quarta-feira, novembro 30, 2022

Christine McVie (1943 - 2022)

[Wikipedia]

A sua história na música é indissociável da condição de vocalista, teclista e compositora dos Fleetwood Mac, ainda que tenha também uma pequena discografia a solo: a inglesa Christine McVie faleceu no dia 30 de novembro — contava 79 anos.
Em 1998, abandonou a banda para viver um período de grande privacidade. Regressou em 2013 para um lendário concerto na O2 Arena, em Londres — nesse mesmo ano, passou a integrar o Rock and Roll Hall of Fame, enquanto membro dos Fleetwood Mac, tendo também recebido um Brit Award pela sua excepcional contribuição para a Música.

>>> Dreams, Fletwood Mac (álbum: Rumours, 1977).


>>> Little Lies, Fleetwood Mac (álbum: Tango in the Night, 1987).
 

>>> Songbird, Christine McVie (BBC Radio 2, 2017).
 

>>> Obituário na BBC.

terça-feira, novembro 29, 2022

Rolling Stones, memórias psicadélicas

Foi lado B do single de She's a Rainbow2000 Light Years from Home é uma canção dos Rolling Stones incluída no álbum que é a pérola mais psicadélica da sua discografia: Their Satanic Majesties Request — reaparece agora com direito a teledisco recuperado dos arquivos da banda. Esta é a época de um glorioso quinteto: Mick Jagger (voz), Keith Richards (guitarra), Brian Jones (mellotron), Bill Wyman (baixo) e Charlie Watts (bateria).

Que viva México!
(Alejandro González Iñárritu)

Daniel Giménez Cacho no seu "exílio", algures entre México e EUA

Autor central na história recente de Hollywood, o mexicano Alejandro González Iñárritu regressa ao seu país para um filme grandioso sobre as fronteiras difusas de geografia e cultura. O título é todo um programa narrativo: Bardo, Falsa Crónica de umas Quantas Verdades — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 novembro).

A. G. Iñárritu
Os conflitos entre salas de cinema e plataformas de “streaming” já não são o que eram. Os agentes do mercado vão percebendo que não faz sentido — não apenas em termos artísticos, mas também por razões industriais e comerciais — conceber as várias hipóteses de difusão como opções extremadas em conflito de mútua exclusão. Afinal, ao longo dos últimos anos algum jornalismo cinematográfico tem vindo a chamar a atenção para a necessidade de criar vias de diálogo e colaboração entre os vários contextos em que um filme passou a existir. Aí está um bom exemplo: Bardo, Falsa Crónica de umas Quantas Verdades, de Alejandro González Iñárritu, um título da Netflix, surge nas salas a 17 de novembro e, cerca de um mês mais tarde (16 de dezembro), estará disponível naquela plataforma.
O acontecimento é tanto mais importante quanto, além de não ser um caso isolado — o novo Pinóquio, de Guillermo del Toro, terá um tratamento semelhante —, permite valorizar ao máximo as imagens e os sons de um projecto que, com invulgar energia, começa por apelar às dimensões de um grande ecrã. Sem esquecer que Iñárritu, juntamente com del Toro e Alfonso Cuarón, forma um grupo de “três mosqueteiros” mexicanos que triunfaram em Hollywood.
Para a Netflix, Bardo será mesmo uma aposta renovada na temporada de prémios com assinatura de um desses autores mexicanos. Aconteceu em 2019, com Roma, de Cuarón, que falhou o objectivo máximo: arrebatar o Oscar de melhor filme do ano, ainda que tenha ganho na categoria de melhor filme internacional. Este ano, Bardo surge, para já, como representante do México na corrida ao Oscar desta última categoria.

Realismo e sonho

O título Bardo tem sido citado por alguns críticos dos EUA através de um duplo sentido: por um lado, como designação metafórica de um poeta lírico, neste caso associada, com calculada ironia, à personagem de Silverio Gama (notável interpretação de Daniel Giménez Cacho), jornalista mexicano a viver há 20 anos nos EUA, à beira de receber um prémio que irá confirmar o seu prestígio “made in USA”; por outro lado, a saga de Silverio — cruzando as convulsões da sua família com algumas memórias históricas e, sobretudo, bélicas das relações México/EUA — poderá também evocar a noção budista de um limbo, entre vida e morte, lugar imaterial de enigmática transfiguração do ser humano.
São legítimas interpretações da palavra “bardo” que, acredito, o próprio Iñárritu não renegará. Mas vale a pena acrescentar uma terceira hipótese que, salvo erro da minha parte, é a única directamente presente no filme, numa conversa de Camila (Ximena Lamadrid) com Silverio, seu pai. Ou seja: bardo como terreno ou propriedade rural que, em última instância, designa um espaço habitado por um colectivo familiar.
Porque, enfim, se há questão fulcral, de uma só vez pública e privada, política e simbólica que atravessa todo o filme, será a da pertença. Pertença a quê? A um lugar, justamente. Que lugar? Uma entidade com tanto de geográfico como de cultural: pode ser um país, uma família ou “apenas” uma comunidade de valores e afectos.
Bardo existe, assim, como uma colagem fascinante de lugares, vividos ou imaginados, que Silverio percorre como uma prova de fogo existencial, individual e dolectiva. Daí a suprema ambivalência em que tudo acontece, aproximando a pulsão realista do mais puro e envolvente onirismo. No limite (e sem querer revelar demasiado), diria que nos instantes finais do filme sentimos que estamos de novo na cena de abertura, como se as mais de duas horas de projecção equivalessem a uma mágica fração de segundo.

