo a que o nome de Barnum ficou associado — Ringling Bros. and Barnum & Bailey Circus — foi extinta poucos meses antes do lançamento do filme, no passado dia 21 de Maio, depois de uma existência de 146 anos (a data oficial da sua fundação é 10 de Abril de 1871).

Antes do cinema

Com música de John Debney e John Trapanese, as canções de O Grande Showman têm letras assinadas por Benj Pasek e Justin Paul, consagrados pela sua participação na banda sonora de La La Land (incluindo o tema City of Stars, premiado com um Oscar). Em qualquer caso, um dos aspectos mais surpreendentes do filme será a sua preocupação de, através da música, desenhar um fresco histórico do próprio espectáculo na sociedade americana da segunda metade do século XIX.
Barnum pode ser definido como emblema de um tempo anterior à eclosão do espectáculo cinematográfico (a primeira projecção pública de filmes, pelos irmãos Lumière, ocorreria em 1895, quatro anos depois do falecimento de Barnum). Primeiro criando uma espécie de jardim zoológico em forma de exposição teatral, depois exibindo personagens humanas com diferenças físicas mais ou menos monstruosas (“freaks”), enfim, desenvolvendo e exponenciando o conceito de espectáculo circense (incluindo a sua vocação ambulante), Barnum foi um símbolo activo de uma sociedade em que o empreendimento individual se inscrevia numa conjuntura de grandes e aceleradas transformações tecnológicas.
Filmar tudo isto sem abdicar da pompa e do delírio que o registo musical implica não era tarefa fácil. O certo é que o realizador estreante Michael Gracey, também australiano, se distingue pelo requinte da sua encenação — de alguma maneira, Gracey está a rentabilizar a experiência acumulada como especialista de efeitos visuais.

>>> Abertura da cerimónia dos Oscars em 2009.

sábado, dezembro 30, 2017

10 FILMES DE 2017 [6]
— Terrence Malick


[ Kathryn Bigelow ]  [ Martin Scorsese ]  [ Pablo Larraín ]  [ Andrei Konchalovsky ]  [ Stéphane Brizé ]

Estranho processo de discriminação de Terrence Malick. Ninguém espera, como é óbvio, que a sua obra seja tratada como se fosse um objecto de transcendental veneração. O certo é que, depois da consagração quase universal de A Árvore da Vida (2011), é, no mínimo, desconcertante que não se reconheça que os seus títulos seguintes são, afinal, descendentes directos desse filme seminal — em boa verdade, poderiam (ou podem) existir como sucessivos capítulos das forças anímicas e dos princípios narrativos colocados em movimento através A Árvore da Vida. No caso de Música a Música, Malick filma um trio em estado de graça — Michael Fassbender, Rooney Mara e Ryan Gosling — nos cenários do South by Southwest, festival anual da cidade de Austin, no Texas, habitando uma deriva afectiva que, em última análise, compromete a verdade intrínseca de cada identidade. Poucos, como Malick, levaram tão longe a consolidação de uma linguagem do fragmento e do acontecimento efémero sem descolar das matrizes clássicas do melodrama. Como se as relações humanas fossem um sobressalto vivido "canção a canção" — é esse, aliás, o título original: Song to Song.

10 DISCOS DE 2017 [6]
— St. Vincent

[ Arca ]  [ Tricky ]  [ Lorde ]  [ The Rolling Stones ]  [ Thelonious Monk ]

A americana Annie Clark é um dos mais belos enigmas da pop contemporânea. Enfim, por alguma razão ela adoptou o nome artístico de St. Vincent, avisando-nos que por tudo o que faz perpassa uma assumida teatralidade. De tal modo que, ao quinto álbum de originais, Masseduction, somos tentados a descrever as suas luminosas propostas através de um inusitado cruzamento: por um lado, nunca a sua sonoridade terá sido tão genuinamente pop, integrando influências que oscilam entre Jimi Hendrix e os Talking Heads (recorde-se que, em 2012, gravou o álbum Love This Giant com David Byrne); por outro lado, a sua versatilidade poética, associada à misteriosa transparência da sua voz, vai-lhe emprestando a dimensão de uma cantora lírica que, felizmente para nós, nasceu na época errada. Assim é Masseduction, uma colecção de treze pérolas musicais, entre a crueza do comentário social e a vibração do mais delicado intimismo. Ei-la, na rádio pública WFUV (Nova Iorque), a interpretar Slow Disco, por certo uma das grandes canções de 2017 — Slip my hand from your hand / Leave you dancin' with a ghost.

sexta-feira, dezembro 29, 2017

Desperdício [citação]

>>> Convidados de forma mais ou menos coerciva a mudarem de equipamento, os consumidores têm o sentimento crescente de estarem a ser enganados. A isso acrescentam-se os desafios ambientais, com a extracção cada vez mais intensiva de recursos para fabricar esses objectos que, para mais, nem sempre são reciclados.
Existem soluções para pôr fim a esta má gestão. Em primeiro lugar, é preciso mudar os nossos comportamentos que, por vezes, levam a confundir marketing e verdadeira inovação. Depois, é preciso incitar os fabricantes a dilatar a duração de vida dos produtos. Um relatório das Nações Unidas, publicado em Setembro, recomenda que essa duração seja explícita no momento da compra. Propõe também que se discuta a exclusividade das redes certificadas pelos fabricantes no que diz respeito às peças de substituição e reparações. É, enfim, passando progressivamente de uma economia da posse para uma economia do uso que teremos, talvez, uma hipótese de diminuir este imenso desperdício.

