quinta-feira, maio 21, 2009

Discos da semana, 18 de Maio

A vontade em estabelecer diálogos entre os domínios da música pop(ular) e os da “clássica” é coisa antiga, com episódios vários, para o melhor e para o longe disso. A história do estabelecimento de pontes entre mundos que outrora viveram quase como que separados por muros (e ainda vai havendo quem neles acredite) lembra como fulcral o episódio deliciosamente “sacrílego” de Walter Carlos (hoje Wendy) em 1968 quando, munido de sintetizadores, gravou um disco com peças de Bach... Um disco que chegou aos ouvidos de Kubrick, desafiando este o músico a trabalhar na banda sonora da sua Laranja Mecânica, onde semelhante abordagem revinventou então a música de Beethoven e Rossini... Nas quatro décadas que nos separam de Switched On Bach, os dois mundos cruzaram-se várias vezes, com desfios lançados de ambos os lados. Philip Glass, Steve Reich, John Adams, Todd Levin, entre outros, ensaiando olhares sobre a pop (e suas periferias). William Orbit, Susumu Yokota ou Scott Walker, entre outros mais, experimentando percursos além das fronteiras “clássicas” da pop... Já este ano, com discos de Ambrose Field e Murcof (respectivamente Being Dufay e The Versailles Sessions) assistimos a mais duas importantes propostas de diálogo entre géneros e tempos, ambas reflectindo contudo uma mudança de postura que não crê mais em barreiras de género, antes, no alargar de horizontes de referências, formas e soluções instrumentais a abordar. Em centa entra agora mais um disco precisamente no mesmo comprimento de onda. Private Domain é um esforço colectivo que conta com Iko (com formação clássica em direcção e canto) como pólo que a si junta as presenças de nomes como os de Murcof, Emilie Simon, Marc Collin ou a dupla Paul & Louise. Juntos actuam sobre peças (ou excertos) de nomes de vários tempos, de Monteverdi a Schubert, de Rameau a Fauré, abordando-as numa lógica semelhante à que assiste, habitualmente, à construção de uma versão de uma canção de um outro autor. Private Domain é, contudo, mais que um parente próximo do modelo do disco tributo. A soma das presenças criativas opera sobre os originais, neles colhe pistas, fragmentos, que transforma em novas realidades. E da leitura pop de ecos da obra de Rameau pela dupla Paul & Louise à reinvenção de um madrigal de Monteverdi como canção electrónica por Murcof, abrem-se portas de descoberta que, definitivamente, chamam atenções para todo um vasto mundo de referências e obras que a criação contemporânea, na idade da cultura híbrida e fragmentada, pode (re)descobrir.
Iko invites...
“Private Domain”
Naïve Records
4 / 5
Para ouvir: MySpace


Há já alguns meses que, por estas terras, não se fala de outra estreia: a d’Os Golpes. E com razão. Não apenas porque há muito que não víamos uma banda pop portuguesa a definir, com eficaz sentido de estratégia, o caminho para a entrada em cena de um primeiro álbum. Mas também porque, agora finalmente revelado, o álbum em tudo responde às expectativas que pelo caminho foram lançadas. Em tempos chamaram-se 400 Golpes (como os Les 400 Coups do filme de Truffaut). Investiram na demanda de uma identidade, caíu o “400”, ficou um caminho atento a um conjunto de heranças com geografia e cultura demarcadas: as do aqui, mas não apenas as do agora. Recuperando toda uma simbologia (que não mais faz que o vincar de uma personalidade), os Goples mostram nas canções de Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco sinais estimulantes de uma relação tranquila com a memória, sem que tal os distancie ou alheie do presente. Não são, é certo, os primeiros a fazê-lo entre uma nova geração de bandas que encontrou na nossa música um ponto de partida e no português uma língua oficial. Mas ao panorama de (re)encontros no presente juntam a redescoberta de legados que pareciam esquecidos e sem herdeiros na vida pop nacional: o Corpo Diplomático, os Heróis do Mar, a Sétima Legião...Bandas que desbravaram terreno num tempo em que o desafio que se colocava era o de encontrar, pelo prisma de uma identidade portuguesa, formas de assimilar uma música moderna que chegava de portos pop anglo-saxónicos. 30 anos depois, os Golpes voltam a ir para fora cá dentro. Estão atentos ao presente pop/rock, mas juntam ao que escutam uma alma que tem latitude e longitude por estas bandas... Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco é, assim, mais um disco a juntar a um lote que está a fazer de 2009 mais um ano poderoso em acontecimentos na música portuguesa.
Os Golpes
“Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco”
Amor Fúria / Mbari
4 / 5
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Com uma carreira “subterrânea” desde o início da década, Richard Swift só se fez realmente notado quando, em 2005, a Secretly Canadian juntou dois dois seus primeiros álbuns (um deles até então fechado na gaveta, o outro editado apenas em vinil e vendido em concertos) como The Richard Swift Collection – Vol 1. Revelava-se um cantautor de afinidade “beatlesca”, com claro gosto pela exploração, em terreno lo-fi, de ambientes, molduras e texturas para as suas canções. O álbum teve sucessor, em 2007, em Dressed Up For Letdown, disco que curiosamente passou a leste de muitas atenções. Seguiram-se depois os episódios “não canónicos” Music For The Films Of Richard Swift e Richard Swift as Onassis, duas experiências com pontuais focos de interesse mas distantes, muito distantes, do cantautor que cativara admiradores em finais de 2005. O novo The Atlantic Ocean é, assim, um disco para “fazer as pazes” com a canção. Regressa o Richard Swift melodista, herdeiro de escolas clásicas (dos Beatles a Harry Nilsson), juntando frequentemente mais temperos electrónicos a canções que revelam contudo afinidades evidentes com os álbuns de 2005 e 2007 (de que este, na verdade, é o real sucessor). O cativante tom lo-fi de outros tempos cede lugar a uma música mais cuidada na arte final. Mas a identidade do autor, afinal, revela-se intacta.
Richard Swift
“The Atlantic Ocean”