Utopia e sagrado

As ressonâncias da filmografia de Iñárritu são muitas e significativas. Afinal de contas, também ele tem sido um criador “exilado” nos EUA, autor, por exemplo, do monumental The Revenant: O Renascido (2015), com Leonardo DiCaprio, regressando agora ao México, 22 anos depois de Amor Cão. As “verdades” que o título refere, indissociáveis do reconhecimento das dificuldades de inserção de Silverio (e, podemos supor, do próprio Iñárritu) no tecido social e profissional dos EUA, desembocam no tom de “falsa crónica” que o filme assume. Bardo, Falsa Crónica de umas Quantas Verdades não cede, assim, a qualquer confessionalismo obsceno, hoje dominante em diversos sectores da “comunicação” televisiva — a cena da “entrevista” em televisão é mesmo um precioso ensaio sobre a degradação humana que, por vezes, invade os nossos ecrãs caseiros.
Curiosamente, na sua dantesca grandiosidade, a sequência da fronteira em que vemos milhares de mexicanos a tentar entrar nos EUA remete para outro momento exemplar do trabalho de Iñárritu (menos conhecido, por óbvias limitações de difusão): a curta-metragem de Realidade Virtual, Carne Y Arena, revelada no Festival de Cannes de 2017. Num caso como noutro, deparamos com a vontade utópica de devolver ao cinema uma vibração épica capaz de o libertar do maniqueísmo de heróis sem alma. Iñárritu é um dos cineastas contemporâneos que não desiste da dimensão sagrada do cinema — que isso nos chegue através de uma produção com chancela de uma plataforma de “streaming”, eis a contradição, perturbante sem dúvida, que importa saudar.

Steven Meisel / Lanvin

Os códigos da moda e continuam a ser, de uma só vez, percorridos e desafiados por Steven Meisel. O seu mais recente portfolio, para a marca Lanvin, cruza uma poética de raiz feminina com a austeridade clássica do retrato — a preto e branco, como a tradição exige.

domingo, novembro 27, 2022

Yoshimi, 20 anos

Yoshimi Battles the Pink Robots, álbum nuclear na trajectória criativa dos americanos The Flaming Lips, Wayne Coyne & Cª, faz 20 anos. E tem direito a edição especial, DeLuxe, pois claro. Revisitamos o teledisco original de Yoshimi Battles the Pink Robots, Pt. 1.

sábado, novembro 26, 2022

Na companhia de Freud

Reflexão (auto-retrato), 1985

O LEFFEST celebrou o cinema, acolhendo também outras imagens, por exemplo de Freud, o pintor: com ele, reencontramos a verdade do realismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 novembro).

Lucian Freud
Freud desceu à cidade. Eis aquele que poderia ser um título sugestivo para acolher as imagens de Lucian Freud (1922-2011) que a sua filha, Bella Freud, decidiu trazer à 16ª edição do Lisbon & Sintra Film Festival. E insisto na palavra “imagens”: não apenas os quadros, mas memórias vivas do próprio pintor, num filme realizado por Jake Auerbach para a BBC — da série “Omnibus”, emitido a 20 de maio de 1988 —, documento precioso em que vemos e escutamos o próprio Freud num raro testemunho sobre o seu trabalho.
Freud sempre resistiu às formas banais (mais “mediáticas”, como agora é moda dizer-se) de exposição pública. O facto, aliás, é sublinhado logo na abertura do programa da BBC, dando conta do contexto em que o pintor aceitou ser filmado e falar um pouco do seu trabalho: foi em 1988, precisamente, por ocasião da retrospectiva que teve lugar na Hayward Gallery, em Londres.
Antes mesmo de Auerbach começar a colocar as suas perguntas, somos confrontados com uma longa, lenta e ritmada frase de Freud: a sua fala vai “colando” conjuntos precisos de palavras, dir-se-ia como quem escolhe as pinceladas certas para criar uma determinada figura ou volume. Embora consciente da dificuldade de tradução, eis uma possível versão: “Muitas pessoas mostram-se espantadas pelo facto de alguém sacrificar a possibilidade de algum conforto e daquilo que consideram uma vida agradável, vivendo antes uma vida de incerteza, talvez mesmo de solidão, dedicada àquilo que encaram como uma actividade incompreensível, com resultados que muito provavelmente nem sequer alterarão a sua situação em termos económicos — a ideia de tudo isso é, para muitas pessoas, surpreendente, sobretudo para quem não ande a tentar fazer algo do mesmo género.”
No fim destas palavras, propondo um metódico jogo de espelhos, Auerbach dá a ver um dos auto-retratos do pintor, datado de 1985. Aliás, como mais à frente o próprio Freud explicará, a noção de “auto-retrato” é, para ele, muito discutível: aquele que faz o seu retrato não se pode ver a si próprio, a não ser através de algum tipo de reflexão — o título exacto do quadro é mesmo Reflexão (auto-retrato). A ambiguidade da classificação ajuda-nos a compreender a obsessão realista da sua obra — a esse propósito, o filme cita o crítico Robert Hughes (autor de um programa clássico da BBC sobre a arte moderna, The Shock of the New, emitido em 1980), considerando que, naquele momento, Freud era “o maior pintor realista vivo”. As relações que estabeleceu com os seus modelos (não profissionais) são, nesse aspecto, esclarecedoras, já que Freud considerava mesmo que a noção corrente de “posar” é algo que, a todo o custo, procurava evitar: “Quero que aqueles que posam para mim sejam eles próprios, não quero utilizá-los para satisfazer uma ideia minha, como se se tratasse de escolher uma figura para ilustrar essa ideia. O que quero é pintar cada um deles — mesmo um gémeo igual não serviria como substituto.”
Embora este não seja um acontecimento “central” na programação do LEFFEST (afinal de contas, o festival propõe os mais recentes filmes de Cronenberg, Sokurov, Skolimowski, etc.), nele podemos reencontrar um tema hoje em dia desvalorizado pela avalanche de imagens quotidianas que consumimos sem qualquer distanciamento ou pensamento. A saber: a paixão pelo realismo e pela sua verdade — na certeza de que não há “um” realismo, mas vários realismos, cada um ligado a determinado contexto histórico e criativo.
Essa verdade tem tanto de físico como de imaterial e imponderável. Uma vez, num dos seus apontamentos, Freud escreveu: “A aura que emana de uma pessoa ou de um objecto pertence-lhes tanto como a sua carne.” A frase é citada no livro Breakfast with Lucian (Vintage Books, Londres, 2015), escrito pelo jornalista Geordie Greig a partir de conversas ao pequeno almoço durante os últimos dez anos de vida do pintor.
Inevitavelmente, Greig confrontou o amigo Lucian com a possibilidade de ter sido influenciado pelo avô, Sigmund Freud (1856-1939), fundador da psicanálise. “Nunca penso dessa maneira”, respondeu-lhe o pintor que, como Greig sublinha, considerava que “demasiada análise era paralisante”. Por isso mesmo, fiquemos por aqui, celebrando a presença de Freud entre nós, na certeza de que o neto tinha uma memória muito terna do avô: “Gostava muito da sua companhia. Nunca era aborrecido. Contava-me anedotas.”

