quarta-feira, agosto 31, 2022

Mikhail Gorbachev (1931 - 2022)

[ Wikipedia ]

Derradeiro líder da URSS (até à dissolução do país, em finais de 1991), Mikhail Gorbachev faleceu em Moscovo no dia 30 de agosto — contava 91 anos. Em novembro de 1993, foi entrevistado por Larry King, na CNN — eis um extracto da conversa.


>>> Obituário no jornal Le Monde.

domingo, agosto 28, 2022

Blow-up ou o que vemos
quando vemos uma imagem?

Blow-up (1966)
— a organização do mundo passa sempre pelas suas imagens

O cinema de Michelangelo Antonioni envolve uma apurada reflexão sobre a vida das imagens: o seu legado é precioso — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 agosto).

A obra-prima que Michelangelo Antonioni filmou em Inglaterra, em 1966 — Blow-up / História de um Fotógrafo, com David Hemmings e Vanessa Redgrave —, persiste como uma verdadeira epopeia, íntima e perturbante, sobre a vida das imagens. Mais concretamente: sobre a relação que cada um estabelece, ou pode estabelecer, com uma determinada imagem.
No centro do filme está, justamente, a relação de um fotógrafo, de nome Thomas (Hemmings), com uma série de imagens que obteve num parque de Londres. Descobrindo, à distância, um homem e uma mulher, fotografa-os repetidas vezes, acabando por atrair a atenção da mulher (Redgrave) que tenta convencê-lo a dar-lhe o rolo da sua máquina… Resumindo muito e esquematizando ainda mais: mais tarde, ao revelar o rolo no seu estúdio, Thomas vê, atrás de um arbusto, algo que lhe parece um corpo inanimado. Através de sucessivas ampliações (blow-up), tenta descobrir o que, realmente, ficou inscrito na fotografia…
Escusado será dizer que esta é uma história pré-digital, porventura incompreensível para os espectadores que não conheceram directamente o universo das imagens em película e, em particular, não sabem o que era (e continua a ser) o tempo específico dessas imagens — desde o momento da sua obtenção até à impressão em papel, passando pelas tarefas de revelação.
Lembrar tal processo não é, de modo algum, um gesto banalmente museológico, ainda menos uma queixa nostálgica. É, isso sim, reconhecer que a existência de tais imagens não pode ser dissociada de uma percepção muito particular do tempo — e, por isso mesmo, de uma outra vivência das durações humanas.
Agora, vivemos um tempo em que uma qualquer imagem pode ser obtida num qualquer lugar do planeta para, segundos depois, estar a ser vista num qualquer outro lugar. Na melhor das hipóteses, trata-se de uma maravilha informativa; na pior, de uma vertigem imaterial que nos faz esquecer que uma imagem existe sempre a partir de um contexto.
Que acontece quando a noção de contexto se dilui? O efeito imediato, infinitamente perverso, tem qualquer coisa de formatação das imagens e do seu pensamento: de modo implícito (por vezes explícito), sugere-se que cada imagem tem apenas “um” significado e, mais do que isso, o contexto seria irrelevante porque essa imagem significa sempre a “mesma” coisa. Na prática, não haveria diferença — informativa ou conceptual, descritiva ou simbólica — entre um auto-retrato de Rembrandt reproduzido num livro de pintura e o mesmo auto-retrato utilizado num concurso televisivo em que se trata de encontrar uma resposta cuja alternativa poderá ser, por exemplo, o “menino da lágrima”…
É essa “neutralização” obscena das imagens que está em jogo no processo que Vanessa Bryant interpôs contra as autoridades de Los Angeles. Em causa estão as fotografias obtidas por agentes dessas autoridades na sequência do acidente de um helicóptero (ocorrido em Calabasas, Califórnia, no dia 26 de janeiro de 2020) em que faleceram o seu marido Kob Bryant, figura lendária do basquetebol dos EUA, a sua filha Gianna e mais sete pessoas. Segundo Vanessa Bryant, funcionários do Departamento do Sheriff de Los Angeles teriam partilhado fotografias dos cadáveres em vários contextos (incluindo numa conversa com o empregado de um bar). Para lá da destruição das imagens, a queixa envolve exigências de reparação por negligência, desrespeito de direitos civis e violação de privacidade.
Michelangelo
Antonioni
Seja qual for o desenlace do julgamento (que deverá estar concluído nas próximas semanas), esta é uma situação cujo valor sintomático não pode ser menosprezado. A saber: nenhuma imagem é um “objecto” intemporal, exterior à história dos indivíduos e das colectividades. Ver ou dar a ver uma imagem — analógica, digital ou o que quer seja que o futuro inventar — é sempre um acto social que, no limite, contém uma dimensão política.
[Notícia de 26 de agosto: CNN]
Porquê política? Porque as imagens são elementos interiores à própria organização do nosso mundo, seus valores e comportamentos. Vale a pena, por isso, ver ou rever o filme de Antonioni, aliás disponível na plataforma HBO Max. É uma boa notícia, mas, infelizmente, Blow-up surge apenas com esta informação lacónica: “Um fotógrafo de Londres acredita ter capturado um homicídio.” Sem mais… O génio de Antonioni? O lugar central de Blow-up no cinema moderno? A memória do fenómeno social que o filme protagonizou nos anos 60? Nada de nada.
Há, de facto, um misto de futilidade e indiferença no tratamento da nobre história dos filmes e do cinema por alguns agentes do streaming. Para lá de todas as diferenças factuais e de contexto, este é mais um sintoma da banalização quotidiana das imagens e do metódico esvaziamento da arte de ver. E querer ver.