LE MONDE
29-12-2017

A IMAGEM: Geof Kern, 2017

GEOF KERN
Neiman-Marcus / The Art of Fashion
2017

A quietude do terror

* ELE VEM À NOITE, de Trey Edward Shults
[DN, 28-12-2017]

Muitos filmes de terror contemporâneos padecem de um misto de formalismo e narcisismo: partem de alguma premissa, forte e sugestiva, depois dispensando qualquer genuíno trabalho de argumento. Este It Comes at Night é mais um ameaçado por esse infantilismo narrativo, mesmo se os resultados acabam por superar os lugares-comuns do género.
Trata-se de encenar uma situação apocalíptica (uma peste parece assolar o planeta...) em que cada unidade familiar tende a funcionar como uma verdadeira fortaleza. Trey Edward Shults distingue-se, sobretudo, como um invulgar gestor das tensões espaciais, nesse aspecto demarcando-se dos filmes que confundem a agitação da câmara com a criação de emoção — por uma vez, a quietude da câmara, tanto quanto os seus elegantes movimentos, está ao serviço do clima dramático.

quinta-feira, dezembro 28, 2017

Memórias do clã Kennedy

Chappaquiddick é um nome para sempre inscrito, de forma perturbante, nas memórias históricas dos EUA e, mais especificamente, no misto de realismo e mitologia que o clã Kennedy ocupa nessas memórias. Foi numa ponte da ilha de Chappaquiddick, Massachusetts, que a 18 de Julho de 1969 o senador Edward Kennedy teve um acidente de automóvel do qual resultou a morte da sua acompanhante, Mary Jo Kopechne, uma jovem a trabalhar na sua campanha eleitoral para a presidência — receoso dos efeitos do acidente na sua carreira política, Kennedy demorou um tempo excessivo para informar a polícia do que tinha acontecido...
Agora, Chappaquiddick é o título de um filme dirigido por John Curran, abordando tais eventos e, em particular, os seus devastadores efeitos políticos e morais. Edward Kennedy e Mary Jo Kopechne são interpretados, respectivamente, por Jason Clarke e Kate Mara, com Bruce Dern no papel do patriarca da família, Joseph P. Kennedy Sr.; a estreia americana está agendada para Abril — eis o primeiro trailer.

quarta-feira, dezembro 27, 2017

10 FILMES DE 2017 [5]
— Stéphane Brizé


[ Kathryn Bigelow ]  [ Martin Scorsese ]  [ Pablo Larraín ]  [ Andrei Konchalovsky ]

A ideia de que há um cinema "literário" (positiva para uns, negativa para outros) é uma pobre ideia. De facto, a literatura — e, em particular, o romance — não é um bálsamo, mas também não é uma maldição, para uma qualquer narrativa cinematográfica. Tudo depende da relação que tal narrativa estabelece com o material literário. Stéphane Brizé é um talentoso discípulo de Max Ophüls. No caso de A Vida de uma Mulher, adaptado de Une Vie, de Guy de Maupassant (autor querido de Ophüls), trata-se de colher no romance essa tensão que se estabelece entre as forças sociais dominantes, predominantemente masculinas, e o destino singular de uma mulher, a vulnerável e sublime Jeanne Le Perthuis des Vauds, interpretada por Judith Chemla, actriz de excepção no actual panorama europeu. Apaixonado pela pulsação realista (lembremos o seu título anterior, A Lei do Mercado), Brizé encena Jeanne como personagem ameaçada, mas obstinadamente livre, de um espaço que não lhe reconhece uma verdadeira identidade — dir-se-ia uma reportagem sobre os detalhes do quotidiano, tão delicada e sensível, que nos põe em contacto com o invisível das relações humanas.

Ser ou não ser um "cyberbully"

> Bullying — Conjunto de maus-tratos, ameaças, coacções ou outros actos de intimidação física ou psicológica exercido de forma continuada sobre uma pessoa considerada fraca ou vulnerável.
> Cyberbullying — Conjunto de ameaças, coacções ou outros actos de intimidação ou de humilhação exercido de forma continuada sobre uma pessoa considerada mais fraca ou mais vulnerável e feito através da Internet.


As formas de bullying através dos dispositivos virtuais mereceram especial atenção à representação da Samsung na Turquia. Em colaboração com a Autoridade para as Tecnologias de Informação e Comunicação, aquela multinacional sediada na Coreia do Sul produziu um video de menos de 60 segundos sobre a fronteira muito ténue que pode separar a comunicação responsável do desrespeito e da agressão — dirigido por Ariel Goldenberg, o spot foi criado pela agência Titrifikir, de Istambul.

10 DISCOS DE 2017 [5]
— Thelonious Monk

[ Arca ]  [ Tricky ]  [ Lorde ]  [ The Rolling Stones ]