sexta-feira, novembro 25, 2022

António da Cunha Telles, in memoriam

[ DN ]

Para lá da escrita de um obituário de António da Cunha Telles — falecido no dia 23, em Lisboa, contava 87 anos —, permito-me, num registo mais pessoal, citar um período especificamente profissional da minha relação com o autor de O Cerco (1970).
Assim, tendo trabalhado como seu assistente no filme Continuar a Viver (1977), guardo desse tempo de filmagens com os pescadores da Meia Praia, em Lagos, uma memória de muitos contrastes, entre perplexidade e felicidade, de alguma maneira reveladora do tempo original que estávamos a viver — não apenas eu, como é óbvio, não apenas a equipa do filme, mas toda a sociedade portuguesa.
Valerá a pena recordar que, de forma mais ou menos programática, se tratava de relançar toda uma ideia de cinema (português, antes do mais), indo filmar o povo e, em particular, os sinais concretos de uma nova história, ou de um novo capítulo histórico, aberto com o dia 25 de abril de 1974. Concretizando: Continuar a Viver é uma crónica documental sobre a actividade do SAAL naquele contexto — ou seja, o Serviço de Apoio Ambulatório Local, criado, precisamente, para tentar resolver os problemas habitacionais das populações mais desfavorecidas.
Reflectindo as singularidades daqueles sinais, a canção Os Índios da Meia Praia, composta e interpretada por José Afonso para a banda sonora do filme, ficou, para mim, como um espelho modelar desse tão peculiar estado das coisas.


É bem verdade que esse impulso "popular" (as aspas pretendem reflectir as muitas ambiguidades e incertezas do processo que vivemos, dentro e fora do cinema) gerou e, de alguma maneira, legitimou as experiências mais variadas, das mais pensadas às meramente circunstanciais, estas últimas por vezes cedendo a uma demagogia política e, sobretudo, moralista que as décadas que se seguiram nem sempre souberam dissipar. Mas não é menos verdade que foram tempos empolgantes, de infinita discussão do que poderia fazer sentido num cinema "colado" às vidas concretas deste ou daquele grupo de portugueses.
Com o passar dos anos, Continuar a Viver foi-se inscrevendo na minha memória mais íntima (e, por isso mesmo, de partilha menos fácil, ou até menos desejada) como um objecto sintomático de toda uma conjuntura em que, de uma maneira ou de outra, todos os cidadãos foram desafiados a pensar ou repensar a sua pertença a um país.
Este é, para mim, um filme de certezas e incertezas, gestos racionais e momentos instintivos, cuja agilidade face à novidade do que estava a acontecer lhe confere uma paradoxal fragilidade: tratava-se de filmar o presente (ou, é caso para dizer: continuar a filmar) com um empenho cinematográfico tecido de hesitação e ousadia. Recordo essa fragilidade com imensa ternura pelo António e uma profunda gratidão pela possibilidade que ele me deu de, a seu lado, poder lidar com a avalanche da nossa história colectiva.

segunda-feira, novembro 21, 2022

Golias — em nome do povo francês

Gilles Lellouche: uma parábola social em tom de "David e Golias"

Recuperando uma tradição narrativa de algum cinema europeu, o filme francês Golias encena um conflito social motivado pelo uso de pesticidas letais, com um excelente elenco liderado por Gilles Lellouche — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 novembro).