Secretly Canadian / Popstock
3 / 5
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Entremos numa máquina do tempo, daquelas feitas em casa, e primamos os botões, marcando o destino: 1986. A máquina dá uns solavancos. Pchh.. fshhh... Pshhhh... E pára de novo. Ouve-se música... O gira discos, na garagem onde a máquina do tempo está instalada, toca um álbum. Roda a faixa de abertura, Contender, e pelo som não restam dúvidas. Perfeito, a máquina anda mesmo no tempo, pensamos. Pegamos então na capa do disco... The Pains Of Being Pure At Heart, lê-se... Consulta-se mais informação e faz-se gelo: “recorded in 2008”... Desfaz-se a fantasia! Em 1895, uma máquina do tempo foi ponto de partida para um belíssimo romance “científico” (assim lhe chamava então) de H.G. Wells. Mas, mais de cem anos depois, é engenhoca ainda por inventar. Todavia, um disco quase pode criar a ilusão. E para viajar até 1986 não há melhor banda sonora que o álbum de estreia desta banda indie nova-iorquina. Em dez canções aplicam, a preceito, soluções de forma que evocam os dias em que bandas como os Jesus & Mary Chain, Wedding Present, Ride (que só surgiram em 1988) ou Soup Dragons escreviam o que de novo a pop tinha para nos contar. Melodismo intenso, de escola pop a evocar modelos de 60, mas em regime eléctrico, com gosto pelas texturas de distorção. 23 anos depois, os Pains Of Being Pure At Heart revisitam o livro de estilo da geração “C86”. Juntam-lhe canções novas, suas. Algumas delas belíssimas, é bem verdade. Mas desprovidas de marcas de personalidade realmente interventiva sobre as referências convocadas, limitando-se a mimetismos e jogos de espelhos. Não serão uma banda-tributo que toca originais (porque revelam capacidade de fazer boas canções e de as moldar a uma ideia). Mas parecem não querer ir muito para lá do retrato dos discos e bandas que gostam de ouvir. É pena!
PS. Moral da história: não deixar a capa do disco ao pé da máquina do tempo.
The Pains Of Being Pure At Heart
“The Pains Of Being Pure At Heart”
Fortuna Pop
3 / 5
Para ouvir: MySpace


Editado em finais de 2006, Jarvis assinalava a estreia em álbum de Jarvis Cocker, uma das mais carismáticas e musicalmente consequentes figuras da pop britânica dos anos 90 (com carreira que, na verdade, remontava a meados de 80). O álbum mostrava um homem em busca de novo rumo, entregue a uma mão cheia de canções que, salvo pontuais excepções, em nada traduziam os adjectivos com que o seu autor até então era reconhecido. Agora surge Further Complications... E o título não podia ter sido mais bem escolhido, revelando o disco que o que parecia uma desorientação pós-Pulp ganha agora amplitude de desnorte. Gravado com Steve Albini na mesa da produção, este é um álbum de alma eléctrica, com ambientes que evocam memórias várias de 70, do glam rock ao prog rock... O divórcio recente do músico pode indiciar o clima emocional menos tranquilo que as canções traduzem. O “espírito” e o tom jocoso do observador e comentador do quotidiano que escutávamos noutros tempos está mais ausente que nunca. Restam alguns instantes com interesse relativo... Mas estamos longe, muito longe, do ícone que fazia a agenda pop na Inglaterra de outros tempos.
Jarvis Cocker
“Further Complications”
Rough Trade / Popstock
2 / 5
Para ouvir: MySpace


Também esta semana:
The Field, Manic Street Preachers, Madness, Passion Pit, Tangerine Dream (reedições), Jeffrey Lewis, The Vaselines, Tori Amos, Lightning Seeds, Passion Pit, Tom Tom Club (reed.), Kronos Quartet

Brevemente:
25 de Maio: Grizzly Bear, Phoenix, Siouxsie & The Banshees (live), Iggy Pop, Iron & Wine, Pink Mountaintops, Loop
1 de Junho: Patrick Wolf. Eels, John Vanderslice, Foreign Born, Elvis Costello, Franz Ferdinand (dub)
8 de Junho: Sonic Youth, Little Boots, Kasabian, Placebo, The Housemartins (reedição), Neil Young (archives), Orbital

Junho: Regina Spektor, Tortoise, Duran Duran (reedições + DVD), VV Brown, Jeff Buckley, George Harrison, Frankmuzik, Peter Hammil, Chris Isaak, God Help The Girl, Gossip, Dirty Projectors, Fiery Furnaces, Wilco, Carminho, Moby
Julho: Chris Garneau, Florence and The Machine, Cass McCombs