A história do jazz cruza-se frequentemente com a história do cinema. E há, por assim dizer, um capítulo francês, mais ou menos ligado à Nova Vaga, que tem na banda sonora de Miles Davis para Ascenseur pour l'Échafaud/Fim de Semana no Ascensor (1958), de Louis Malle, o seu símbolo mais universal. A tal capítulo pertencem os registos do pianista Thelonious Monk para a adaptação/modernização do clássico de Chordelos de Laclos, As Ligações Perigosas, assinada por Roger Vadim em 1960 — Jeanne Moreau, Gérard Philipe, Annette Stroyberg e Jean-Louis Trintignant eram os nomes centrais do elenco. Na prática, tais registos permaneceram mais de meio século apenas no filme, já que não existiam disponíveis as bobines originais. Acidentalmente (re)descobertas em 2014, foram este ano editadas num álbum duplo, Les Liaisons Dangereuses 1960, uma verdadeira preciosidade musical e cinéfila (o segundo CD inclui diversos materiais alternativos, concluindo com uma take de mais de 14 minutos em que escutamos a fascinante gestação do tema Light Blue). Além do mais, esta foi uma das mais importantes edições simbolicamente ligadas à passagem do centenário de Monk, nascido em 1917 (faleceu em 1982, contava 64 anos). Por razões de saúde, e também devido a problemas legais, Monk não teve condições práticas para produzir uma banda sonora original, pelo que As Ligações Perigosas integra diversas composições pré-existentes de Monk, gravadas numa única sessão, em Nova Iorque, a 27 de Julho de 1959, nos Nola Penthouse Sound Studios. Entre os temas clássicos de Monk, encontramos Well, You Needn't, composto em 1944 e diversas vezes por ele regravado, surgindo também, por exemplo, no álbum Steamin' (1956), de Miles Davis — ei-lo numa performance televisiva de 1965.

O Natal segundo Phil Spector

Em tempos de muitas listas, mais uma... Especialmente adequada à quadra: a revista Rolling Stone escolheu os '25 Melhores Álbuns de Natal'de sempre, convém acrescentar.
De Frank Sinatra a Sufjan Stevens, sem esquecer os Peanuts, não faltam maravilhas para satisfazer todas as sensibilidades. Mas é inevitável destacar o nº 1 da lista, um clássico de 1963 que está para além do Natal e, apetece dizer, para além da pop, de tal modo é uma das mais admiráveis encarnações do "Wall of Sound" de Phil Spector. O nome do produtor surge, aliás, no próprio título, A Christmas Gift for You from Phil Spector, de alguma maneira sublinhando a transfiguração criativa aqui experimentada por gente tão ilustre como Darlene Love, The Crystals ou Bob B. Soxx & the Blue Jeans. Digamos, para simplificar, que para compreendermos o espírito de Natal, importa escutar, no mínimo, The Ronettes a cantar I Saw Mommy Kissing Santa Claus — na mais pura concentração espiritual.

terça-feira, dezembro 26, 2017

Eminem sobre a água gelada


I walk on water
But I ain't no Jesus
I walk on water
But only when it freezes

Eminem transformou o seu amargo auto-retrato em teledisco. Walk on Water, tema de apresentação do álbum Revival, fabricado em colaboração com Beyoncé, aí está: a metáfora da água gelada é encenada à letra, sublinhando o misto de tragédia e revolta que a canção convoca.

As evidências naturais [citação]

>>> Importa desconfiar das ideologias que procuram modelos naturais. Na década de 1970, a sociobiologia quis encontrar na selecção natural uma moral de tipo competitivo que permitia justificar a ordem neo-liberal que então se estava a instalar. Hoje em dia, procura-se na natureza uma moral inversa que privilegia a empatia e a solidariedade. Mas é obrigar a natureza a dizer o que ela nunca disse. O natural não é forçosamente o desejável. Não é porque as mulheres dêem à luz na dor que isso é bom. Como dizia Hume, daquilo que "é" não podemos deduzir o que "deve ser". É importante conhecer o que há de natural em nós, mas a partir daí devemos construir-nos politicamente e institucionalmente. A especificidade do homem é de decidir o que quer ser — e ele nunca encontrará um modelo absoluto nos grandes macacos, nem tão pouco nas árvores. Os chimpanzés cooperam ou podem dar provas de empatia, eis uma constatação simpática, mas isso não é uma razão para pensar que as morais humanas se reduzem todas à empatia. Por isso, sem dúvida, é importante desconstruir as evidências que foram erradamente atribuídas à natureza. Mas não para as substituir por outras.

'La Nature a-t-elle toujours raison?', entrevista de Éric Aeschimann
in L'Obs (09-12-2017)

10 FILMES DE 2017 [4]
— Andrei Konchalovsky


[ Kathryn Bigelow ]  [ Martin Scorsese ]  [ Pablo Larraín ]

O silêncio que se abateu sobre o filme de Andrei Konchalovsky, Paraíso, envolve muitos e angustiantes factores que vão desde a vulnerabilidade de estreias que acontecem em apenas duas ou três salas, sem qualquer protecção publicitária, à volubilidade de um público que, em muitas das suas faixas (sociais ou etárias), perdeu o gosto da procura e da descoberta. Sejamos claros, quand même: Konchalovsky refaz as memórias do Holocausto através de um dispositivo de três personagens — um colaboracionista francês, uma aristocrata russa que ajuda a Resistência em França e um oficial das SS alemãs — que não satisfaz as convenções de nenhuma retórica histórica ou política. Retomando uma riquíssima herança do cinema da Rússia (e também da sua literatura), o autor de Siberíade (1979) e Os Amantes de Maria (1984) encena as convulsões desumanas das relações humanas, numa vertigem em que o próprio "sentido da história" parece ameaçado pelo apocalipse das significações. Tudo isso contado num preto e branco que, muito longe de qualquer nostalgia "estética", nos recorda que há no cinema uma energia primitiva que importa não deixar morrer — e, tanto quanto possível, tentar merecer.

O sol interior de Claire Denis

Juliette Binoche em O Meu Belo Sol Interior
O Meu Belo Sol Interior confirma a condição solitária de Claire Denis no interior da produção cinematográfica francesa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Dezembro), com o título 'Um Belo Sol Interior'.