A força simbólica de uma tradição cinematográfica não resulta da nostalgia com que a evocamos, muito menos de uma qualquer beatice mediática para satisfazer a moda do “culturalmente correcto”. Quando existe uma memória ágil de tal dinâmica, podemos deparar com belas surpresas como Golias, produção francesa com realização de Frédéric Tellier disponível salas portuguesas.
A tradição que faz sentido evocar — o “thriller” europeu com histórias e personagens que reflectem clivagens sociais e políticas do presente — sempre marcou algum cinema francês, em particular através de autores clássicos como Costa-Gavras (Estado de Sítio, 1972) ou, mais recentemente, Laurent Cantet (A Turma, 2008) e Stéphane Brizé (A Lei do Mercado, 2015). Na produção de Itália, em particular ao longo das décadas de 1960/70, podemos encontrar alguns título igualmente importantes: recordo a trajectória modelar de Dino Risi (1916-2008) e o exemplo emblemático de Em Nome do Povo Italiano (1971), centrado numa investigação do comportamento de um poderoso industrial com perversas relações com o meio político.
O “Golias” citado no título do filme de Tellier é uma empresa de produtos químicos para a agricultura, Phytosanis. Quem desafia os seus poderes é um “David” constituído por uma comunidade de pessoas directa ou indirectamente afectadas pela “tetrazina”, um pesticida cancerígeno.
Os nomes da empresa e o pesticida são fictícios, mas não pretendem ser neutros em relação a acontecimentos recentes na sociedade francesa, quer na esfera da justiça, quer na discussão pública sobre os prós e contras dos pesticidas. Num texto de abertura, o filme esclarece isso mesmo, já que, depois de assinalar os seus elementos fictícios, se escreve: “Qualquer semelhança com acontecimentos reais, pessoas mortas ou vivas não é fortuita, nem involuntária.”
Entenda-se: não é a gravidade dos assuntos evocados que garante a qualidade do filme — já é tempo de percebermos que a importância, ou mesmo a urgência, dos “temas” tratados serve muitas vezes de máscara social de algum cinema apenas medíocre. Invulgar no filme de Tellier é, justamente, essa capacidade (tradicional) de tratar o assunto, não como se fosse um “inventário” jornalístico ou um “sermão” político, mas como uma verdadeira narrativa cinematográfica, com gente viva e emoções genuínas.
Três personagens definem os pólos dominantes do drama: Patrick, o advogado que, superando algum desencanto do seu próprio passado, decide defender as vítimas; France, cujo marido morreu devido aos efeitos da “tetrazina”; e Mathias, líder do “lobby” da Phytosanis, combinando uma sinistra habilidade negocial com o cinismo face ao sofrimento dos outros. Dito de outro modo: este é também um filme de grandes interpretações, sobretudo nessa personagens — Gilles Lellouche, Emmanuelle Bercot e Pierre Niney, respectivamente. Sem esquecer que, no papel de um cientista que conhece os abusos ligados à fabricação de pesticidas, surge Jacques Perrin (1941-2022) naquele que seria o deu derradeiro trabalho em cinema.

Cronenberg, aqui e agora


É na quinta-feira, dia 24, que se estreia Crimes do Futuro, de David Cronenberg. Comecemos por dizer, para simplificar, que tão prodigioso objecto de cinema tem também aquele que é, provavelmente, o melhor trailer do ano. Voilà.

sábado, novembro 19, 2022

À espera de Steven Spielberg

Com Os Fabelmans, maravilhosa viagem pelos labirintos das memórias familiares e cinéfilas, Steven Spielberg convoca-nos para uma genuína memória de amor do cinema, e pelo cinema — é ele que está na capa da edição da Time com data de 5/12 de dezembro. Apresentado em ante-estreia no LEFFEST, o filme chega às salas portuguesas no dia 22 de dezembro.
 

A pintura como arte do tempo

"Homem a oferecer dinheiro a uma jovem":
um quadro de 1631 revisto no nosso presente

Um quadro holandês do século XVII “reaparece” num romance da americana Katie Kitamura: o presente é feito de muitos passados — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 novembro).

Reparem neste quadro. Que acontece? Com a mão direita, um homem oferece algumas moedas a uma jovem. Ela está a bordar à luz de uma lamparina, absorvida no seu trabalho, os pés aquecidos por uma caixa com brasas de carvão. A composição está carregada de sugestões implícitas. Desde logo pelo contraste entre a “brancura” dela e o “negrume” dele, ampliado pela respectiva sombra: as moedas são uma arma de sedução, tentando comprar os favores (sexuais, por certo) da mulher — ela persiste na distância casta que o seu próprio trabalho significa.
Estamos perante uma pintura muitas vezes, justificadamente, citada pela sua linguagem feminista. Seja como for, e por mais que alguns maniqueísmos ideológicos queiram tratar todas as relações masculino/feminino em função das convulsões do nosso presente, convém não excluir a densidade das memórias. Quanto mais não seja porque se trata de um quadro com data de 1631. Foi, de facto, há quase quatro séculos que a holandesa Judith Leyster (1609-1660) pintou este “Homem a oferecer dinheiro a uma jovem”. É uma das preciosidades do Museu Mauritshuis, na cidade de Haia, instituição em que obras-primas de Rembrandt ou Vermeer coexistem com objectos tão especiais como este — sem esquecer que, na sua época, Leyster foi uma das raras mulheres a construir uma obra realmente pessoal.
Agora, “Homem a oferecer dinheiro a uma jovem” ressurge, se assim nos podemos exprimir, num romance de Katie Kitamura, escritora americana, de ascendência japonesa, nascida em Sacramento, Califórnia, em 1979. Chama-se Intimidades e foi recentemente editado entre nós pela Quetzal (com tradução de Tânia Ganho) — a narradora, cujo nome não chegamos a conhecer, é uma mulher de Nova Iorque que, depois da morte do pai, vai trabalhar como tradutora para o Tribunal Internacional de Haia.
No capítulo 10 do livro, essa personagem central visita o Mauritshuis e descobre o quadro. Surpreendida pelo facto de Leyster ter “uns meros vinte e dois anos quando o pintou”, ao mesmo tempo reconhecendo o seu poder figurativo, universal e intemporal, contempla aquilo que chama a “inconsistência presente no âmago da imagem”. Inconsistência, entenda-se: uma magnífica “ambiguidade”. Escreve ela: “Por mais que eu olhasse para o quadro, não conseguia conciliar a modéstia perfeita da rapariga, cujo corpo estava todo coberto, tirando o rosto e as mãos, com o comportamento lascivo do homem e a sua oferta. Talvez ele estivesse simplesmente a oferecer-se para lhe comprar o pano bordado? Mas, se assim era, porquê a expressão de medo na cara da rapariga? Porquê a concentração da jovem, tão frágil e carregada de significado, como se fosse a única forma de recusa que lhe era permitida?”
Esta descrição da narradora, também ela ambígua e em aberto, não pretende, como é óbvio, satisfazer as regras de qualquer enquadramento histórico do quadro (para isso, sugiro consulta do excelente site oficial do Mauritshuis). O que aqui encontramos é uma rima perfeita com o tom fragmentário de Intimidades, romance que talvez possamos definir como uma metódica exploração de uma escrita que prefere o anti-clímax a qualquer “explosão” dramática das suas componentes.
Qual é, afinal, o núcleo narrativo do romance? Será o facto de, no seu trabalho, a narradora se deparar com matérias tão perturbantes como os horrores perpetrados por um ditador africano? Ou será a sua relação com um homem, de nome Adriaan, que parece enredado num divórcio sem conclusão à vista? Ou será “apenas” uma cena pintada por uma mulher do século XVII?
A certa altura, ela enfrenta uma ausência de Adriaan (para, ao que ela supõe, concluir o seu divórcio), ficando a viver na casa dele, casa ainda exibindo as marcas do seu casamento. Como Adriaan vai adiando o regresso, sem notícias claras do que está a acontecer, ela acaba por voltar para o seu apartamento. Já perto do final, regressa à casa para ir buscar um livro antigo que comprara (livro com um papel importante em vários momentos do romance). Para ir buscar um livro…“ou pelo menos foi isso que disse a mim própria.” Daí a sensação de um inclassificável exílio, condensado neste desabafo íntimo: “Senti-me, atravessando a casa, transparente.”
Talvez que, na sua sábia contenção, Intimidades seja um livro sobre essa transparência em que, afinal, todas as coordenadas afectivas parecem vacilar, levando-nos a sentir a frágil duração, e as muitas ambiguidades, do acto de viver. Até porque nos quadros do Mauritshuis podemos contemplar o fascínio de todas as artes narrativas, quer dizer, “o peso do tempo a passar”.