quinta-feira, agosto 25, 2022

Redescobrindo A Dama do Lago

Robert Montgomery e Audrey Totter:
o cinema "noir" e o seu fascinante jogo de espelhos

Recentemente, numa das suas sessões na esplanada, a Cinemateca Portuguesa exibiu o clássico A Dama do Lago — esta nota sobre o filme foi publicada no Diário de Notícias (19 agosto).

The Lady in the Lake / A Dama do Lago (1946), de Robert Montgomery — eis uma verdadeira raridade. Pela sua escassa circulação nas várias frentes do mercado, mas também porque é uma excepção, não apenas no interior do cinema “noir” de Hollywood, mas em boa verdade na produção de qualquer época. Porquê? Porque a adaptação de 1947 do romance que Raymond Chandler publicara quatro anos antes aposta numa ousada e desconcertante arquitectura narrativa: trata-se de seguir a investigação do detective Philip Marlowe a partir de planos subjectivos, quer dizer, imagens que são o ponto de vista do próprio Marlowe. O trailer dizia: “1926 - o ecrã falava! 1947 – a câmara representa!”
Na prática, o espectador segue o olhar de Marlowe (interpretado pelo próprio Robert Montgomery): não o vemos a não ser quando algum espelho devolve a sua imagem. Em sentido literal ou metafórico, este é mesmo um fascinante jogo de espelhos que nos recorda que o classicismo de Hollywood foi também uma paisagem de muitas experimentações.

Sam Mendes, novo filme

Depois das suas duas aventuras com James Bond, Skyfall (2012) e Spectre (2015), três anos depois do épico 1917, o inglês Sam Mendes está de volta com Empire of Light / Império da Luz, por certo um dos protagonistas na corrida aos próximos Oscars (a estreia portuguesa ocorrerá em 2023) — para já, o trailer está recheado de sabores cinéfilos.
 

terça-feira, agosto 23, 2022

O oceano de Lorde

Revisitando mais uma canção de Solar Power, terceiro álbum de estúdio da neozelandesa Lorde, lançado há um ano: se há um modelo de "teledisco-de-verão", aí está Oceanic Feeling a ilustrar as suas potencialidades. Ou como a sedução do oceano parece atrair sempre alguma réstia de utopia...

Oh, was enlightenment found?
No, but I'm trying, taking it one year at a time.

sexta-feira, agosto 19, 2022

A comédia francesa
à procura da sua tradição

Gérard Depardieu e Kev Adams:
como reinventar as memórias clássicas da comédia?

Kev Adams é um dos grandes casos de sucesso na mais recente produção de comédias em França. No novo filme Casa de Repouso, ele aposta em ser intérprete, argumentista e produtor: bom esforço, resultado mediano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 agosto).

Gérard Depardieu
Perante a comédia Casa de Repouso, esta semana lançada nas salas portuguesas, é muito provável que, para muitos espectadores (incluindo o autor deste texto), o primeiro motivo de curiosidade seja, ou possa ser, a presença de um nome lendário dos últimos 50 anos da história do cinema francês: Gérard Depardieu.
Ele surge como uma espécie de líder natural de uma simpática galeria de veteranos a interpretar, precisamente, os idosos que vivem na “casa de repouso” a que se refere o título. Ironicamente, Depardieu, com 73 anos, é o mais novo de todos eles, sendo Marthe Villalonga a mais velha, com 90 anos — vimo-la, por exemplo, no papel de mãe de Catherine Deneuve, em A Minha Estação Preferida (1993), de André Téchiné. A eles se juntam Daniel Prévost, figura lendária do teatro e do cinema, Mylène Demongeot, célebre desde os anos 60 graças à trilogia de Fantômas, e Jean-Luc Bideau, nome emblemático da “nova vaga” do cinema suíço.
Tal expectativa corre o risco de passar ao lado daquele que é o verdadeiro motor de Casa de Repouso. Não o realizador, Thomas Gilou: na sua filmografia encontramos os sucessos de La Vérité Si Je Mens! (1997) e respectivas sequelas, mas o seu trabalho está longe de se distinguir por qualquer marca pessoal, ainda menos “autoral”. Na verdade, quem ocupa o centro de tudo isto é Kev Adams, aos 31 anos um caso sério de popularidade em França, primeiro através de espectáculos de “stand-up”, depois em televisão e cinema. Em Casa de Repouso, ele acumula três funções: intérprete, argumentista e produtor.