Nascida em Paris, em 1946, Claire Denis continua a ser uma cineasta “não-alinhada” do cinema francês. Ora filma em anos consecutivos, ora cumpre paragens mais ou menos dilatadas. Cada um dos seus filmes parece mesmo concebido para desmentir a “tendência” do anterior, numa lógica lúdica de pesquisa a que não é estranha uma saborosa ironia existencial.
Observe-se o exemplo de O Meu Belo Sol Interior, com Juliette Binoche, mostrado na Quinzena dos Realizadores, em Cannes, agora lançado nas salas portuguesas. Objecto luminoso, sem dúvida, tal como o título sugere. Aliás, a sua irredutibilidade pode medir-se através das discretas, mas significativas, atribulações dos títulos que lhe têm sido dados.
O original — Un Beau Soleil Intérieur — não atribui esse enigmático sol a ninguém. Não se trata de identificar um sol que é “meu” (da personagem central), mas sim de nomear uma entidade que pertence a alguma interioridade. A saber: “um belo sol interior”. Quanto ao título inglês, Let the Sunshine In (à letra: “Deixem o sol entrar”), tem qualquer coisa de palavra de ordem “hippie” convertida em anúncio de detergente para a roupa...
Bem sabemos que vivemos numa sociedade cujo linguajar está ocupado por muitos lugares-comuns anglo-saxónicos (há dias, ouvi mesmo um comentador de golfe dizer, com legítima felicidade, que tinha estado a observar a “body language” de um determinado jogador...). A atenção às subtilezas da língua francesa pode até ser taxada de delírio “intelectual” de que o comum dos mortais se deve abster.
Acontece que, na odisseia emocional da personagem interpretada por Binoche (numa das composições mais sofisticadas de toda a sua carreira), o que mais conta é essa descoberta de um “sol interior” que não é sua propriedade, mesmo se ela sente e pressente que o seu calor marca todos os aspectos da sua existência e, muito em particular, o seu intenso interesse pelo mundo masculino. Claire Denis filma o enigmático anonimato do desejo: algo que nos projecta no mistério imenso de outra pessoa, iludindo-nos com a sua luminosa transparência, numa cegueira que, precisamente, desejamos.
Eis, assim, um filme serenamente fora de moda. Aqui encontramos uma personagem feminina que não depende da demonização automática dos homens. Mais do que isso: sendo muitas vezes claramente sexual, o seu fascínio por alguns homens não envolve a discussão de performances ou intensidades, “apenas” a utopia de um desejo poder encontrar outro desejo. Dir-se-ia um belo filme natalício.

segunda-feira, dezembro 25, 2017

A banalidade do racismo por George Clooney

SUBURBICON, Matt Damon
Actor de grande prestígio e popularidade, George Clooney continua afirmar-se um cineasta original e desconcertante, como o confirma, agora, com a adaptação de uma história dos irmãos Coen — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Dezembro), com o título 'Um conto moral sobre os fantasmas da democracia'.

George Clooney dá-se bem com os irmãos Coen. De tal modo que Suburbicon [TIFF] recupera um “resto” do seu trabalho como argumentistas. Mais exactamente, esta é uma história que esteve para ser a base da segunda longa-metragem dos Coen, logo após Sangue por Sangue (1984). Acabou por ficar na gaveta durante mais de três décadas e o mínimo que se pode dizer é que exibe de forma muito clara as marcas dos seus criadores, não só no seu inquietante negrume, mas também através das contribuições técnicas, a começar pelo notável trabalho do director de fotografia Robert Elswit (aliás, também companheiro fiel dos filmes de Clooney).
Não que tais influências diminuam os méritos de Clooney, aqui confirmando que não assume as tarefas de direcção apenas para enriquecer o curriculum. Quer como realizador, quer como produtor, tem-se afirmado mesmo como um dos mais legítimos e talentosos representantes da grande tradição liberal de Hollywood a que pertencem também, por exemplo, Otto Preminger, Richard Brooks ou Sydney Pollack. Liberal, entenda-se, de acordo com uma lógica que transcende qualquer dicotomia partidária: Clooney é, afinal, um encenador das euforias e limites da liberdade individual, quer dizer, um observador empenhado, mas céptico, dos valores dominantes da colectividade.
Suburbicon é isso mesmo: uma história em que a transparência feliz da comunidade se descobre habitada por qualquer coisa de maligno, potencialmente destruidor, aliás, auto-destruidor. Convém evitar revelar ao leitor/espectador as peripécias delirantes e, mais do que isso, macabras que vão pontuando os acontecimentos. Digamos apenas que esta é uma parábola sobre a harmonia ideal, ou idealizada, da classe média americana nos anos 50 — depois da guerra, veio uma vaga de prosperidade que, na paisagem urbana, se traduz pela proliferação de pequenas cidades de muitas vivendas de rés-do-chão, cada uma delas com o seu relvado cuidadosamente tratado, uma varanda com cadeiras de descanso e, claro, uma garagem para o automóvel que todos passaram a possuir.