sexta-feira, novembro 18, 2022

Twitter / Apocalypse Now

[ CNN ]

Estranhamente, uma parte significativa da comunicação "social" parece assistir ao caos no interior do Twitter como uma cena descartável de um videojogo pueril... O certo é que há quem observe as convulsões postas em marcha por Elon Musk — incluindo o êxodo em massa de muitos empregados — como um apocalipse que, quer queiramos, quer não, não poderá deixar de afectar este mundo (demasiado) virtual em que vivemos ou somos obrigados a viver. Vale a pena escutar a análise de Oliver Darcy na CNN.

quarta-feira, novembro 16, 2022

John Mellencamp, 1985

Nas palavras sucintas e precisas de Stephen Thomas Erlewine, Scarecrow, de John Mellencamp, é "o ideal platónico do tradicional álbum de rock'n'roll americano". Datado de 1985, reaparece agora em edição DeLuxe — eis o lyric video de Carolina Shag.
 

domingo, novembro 13, 2022

Beethoven: Takács & deMaine


Reconhecido com um dos intérpretes de excelência de Beethoven, o pianista húngaro Peter Takács reune-se, agora, com o violoncelista americano Robert deMaine para aquele que ficará, por certo, como um dos mais extraordinários álbuns de 2022. Com chancela da editora canadiana Leaf Music, Beethoven Complete Music For Piano and Cello é, além do mais, um exuberante desmentido do lugar-comum segundo o qual o compositor deu sempre protagonismo ao piano, utilizando o violoncelo como "acompanhante" — este é, de facto, o maravilhoso diálogo de dois instrumentos unidos pela mesma metódica entrega à dimensão sagrada da música. 
Eis o Allegro, ma non tanto, da Sonata nº 3. 

Amesterdão, uma utopia americana

Hollywood no seu melhor:
Christian Bale, Margot Robbie e John David Washington

O novo filme de David O. Russell, Amesterdão, refaz para os nossos dias um riquíssimo património literário e cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 outubro).

