terça-feira, março 08, 2011

No país de Godard


De que falamos quando falamos de velocidade de comunicação? Filme Socialismo [em exibição regular a partir de quinta-feira, dia 10] é um objecto de cinema que começa na interrogação da "rapidez" televisiva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 de Março), com o título 'Um país chamado cinema'.

Se procurarmos o trailer promocional de Filme Socialismo, deparamos com um objecto desconcertante. Numa duração minimalista (cerca de um minuto e 15 segundos), Jean-Luc Godard “encaixou” uma quantidade imensa de imagens, mostrando-as em grande aceleração, como se estivessem a ser vistas à máxima velocidade que podemos obter com um DVD ou num ecrã de computador. A ironia, directa e contundente, envolve um desafio formal inerente a mais de meio século de labor “godardiano”: trata-se de expor o absurdo das normas em que aceitamos viver, a começar pelas acelerações “obrigatórias” do espaço televisivo.
Os políticos exprimem-se através de soundbytes de crescente brevidade e infantilismo, procurando apenas um lugar nos telejornais. Entretanto, as televisões renegam qualquer possível “lentidão” das mensagens, sempre em nome do pânico irracional que encara o espectador, não como um ser humano, inteligente e disponível, mas sim como aquele que... pode mudar de canal. Por alguma razão, Godard definiu-se uma vez como um cidadão originário de um país chamado cinema, reconhecendo com mágoa: “O meu país está ocupado pela televisão”.
Em todo o caso, convém não simplificarmos: Godard é também um criador há muito interessado pela televisão e a sua colagem sistemática, dir-se-ia fisiológica, à pulsação quotidiana do nosso mundo. A sua obra monumental sobre o cinema, História(s) do Cinema (1988-1998), integra muitas formas de manipulação, fragmentação e remontagem indissociáveis da idade do video e, genericamente, das linguagens televisivas. Daí a fascinante pluralidade da sua filmografia: sabe lidar com as convulsões da tecnologia e, ao mesmo tempo, não abdica de uma relação obsessiva, potencialmente infinita, com as imagens e os sons da memória.