Harmonia e violência

No centro dos acontecimentos está o casal Lodge, interpretando com subtil ironia, sempre à beira da tragédia, por Matt Damon e Julianne Moore. Há também a irmã gémea da mulher (assumida por Julianne Moore com igual destreza), num triângulo que talvez não seja o que parece... Seja como for, a harmonia social começa a ser posta em causa quando um outro casal, os Mayers, se instala nos mesmos subúrbios de Suburbicon. Porquê? Porque a maioria dos habitantes se sente ameaçada, ou “apenas” ofendida, pela pele negra dos Mayers.
Mas não é apenas a discriminação racista, por vezes inequivocamente violenta, que Clooney expõe. Se é que podemos apropriar-nos de uma terminologia política e filosófica introduzida no pensamento ocidental por Hannah Arendt, diremos que Suburbicon é um filme sobre a banalidade do racismo. Da cortesia postiça do quotidiano à agressividade pura e dura, vão-se revelando os fantasmas da democracia e, em particular, a desvalorização da diferença individual, esse valor tão exemplarmente inscrito na mitologia nacional americana.
Clooney encena tudo isso com a paixão de um paradoxal realista: dar a ver as contradições inerentes à história do seu país é, afinal, começar pelo realismo para desembocar no conto moral. E não deixa de ser desconcertante que a maior parte da crítica dos EUA se tenha mostrado indiferente à energia simbólica de Suburbicon nos tempos agitados da presidência de Donald Trump. Escrito há mais de três décadas, o filme começou por ser pensado, como é óbvio, para outro contexto político e moral. Em qualquer caso, há nele uma energia dramática impossível de desligar do tempo presente — este é também o retrato sarcástico de uma América demasiado pequena para pensar em voltar a ser grande. Na visão de Clooney, essa é também uma forma inteligente de ser patriota.

Heather Menzies-Urich (1949 - 2017)

Em Música de Coração (1965) e quarenta e cinco anos mais tarde
[ Oprah.com ]
Foi uma das estrelas juvenis do clássico Música no Coração (1965), de Robert Wise: a canadiana Heather Menzies-Urich faleceu no dia 24 de Dezembro, cerca de quatro semanas depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro no cérebro — contava 68 anos.
Começou por participar na série televisiva My Three Sons, iniciada em 1962. Escolhida para interpretar Louisa, uma das filhas do capitão Von Trapp (Christopher Plummer) em Música no Coração, obteve aí sucesso e visibilidade que, em boa verdade, nunca se repetiram na sua carreira. Surgiu logo a seguir em Hawaii (1966), de George Roy Hill, voltando a contracenar com a estrela feminina de Música no Coração, Julie Andrews. Frequentemente escolhida para papéis de menina mais ou menos divertida e rebelde, terá querido contrariar essa imagem juvenil, posando para a revista Playboy, em 1972, num portfolio a que foi dado o título 'Tender Trapp'. A sua carreira acabou por ser predominantemente televisiva, tendo obtido especial destaque através da série futurista Logan's Run (1977-1978). Contracenou com o marido, Robert Urich, numa outra série, American Dreamer (1990-1991), afastando-se depois da representação — na sequência da sua morte, vitimado por cancro, em 2002, criou a Robert Urich Foundation, vocacionada para angariação de fundos destinados a apoiar doentes e pesquisas no domínio das doenças cancerígenas.
O falecimento de Heather Menzies-Urich ocorreu pouco mais de um ano depois do de Charmian Carr, também do elenco de Música no Coração, intérprete da filha mais velha do clã Von Trapp, .

>>> Depoimento de Heather Menzies-Urich na edição Blu-ray, em 2010. de Música no Coração + genérico da série Logan's Run.




>>> Obituário no Variety.

10 DISCOS DE 2017 [4]
— The Rolling Stones

[ Arca ]  [ Tricky ]  [ Lorde ]

Porque é que a esmagadora maioria dos gestos revivalistas do nosso presente soa a falso? Mais do que isso: porque é que a sua postura nostálgica tende a esgotar-se na auto-indulgência promocional de quem não tem qualquer perspectiva criativa sobre a própria distância temporal que tais gestos implicam? Mesmo sem respostas seguras, lembremos a primordial evidência: não há revivalismo nem nostalgia quando quem visita o passado pertence também a esse passado. Assim é On Air, a antologia de The Rolling Stones que, na edição de dois CD, recupera 32 registos das suas passagens por vários programas da BBC, entre 1963 e 1969, expondo a energia primordial de um grupo — Mick Jagger, Keith Richards, Charlie Watts, Bill Wyman e, last but not least, Brian Jones — que, como se diz nas notas de apresentação da edição, ainda não tinha conquistado o epíteto de 'The Greatest Rock'n'Roll Band in the World'. Eis uma das canções incontornáveis da antologia, (I Can't Get No) Satisfaction, num registo da mesma época, embora do outro lado do Atlântico — a 13 de Fevereiro de 1966, no programa de Ed Sullivan.

A IMAGEM: Trent Parke, 2007

TRENT PARKE
The Christmas Tree Bucket / Adelaide, Austrália, 2007
Magnum

domingo, dezembro 24, 2017

O Natal de Tom e Jerry

>>> The Night Before Christmas (1941), de William Hanna e Joseph Barbera — curta-metragem de animação produzida pela MGM [3 partes].





10 FILMES DE 2017 [3]
— Pablo Larraín


[ Kathryn Bigelow ]  [ Martin Scorsese ]

Mais um título de 2016 cuja descoberta foi, para alguns, um dos acontecimentos maiores do cinema em 2017. Dizer que o cineasta chileno Pablo Larraín refaz a história do assassinato de JFK através da figura de sua mulher, Jacqueline Kennedy, é francamente redutor. Jackie não cede à retórica simplista da "reconstituição" histórica, mesmo se todos os elementos cenográficos — e, claro, a prodigiosa composição de Natalie Portman — trabalham para o espírito realista da abordagem. Em última instância, deparamos com um mergulho, directo e angustiado, nessa região em que a dor privada e a gestão pública da simbologia política se cruzam de forma inusitada. De algum modo retomando as linhas de força da sua trilogia sobre o Chile sob a ditadura de Pinochet — Tony Manero (2008), Post Mortem (2010) e Não (2012) —, Larraín expõe a inscrição da morte nas relações humanas, da sua negação à cruel nitidez do seu silêncio.