Com motivações diversas, por vezes contraditórias, passou a ser moda usar a palavra “narrativa”. Acontece que, por efeito da mediocridade filosófica de muitos discursos que circulam através da cena política, banalizou-se uma perspectiva pueril: “narrativa” deixou de ser o resultado de uma construção (narrativa, precisamente) apostada em lidar com a complexidade do mundo à nossa volta, para passar a ser reduzida a um exercício, tendencialmente suspeito, empenhado em mascarar evidências desse mesmo mundo. Quem trata assim a “narrativa” está apenas a tentar impor a sua própria visão como a única que pode avalizar tais evidências — ingenuamente, acredita mesmo que, certamente por bênção divina, não está a desenvolver qualquer trabalho narrativo.
David O. Russell
Nada de novo. De Dostoievski a Eça de Queirós, o romance do século XIX ensinou-nos a conhecer tais questões, incluindo as formas de incerteza, sedução e inquietação que podem arrastar. E o cinema também, claro: para nos ficarmos por uma referência modelar, lembremos a obra do grande Joseph L. Mankiewicz e o esplendor desses bailados de narrativas cruzadas que são filmes como All About Eve/Eva (1950) ou A Condessa Descalça (1954).
O novo filme de David O. Russell, Amesterdão, é um notável herdeiro desse património literário e cinematográfico, talvez mais do primeiro que do segundo — apetece dizer: mais F. Scott Fitzgerald que John Ford. O ponto de partida, de uma só vez factualmente vago e simbolicamente perturbante, é uma conspiração que, na primeira metade da década de 1930, numa conjuntura de avanço de diversas forças fascistas ou fascizantes, terá tentado afastar Franklin D. Roosevelt da Casa Branca e lá colocar um governo ditatorial.
A partir dessa referência, Russell, também argumentista, constrói uma fascinante teia de acontecimentos centrada num trio cuja amizade foi cimentada por experiências partilhadas na Primeira Guerra Mundial: Burt Berendsen e Harold Woodsman, dois militares, o primeiro médico, o segundo advogado, e Valerie Voze, uma enfermeira. Se mais não houvesse, os seus intérpretes — Christian Bale, John David Washington e Margot Robbie, respectivamente —, são a prova muito real de que, apesar dos corpos digitais com que Marvel & Cª. vão (des)educando os espectadores mais jovens, a mais nobre tradição de representação de Hollywood mantém-se viva e recomenda-se.
Não estamos, entenda-se, perante esse academismo mais ou menos televisivo (aplicado por muitas séries “históricas” lançadas em streaming) que consiste em conceber a “reconstituição” do passado como uma acumulação mimética de cenários e guarda-roupa. Claro que há um imenso cuidado no tratamento de tais elementos que, em qualquer caso, não são um fim em si mesmo. O que mais conta para a narrativa de Amesterdão é o modo como a época retratada se apresenta como um imenso fresco existencial e político, por um lado obrigando cada personagem a repensar a sua própria identidade, por outro lado questionando a volatilidade dos valores capazes de cimentar toda uma sociedade — e creio que não será necessário sublinhar como a saga de Burt, Harold e Valorie contém ecos das convulsões políticas no presente dos EUA.
O facto de Russell pontuar o filme em off, alternadamente, através das vozes das três personagens principais é revelador da sua moral narrativa. Não se trata de eleger alguém como “ponto de fuga” heróico da acção, mas sim de construir um puzzle de situações através do qual compreendemos que a história que cada um vive tem tanto de pensado e programado como de frágil e imponderável.
Daí também a ambivalência do próprio registo narrativo: aquilo que, numa cena, surge como comédia de costumes pode, na cena seguinte, renascer como potencial tragédia histórica. Gil Dillenbeck, o veterano interpretado por Robert De Niro, será o símbolo modelar desse ziguezague: começamos por vê-lo como caricatura de um certo modelo de militar para, por fim, através dele reconhecermos a gravidade das implicações políticas dos factos narrados.
Com uma agilidade rara, a câmara de Russell sabe expor a vertigem de tudo isso sem nunca alienar a dimensão realista da própria época retratada. E também a sua ambígua geografia afectiva. Afinal de contas, a cidade de Amesterdão, onde o trio central vive o pós-guerra num clima de felicidade que todos sabem que só pode ser efémero, corresponde a uma singular dimensão utópica — a mitologia de Hollywood é indissociável da inspiração narrativa da nossa Europa.

sábado, novembro 12, 2022

Bruce Springsteen,
Turn Back the Heads of Time

Turn Back The Hands Of Time, mítica canção R&B, lançada por Tyrone Davis em 1970, é mais um tema a integrar Only the Strong Survive, o novo álbum de Bruce Springsteen — refazendo também o gosto pelas "variedades" filmadas em estúdio. Em baixo, o registo original.
 


De Fassbinder a Ozon [2/2]

Denis Ménochet pega fogo à imagem de Khalil Gharbia

Através do magnífico Peter von Kant, o francês François Ozon reencontra a herança da obra do alemão Rainer Werner Fassbinder: este é um filme capaz de celebrar o artifício do cinema a partir de uma herança visceralmente teatral — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 outubro), com o título 'Recriando a herança das lágrimas amargas'.

[ 1 ]

Ozon está também a evocar a própria filmografia, já que uma das suas primeiras longas-metragens, Gotas de Água sobre Pedras Escaldantes (2000), se baseia numa peça de Fassbinder, igualmente construída em torno da relação de dois homens com grande diferença de idades. Tal proximidade está longe de ser apenas “temática”, sendo sobretudo conceptual e figurativa. Num caso como noutro, a assumida teatralidade do cenário acaba por se confundir com um ambíguo gesto nostálgico: Peter von Kant é um filme apostado em redescobrir as delícias de um cinema enraizado nos artifícios do estúdio — tudo, mas mesmo tudo, do impecável rigor geométrico do espaço até às mais simples manifestações naturais (a neve a cair lá fora…), é tratado através da sensualidade de tais artifícios.
Como sempre em Ozon, a vibração do drama (ou da comédia) envolve um minucioso trabalho com os actores, a começar, claro, no papel de Peter, por esse gigante do cinema francês que é Denis Ménochet (vimo-lo, por exemplo, em Custódia Partilhada, produção de 2017 assinada por Xavier Legrand) e Khalil Gharbia, representando o misto de ironia e insolência que define o “fantasma” romântico que é Amir. Sem esquecer, claro, Stefan Crepon, interpretando com minuciosa contenção o silêncio e a mágoa do abusado Karl.
O contraponto das actrizes é tanto mais importante quanto, para lá do seu talento, “transportam” memórias vitais. Hanna Schygulla, no papel da mãe de Peter, é uma “mensageira” de muitas emoções cinéfilas — participou em mais de duas dezenas de títulos de Fassbinder, incluindo As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. Interpretando Sidonie, Isabelle Adjani reencontra algo da dimensão mitológica do seu lugar na história do cinema francês — a sua composição em A História de Adèle H. (1975), de François Truffaut, poderá servir de memória simbólica, até porque Ozon é um legítimo herdeiro do gosto romanesco de Truffaut.
Para que as memórias reencontrem a sua utópica harmonia, vale a pena recordar que a canção que Peter escuta nos momentos iniciais do filme — Jeder tötet was er liebt, interpretada por Sidonie/Adjani — foi composta por Peer Raben, a partir de um poema Oscar Wilde, para a banda sonora do título final de Fassbinder, Querelle (1982), onde é cantada por Jeanne Moreau. E também que o quadro Midas e Baco (c. 1630), de Nicolas Poussin, que domina o espaço em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, reaparece numa parede do apartamento de Peter von Kant.
NICOLAS POUSSIN
Midas e Baco
(c.1630)

José Saramago: livros e filmes
* SOUND + VISION Magazine
> [FNAC, hoje, dia 12]

sexta-feira, novembro 11, 2022

The 1975 x 3


Eis a banda inglesa The 1975 ao vivo. Ou melhor, aquilo que designaram como 'Official Live Performance': são três canções — Looking For Somebody To Love, Part of The Band e Oh Caroline — do seu novo álbum, Being Funny in a Foreign Language, encenadas com sobriedade e panache por Jim Wilmot.
 

O Rei Leão, 25 anos na Broadway

O Rei Leão, dirigido por Roger Allers e Rob Minkoff, foi o grande sucesso do verão cinematográfico de 1994, ficou como um marco na evolução dos desenhos animados e transformou-se numa das referências mais universais dos estúdios Disney. De tal modo que, em 1997, chegou à Broadway... e lá continua! Para assinalar os 25 anos da vida teatral de O Rei Leão, dirigido por Julie Taymor, cantores e músicos do espectáculo estiveram nos estúdios da NPR, em Washington, interpretando temas clássicos do filme (e da peça), e outros criados especificamente para o palco — quase 20 minutos de puro e glorioso entertainment.

quinta-feira, novembro 10, 2022

4 filmes escolhidos por Frederick Wiseman

[ Zipporah Films ]

Regularmente, a Criterion Collection convida personalidades do cinema para, no seu escritório de Nova Iorque, visitarem a "arrecadação" dos respectivos DVD — e escolherem alguns filmes. Há dias, Frederick Wiseman passou por lá, acabando por levar consigo Ladrões de Bicicletas (De Sica, 1948), Horizontes de Glória (Kubrick, 1957), A Faca na Água (Polanski, 1962) e Vencidos pela Lei (Jarmusch, 1986) — em pouco mais de dois minutos, o cineasta de Near Death (1989) e National Gallery (2014) comenta as suas escolhas, explicando, afinal, como mesmo na ficção os elementos documentais podem ser determinantes. E também o contrário?...

De Fassbinder a Ozon [1/2]

Denis Ménochet e Isabelle Adjani filmados por François Ozon:
o cinema através do teatro

Através do magnífico Peter von Kant, o francês François Ozon reencontra a herança da obra do alemão Rainer Werner Fassbinder: este é um filme capaz de celebrar o artifício do cinema a partir de uma herança visceralmente teatral — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 outubro), com o título 'Recriando a herança das lágrimas amargas'.

Apesar do poder do marketing dos filmes de super-heróis e, em muitas salas, do afunilamento da oferta, não se pode dizer que o mercado português viva alheado do trabalho de alguns dos mais importantes cineastas contemporâneos, sobretudo europeus. É o caso do francês François Ozon (nascido em Paris, em 1967) que continua a ser uma presença regular no nosso circuito comercial — agora com o magnífico, insólito e sedutor Peter von Kant, filme que, em fevereiro, integrou a secção competitiva do Festival de Berlim.
O título remete para As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972), realizado pelo alemão Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) a partir da sua peça homónima. Aí encontrávamos como figura central, interpretada por Margit Carstensen, uma criadora de moda a viver as convulsões de uma teia de paixões desencontradas em que todas as personagens são mulheres.
Ozon “transforma” Petra em Peter, não exactamente para fazer a versão “masculina” do drama de Fassbinder, antes para propor um jogo de revisão e reinvenção em que, para todos os efeitos, persistem duas fundamentais linhas de força: Peter experimenta também os movimentos passionais como um jogo (teatral, sem dúvida) que implica, transporta e desafia a verdade do amor; mais do que isso, as peripécias das suas “lágrimas amargas” levam-no a avaliar até que ponto o amor é (ou talvez não seja…) uma forma de possuir o ser amado.
A acção tem lugar em Colónia, em 1972, portanto no ano do filme de Fassbinder. Peter é também um artista, mas do mundo do cinema. Realizador de sucesso, vive no seu apartamento entre angústias existenciais e delírios de grandeza. Duas figuras paradoxais pontuam o seu quotidiano: o silencioso Karl, assistente que Peter trata de modo grosseiro e humilhante, mesmo se é ele que lhe escreve os argumentos dos filmes, e Sidonie, musa que protagonizou diversos momentos da sua obra e, agora, o visita regularmente. Numa dessas visitas, Sidonie apresenta-lhe o jovem Amir — Peter apaixona-se loucamente por Amir, com ele começando a viver uma relação que parece ser a realização de uma utopia tão carnal como romântica…
Se é possível superar o esquematismo da sinopse, talvez seja importante chamar a atenção do leitor para a ambivalência em que tudo isto acontece. Por um lado, Peter von Kant está longe de ser uma homenagem “copista” do filme de 1972; por outro lado, aquilo que em Fassbinder nos surgia como drama enredado em desejos enigmáticos e êxtases suspensos “renasce”, com Ozon, num registo de metódico distanciamento, dir-se-ia uma tragédia sempre evitada pelos sobressaltos de uma sofisticada comédia.