Jerry Greenberg (1936 - 2017)

[ The Hollywood Reporter ]
Oscarizado pelo seu trabalho em The French Connection/Os Incorruptíveis Contra a Droga (1972), Jerry Greenberg faleceu no dia 22 de Dezembro — contava 81 anos.
De seu nome verdadeiro Gerald B. Greenberg, afirmou-se nos anos 60, numa paisagem de profundas transformações das estruturas de produção — e respectivas matrizes narrativas — de Hollywood, como discípulo de Dede Allen, personalidade nuclear na gestação de novos conceitos de espaço/tempo da (e para a) montagem. Com ela trabalhou como assistente em América, América (1963), de Elia Kazan, e Bonnie e Clyde (1967), de Arthur Penn, estreando-se como montador principal em Bye Bye Braverman (1968), de Sidney Lumet. Com Os Rapazes do Grupo (1970), filme pioneiro na superação dos clichés de representação das relações homossexuais, iniciou uma especial colaboração com o realizador William Friedkin que culminaria, precisamente, em The French Connection: a perseguição de um comboio de Nova Iorque por um automóvel conduzido por Gene Hackman entrou para a galeria das maiores proezas da história da montagem, tal como, mais tarde, o tiroteio na escadaria da grande estação ferroviária (Union Station) de Chicago, em Os Intocáveis (1987), de Brian De Palma.
Greenberg foi ainda responsável pela montagem de filmes como Alta tensão em Nova Iorque (1974), de Joseph Sargent, Kramer contra Kramer (1979), de Robert Benton, e Vestida para Matar (1980), de Brian De Palma. O seu nome surge também, por exemplo, nas equipas de montadores de Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, Reds (1981), de Warren Beatty, ou América Proibida (1998), de Tony Kaye. Em 2015, a associação de montadores do cinema dos EUA, American Cinema Editores, homenageou-o com um prémio de carreira.

>>> Extracto da perseguição em The French Connection + o Oscar de The French Connection + extracto da cena da escadaria em Os Intocáveis.






>>> Obituário no site Deadline.
>>> Tributo da American Cinema Editors.

10 DISCOS DE 2017 [3]
— Lorde

[ Arca ]  [ Tricky ]

Em 2013, não era possível virar uma esquina sem ouvir Royals — parecia ser a fatalidade tradicional de uma voz condenada a receber o rótulo de one hit wonder. É verdade que o respectivo álbum, Pure Heroine, foi muito estimado, mas as vozes da desgraça profetizaram uma efémera vida artística para a neozeolandesa Lorde — para mais, a menina tinha, na altura, 17 anos... Pois bem, a arte de ser jovem envolve também a força e a energia para renegar a juventude. E o segundo álbum de Lorde, Melodrama, revela-se à altura das responsabilidades que a escolha do título envolve — We told you this was melodrama / oh, how fast the evening passes / cleaning up the champagne glasses. Na sua viagem de introspecção, Lorde consolida o dramatismo amargo e doce da sua voz, ao mesmo tempo reafirmando o carácter genuíno da sua alma pop, capaz de diluir a fronteira entre a sensibilidade indie e o chamado mainstream. Ei-la, na plena posse das suas virtudes de palco, interpretando Green Light, no 'Radio 1's Big Weekend', organizado pela BBC.

sábado, dezembro 23, 2017

Woody Allen & Vittorio Storaro (2/2)

WOODY ALLEN e VITTORIO STORARO
— rodagem de Roda Gigante
Woody Allen conta-nos uma história de amor e desamor vivida nos anos 50, com destaque para mais uma admirável interpretação de Kate Winslet — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Dezembro), com o título 'Il signore Storaro'.

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Pergunta de algibeira: qual a relação do novo filme de Woody Allen, Roda Gigante, com Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, Reds (1981), de Warren Beatty, e O Último Imperador (1987), de Bernardo Bertolucci? Pois bem, todos eles têm direcção fotográfica do italiano Vittorio Storaro — e são “apenas” os três que lhe valeram outros tantos Oscars.
Nascido em Roma, em 1940, Storaro é um senhor da luz e da cor, com o seu nome há muito inscrito nos mais nobres capítulos da história do cinema — a par do americano Gregg Toland, director de fotografia de O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles, ou do também italiano Giuseppe Rotunno, responsável pelas imagens de O Leopardo (1963), de Luchino Visconti. O que Storaro faz em Roda Gigante é tanto mais esplendoroso quanto, em algumas cenas, a iluminação surge tratada, não como elemento “fixo” da acção, antes como matéria orgânica que se pode transfigurar através do desenvolvimento dessa própria acção.
Num tempo em que se cultiva a admiração beata por efeitos especiais que não são mais que a aplicação impessoal de programas de computador, Storaro, obviamente com a cumplicidade de Woody Allen, cria um singularíssimo universo visual. Em Roda Gigante, a luz, mais do que um instrumento informativo, existe como matéria orgânica em permanente interacção com os outros elementos do filme, a começar pelos corpos dos actores.
Escusado será dizer que, face à banalização das imagens (observem-se as rotinas de muitos circuitos de telemóveis e da Internet), a arte de Storaro tende a ser ignorada, ou mesmo menosprezada, pelos valores instantâneos da aceleração “informativa”. Seja como for, através das suas imagens, podemos desfrutar as componentes mais genuínas do trabalho cinematográfico.