Gal Costa (1945 - 2022)

Nome fulcral da história da música popular brasileira, Gal Costa faleceu no dia 9 de novembro, em São Paulo — contava 77 anos.
Do álbum Domingo (1967), com Caetano Veloso, até Nenhuma Dor (2021), foi atravessando as décadas, sabendo integrar variações e transfigurações, mas sem nunca por em causa o misto de transparência, dramatismo e metódico confessionalismo que a sua voz transportava. Em 2011, foi distinguida com um Grammy Latino pelo conjunto da sua obra.

>>> Meu Nome É Gal (1982).


>>> Desafinado (1999).


>>> Quando Você Olha Pra Ela (lyric video, 2015).


>>> Obituário: O Globo + NPR.
>>> Site oficial de Gal Costa.

terça-feira, novembro 08, 2022

Spoon em "reconstrução"

Eis uma curiosa "tendência" de alguma música contemporânea: criadores que revisitam e, com mais ou menos inspiração, reinventam gravações mais ou menos antigas... Ou mais ou menos próximas... É o caso, agora, dos Spoon, a banda de Austin, Texas, do vocalista Britt Daniel. O seu álbum mais recente, Lucifer on the Sofa, ainda não tem um ano — aliás, surgiu já em 2022, a 11 de fevereiro. O certo é que desde o dia 4 de novembro está disponível Lucifer on the Moon, não exactamente uma remistura, mas um genuína reinvenção, dir-se-ia discretamente sinfónica, dos temas originais. A responsabilidade é do produtor Adrian Sherwood, aliás identificada pelo curioso termo "reconstrução" — exemplo: On the Radio.

A IMAGEM: Mark Borthwick, 2022

MARK BORTHWICK
Harry Styles
Gucci (Ha Ha Ha), 2022

segunda-feira, novembro 07, 2022

Maggie Rogers em Coachella

That's Were I Am impôs-se como canção emblemática de Surrender, o segundo álbum de estúdio de Maggie Rogers. Serviu de encerramento da sua performance no Festival de Coachella (no passado mês de abril) — o respectivo registo é um magnífico tour de force audiovisual.
 

domingo, novembro 06, 2022

Louis Malle
— memórias de “outra” Nova Vaga

Louis Malle

Num ciclo a decorrer na Cinemateca, integrado na Festa do Cinema Francês, encontramos três dezenas de filmes de Louis Malle, cineasta fundamental, por vezes secundarizado, cujos trabalhos de ficção coexistiram com um obstinado gosto documental — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 outubro).

Dizia Jean-Luc Godard que ele e os seus companheiros da Nova Vaga francesa promoveram a “política dos autores” como um sistema de valorização do trabalho dos cineastas — os “autores”, precisamente —, menosprezando aquela que seria a dimensão mais importante. A saber: a “política”. Podemos perverter a lógica da sua afirmação, recordando que, por vezes, houve autores que, no imaginário cinéfilo, foram sendo “politicamente” secundarizados. Será, creio, o caso de Louis Malle (1932-1995), este ano em destaque na Festa do Cinema Francês através de um ciclo de três dezenas de títulos.
A projecção dos filmes de Malle, quase todos em duas sessões, terá lugar na Cinemateca (instituição que, uma vez mais, se associa à Festa). O ciclo começou no dia 2, com Le Feu Follet (1963), terminando no dia 30, com Vanya on 42nd. Street (1994). Estes dois títulos podem mesmo condensar a fascinante diversidade que caracteriza a trajectória de Malle: o primeiro, nunca estreado comercialmente em Portugal, com Maurice Ronet e Jeanne Moreau, ilustra a importância do drama intimista no universo de Malle; o segundo tem como ponto de partida uma singular experiência de encenação com O Tio Vânia, de Tchekov, num teatro de Nova Iorque, envolvendo actores como Wallace Shawn, Julianne Moore e Larry Pine (actualmente na série Succession) — foi o último título do período americano de Malle e também o seu filme final.
Vanya on 42nd. Street
é uma referência tanto mais sugestiva na trajectória do realizador quanto pode simbolizar a importância que as componentes documentais adquiriram em diversos momentos do seu trabalho. Nesta perspectiva, o ciclo permitirá descobrir ou redescobrir a visão de Malle documentarista e não apenas por causa de O Mundo do Silêncio (1956), co-realizado com Jacques-Yves Cousteau, sobre a exploração dos fundos marítimos, consagrado com a Palma de Ouro de Cannes (que, em qualquer caso, o próprio Malle nunca reconheceu como muito significativo na sua obra). Serão também projectados, por exemplo, L’Inde Fantôme (1969), série resultante de uma viagem pela Índia, e Calcutá (1969), longa-metragem gerada durante a mesma viagem e também um dos exemplos mais admiráveis de um olhar que, evitando “explicar” de modo automático, se entrega, mais que tudo, a um exercício de metódica contemplação dos lugares que vai descobrindo.
Estarão, obviamente, presentes vários dos títulos mais célebres da filmografia de Malle, incluindo Os Amantes (1958), com Jeanne Moreau e Jean-Marc Bory, Viva Maria (1965), uma “superprodução” rodada no México com Brigitte Bardot e Jeanne Moreau, ou Atlantic City (1980), referência nuclear do trabalho nos EUA, com Burt Lancaster e Susan Sarandon nos bastidores do mundo dos casinos, um drama romântico que não deixa de integrar inesperados elementos documentais. A não esquecer também Sopro no Coração (1971), com Léa Massari, melodrama familiar que, há meio século, agitou os mercados devido aos seus elementos incestuosos, e o belíssimo Adeus, Rapazes (1987), tragédia vivida num colégio interno francês em plena ocupação nazi, uma memória visceral e auto-biográfica.