10 FILMES DE 2017 [2]
— Martin Scorsese


[ Kathryn Bigelow ]

Lançado em Portugal nos primeiros dias de Janeiro de 2017, é bem verdade que o filme de Martin Scorsese surgiu, em muitos mercados, como uma estreia de 2016... mas como contornar tamanho monumento apenas em nome das divisões do calendário? Estamos, de facto, perante o relançamento da questão da fé religiosa, nuclear no imaginário pessoal e cinematográfico de Scorsese: o que é acreditar? Ou ainda: quando acredito, até que ponto todo o meu ser segue a crença que formulo? Pode dizer-se que Silêncio encerra a trilogia iniciada com A Última Tentação de Cristo (1988) e Kundun (1997), mais uma vez cruzando a noção de missão religiosa com a drástica avaliação dos limites da acção humana. Nada que, afinal, não esteja também noutros títulos emblemáticos do cineasta, nomeadamente Taxi Driver (1976). Para Scorsese, o humano existe sempre face ao silêncio de algum Outro que justifica os nossos actos. Por isso mesmo, o sagrado que os rituais convocam só pode ser conhecido através de uma odisseia interior.

sexta-feira, dezembro 22, 2017

Aconteceu no ano de 1967

Efemérides?... Sim, ma non troppo. Em qualquer caso, há 50 anos o cinema era uma prodigiosa paisagem criativa de descoberta, invenção e reinvenção — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Setembro).

Não tenho especial fixação no tratamento jornalístico das efemérides. Nada contra, entenda-se, mas creio que a evocação de um número redondo não basta para (re)inscrever o que quer que seja na nossa actualidade. Contraditoriamente o digo: ao longo de 2017, confesso, fui ficando siderado pela quantidade de filmes admiráveis que completaram 50 anos de existência.
Dir-se-ia que 1967 foi o ano em que o desmembramento dos modelos clássicos, a começar por Hollywood, foi acompanhado por uma espantosa profusão de experiências capazes de dar razão a um axioma mítico daquela década: tudo é (ou era) possível. Nos EUA, precisamente, foi o ano de Bonnie e Clyde, de Arthur Penn, A Primeira Noite, de Mike Nichols, e Adivinha Quem Vem Jantar?, de Stanley Kramer, filmes que, através das suas diferenças, apontavam para a necessidade de repensar a história, a mitologia e os valores sociais, numa urgência a que não podemos deixar de reconhecer uma perturbante actualidade simbólica.
Foi também o ano de Dont Look Back, de D. A. Pennebaker, documentário celebrando o “escândalo” das guitarras eléctricas nas canções de Bob Dylan, ou A Sangue Frio, de Richard Brooks, segundo o livro de Truman Capote, expondo as convulsões mais íntimas de uma América esquecida (actualmente a passar nos canais TV Cine & Séries).
Na Europa, Luis Buñuel assinava Belle de Jour, com Catherine Deneuve, por certo o mais genial filme de toda a história do cinema a lembrar-nos o que sempre tentamos esquecer: o real é apenas uma construção instável que, ingenuamente, por vezes estupidamente, tentamos validar através dos nossos desejos. Em Inglaterra, com Poor Cow, Ken Loach reabria as portas de uma nobre tradição realista, enquanto em França o sentido visionário de Jean-Luc Godard antecipava dramas e euforias de Maio 68 através de La Chinoise e Weekend. 1967 foi ainda o ano em que Blow-up, de Michelangelo Antonioni, ganhou o Festival de Cannes, numa competição em que estiveram também, por exemplo, Acidente, de Joseph Losey, Terra em Transe, de Glauber Rocha, e Mouchette, de Robert Bresson.
Não tenho nenhuma visão heróica da descoberta destes filmes que muito me marcaram (em boa verdade, muitos deles só os pude conhecer mais tarde). O certo é que o seu fulgor, ainda e sempre moderno, reflecte um tempo em que o cinema não dependia de ruidosas campanhas televisivas, muito menos da agitação pueril de clubes de fãs. O cinema, por mais estranho que isso possa parecer, existia através dos filmes. Nostalgia? Cinefilia.

>>> Trailer original de Bonnie e Clyde.

Os ventos da Amnistia Internacional

SWIIIISSH! — a sua leitura pode evocar o som do vento. É essa a sugestão que faz mover esta magnífica campanha concebida pela agência Reform Act, de Estocolmo, para a Amnistia Internacional da Suécia.
Tratava-se de encontrar uma forma de comunicar, em particular, com a audiência mais jovem, solicitando o apoio, em dinheiro, às lutas pelos direitos humanos, contra as ditaduras e os movimentos anti-democráticos. Daí a palavra-título: a onomatopeia Swish serve também de nome a uma aplicação sueca para telemóveis que facilita o envio de dinheiro para os mais diversos endereços, individuais ou institucionais. Daí a mensagem escrita: "Dinheiro "Swish" para a Amnistia de modo a que consigam continuar a criar ventos contrários aos grandes agressores deste mundo" — o cartaz não identifica o figurante...

10 DISCOS DE 2017 [2]
— Tricky

[ Arca ]

O trip hop morreu?... Longa vida ao trip hop! Enfim, a celebração não envolve nenhum belicismo, apenas um suave tom militante, tentando sugerir o que está em jogo no luminoso álbum nº 13 com que Tricky nos presenteou este ano. Ununiform não é, de facto, um panfleto, antes uma colecção de contrastes (o título não mente) através dos quais Adrian Nicholas Matthews Thaws, à beira de celebrar meio século de existência (no próximo dia 27 de Janeiro), achou por bem prolongar a sua arte de colagem e desmontagem, crueza dramática e apelo poético. Sem se esquecer de convocar os suspeitos do costume, nomeadamente a indispensável Martina Topley-Bird, e agregando, entre outros, os rappers russos Smoky Mo e Scriptonite (rezam as crónicas que a concepção do álbum começou em Moscovo). No caso de New Stole, Tricky refaz o tema Stole, de Francesca Belmonte, com colaboração da própria — é, além do mais, um dos mais belos e encantatórios telediscos do ano.

quinta-feira, dezembro 21, 2017

A verdade de Cuca Roseta (2/2)

Com o seu novo álbum, Luz, Cuca Roseta propõe diversos registos, incluindo algumas variações pop: em qualquer caso, é o fado que continua a definir a sua verdade artística — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Dezembro), com o título '"O canto e a sua razão'.

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Em paralelo com o novo disco Luz, Cuca Roseta publica o livro Poemas (Oficina do Livro), reforçando uma via criativa presente desde o seu primeiro álbum, intitulado apenas Cuca Roseta (2011). Aí, a sua letra de Nos Teus Braços (com música também de sua autoria) surgia como primeiro e exemplar reflexo de um desejo criativo que trabalha a herança do fado através de um misto de nostalgia e inovação [video]. A primeira quadra do primeiro poema do livro, “Versos contados”, será um bom lema: “Do meu fado fiz a letra / E da letra fiz canção / Fado tem sua ciência / Não se canta sem razão”.


Neste trajecto que agora desemboca na luminosidade de Luz (a simbologia não é redundante), deparamos com o mais primitivo fantasma do fado e dos fadistas. A saber: como continuar a tradição num mundo cultural e comercial que, para o melhor ou para o pior, mudou de forma brutal desde que o génio artístico de Amália Rodrigues arriscou todas as experimentações?
Na avalanche que se seguiu ao reconhecimento do fado como património imaterial da humanidade, convenhamos que temos deparado com os mais inconciliáveis contrastes. Acontece que Cuca Roseta se define (também) como uma cantora pop, o que talvez ajude a explicar o fulgor do álbum de estreia, produzido por Gustavo Santaolalla (a meu ver, uma das raras obras-primas absolutas da música portuguesa do século XXI). Sendo Santaolalla um mestre das ligações da música com as imagens de cinema (lembremos apenas a sua banda sonora para Babel, de Alejandro González Iñárritu), talvez possamos dizer que, de modo inusitado e fascinante, o compositor argentino compreendeu as raízes de todo um imaginário português — como se o fado fosse essa perversão que inventámos para sermos estrangeiros dentro da nossa própria história.

"Time": 100 fotos de 2017

PHIL HATCHER-MOORE
Ensaio teatral numa escola primária de Juba, no Sudão
Tragédias que nos acompanharam ao longo de 2017, momentos de desespero absoluto, rituais de alegria ou esperança — de tudo se faz um ano de vida e nem tudo pode ser dito, visto e compreendido através da equívoca velocidade que a televisão nos impôs. Eis uma prova eloquente de que há imagens que transcendem o instante que registam, superando também a aceleração dos nossos circuitos informativos: os editores da revista Time escolheram uma centena de fotografias, das mais extraordinárias que foram registadas ao longo dos últimos doze meses — um admirável portfolio.

ADRIAN KRAUS
Jogadores do Buffalo Bills ajoelham-se antes de um jogo
FILIP SINGER
Monumento evocativo do Muro de Berlim
EMANUELE SATOLLI
Ruínas de Mosul

Nos 80 anos de Jane Fonda

W.
[FOTO: Steven Meisel, 2015]
É bem verdade que a sua carreira está marcada por algumas irregularidades nas escolhas, inclusive por um período de afastamento de cerca de quinze anos, iniciado no início da década de 1990. Seja como for, Jane Fonda é uma das mais admiráveis actrizes do moderno cinema americano, capaz de colocar em cena as nuances mais subtis das personagens mais inesperadas. A sua imagem de marca dos anos 60, fixada pela fantasia pueril de Barbarela (1968), de Roger Vadim, está longe de fazer justiça a uma versatilidade que, em boa verdade, já se tinha revelado em títulos como Restos de Um Pecado (1962), de Edward Dmytryk, ou Perseguição Impiedosa (1966), de Arthur Penn. Um pouco mais tarde, três interpretações podem definir a abrangência do seu talento:
Os Cavalos Também se Abatem (1969), de Sydney Pollack, uma perturbante evocação da desagregação social no tempo da Grande Depressão;
Klute (1971), de Alan J. Pakula, um "thriller" exemplar de um período de reconversão e ultrapassagem das linguagens dos géneros clássicos de Hollywood;
Tudo Vai Bem (1972), de Jean-Luc Godard, genial e amargo balanço do pós-Maio 68, em França, contracenando com Yves Montand.
Klute valeu-lhe um Oscar de melhor actriz, triunfo que repetiu com O Regresso dos Heróis (1978), de Hal Ashby, centrado nas memórias ainda muito próximas dos veteranos do Vietname. Vimo-la ainda em títulos populares como O Síndroma da China (1979), de James Bridges, sobre os perigos da energia nuclear, ou A Casa do Lago (1981), de Mark Rydell, contracenando com o pai, Henry Fonda. Mais recentemente, surgiu, por exemplo, na série televisiva The Newsroom (2012-14), escrita por Aaron Sorkin, e em A Juventude (2015), parábola amarga e doce sobre o envelhecimento, dirigida por Paolo Sorrentino.
Jane Fonda é tudo menos uma memória nostálgica, até porque persiste, serenamente, na sua condição de star — nasceu a 21 de Dezembro de 1937, em Nova Iorque, faz hoje 80 anos.

>>> Trailers: Os Cavalos Também se Abatem + O Síndroma da China + The Newsroom.






>>> Site oficial de Jane Fonda.