Anedotas vs. cinema

Um factor decisivo para o sucesso de Adams foi a série televisiva Soda, cuja primeira difusão, em três temporadas, ocorreu entre 2011 e 2015, no canal M6. A sua personagem, de nome Adam, é um jovem não muito brilhante, militantemente preguiçoso, que vive a passagem da adolescência à idade adulta no seio de uma família que está longe de o motivar para grandes proezas.
A curiosidade maior da série provém do seu dispositivo narrativo. Na sua fase final gerou dois telefilmes, mas no essencial trata-se de um conjunto de mais de sete centenas de episódios cuja duração individual não excede os 3 minutos (muitos estão disponíveis no YouTube): são breves anedotas “sociológicas” que tentam fixar, com humor e ironia, os sinais de uma época e, em particular, as diferenças entre gerações. Dir-se-ia que Adams quis “saltar” para uma nova dimensão narrativa, tentando satisfazer as necessidades dramatúrgicas de uma longa-metragem. E não há dúvida que conseguiu, pelo menos, inventar uma personagem com evidentes potencialidades.
Assim, ele interpreta Milann Rousseau, símbolo “perfeito” da incapacidade de integração social: tendo vivido a infância e a adolescência num orfanato, torna-se um adulto sem eira nem beira, regularmente envolvido com a justiça por causa das atribulações (mais ou menos benignas, mas sistemáticas) que provoca nos empregos por onde vai passando… Tem mesmo um amigo advogado que, além de lhe resolver os problemas legais, o acolheu no seu apartamento. Até que Milann se vê obrigado a enfrentar um dos seus maiores “terrores”: lidar com os mais velhos. Isto porque o seu amigo conseguiu evitar-lhe uma pena de prisão, substituída por um período de trabalho social… numa casa de repouso para idosos!
Enfim, o desenvolvimento de tudo isto tem tanto de sugestivo como de previsível. Depois do pânico inicial, Milann vai descobrindo um universo bastante mais rico e complexo do que imaginava — desde logo, através das relações com a personagem de Depardieu, velha glória do pugilismo —, transformando Casa de Repouso num pequeno conto moral cuja simpatia não esconde o esquematismo da concepção.

Funès & etc.

Muito provavelmente, Kev Adams anda à procura das ligações possíveis com uma tradição de comédia que, sobretudo ao longo das décadas de 1960/70, produziu grandes fenómenos de popularidade (e não apenas no interior do mercado francês). A sua energia apoiava-se na desconcertante versatilidade de actores como Bourvil (1917-1970) ou Louis de Funès (1914-1983) — lembremos apenas o exemplo festivo de A Grande Paródia (1966), de Gérard Oury, que ambos protagonizaram.
Falta a Adams a capacidade de elaborar uma acção que consiga ser algo mais do que uma acumulação de pequenas peripécias, dir-se-ia uma antologia de “sketches” (alguns de insólito humor, outros de escassa imaginação) para um programa de televisão com uma lógica de seriado. É verdade que os “hóspedes” desta Casa de Repouso escapam ao paternalismo com que, não poucas vezes, o nosso mundo mediático trata os mais velhos. O certo é que isso está longe de ser suficiente para conseguir algo de realmente criativo, de alguma maneira cúmplice dos valores daquela tradição. Fica, a propósito, uma sugestão complementar e, a meu ver, esclarecedora: ver ou ver O Avarento (1980), com Louis de Funès, disponível na Netflix.

Regina Spektor na NPR

Poucas semanas depois do lançamento de Home, Before and After, Regina Spektor esteve na NPR para um maravilho 'Tiny Desk Concert'. Combinando novas canções com alguns temas clássicos da sua obra, são vinte e poucos minutos de serena e contagiante alegria.

quinta-feira, agosto 18, 2022

A IMAGEM: Mathieu Pernot, 2020

MATHIEU PERNOT
"Mólyvos", Lesbos [campo de refugiados], 2020
Libération

Yeah Yeah Yeahs, Burning

Está quase a chegar Cool it Down (30 setembro), quinto álbum de estúdio dos Yeah Yeah Yeahs. Brian Chase, Karen O e Nick Zinner [na foto, da esquerda para a direita] oferecem-nos mais uma canção, Burning, energia e poesia reconvertidas em teledisco por Cody Critcheloe.
 

terça-feira, agosto 16, 2022

Mumford & Spielberg

Elemento central da banda britânica Mumford & Sons, Marcus Mumford estreia-se em nome próprio com o álbum Self-Titled (lançamento a 16 de setembro). Cartão de visita do novo registo é a canção Cannibal, encenada num primoroso teledisco a preto e branco, por certo um dos mais belos planos-sequência que vimos em tempos recentes. É também uma estreia no domínio dos video-clips para o respectivo realizador — chama-se Steven Spielberg e filmou Cannibal com o seu telemóvel.

Donald Trump, 2024 & etc.

Será possível entender a negação da vitória de Joe Biden por muitos elementos do Partido Republicado dos EUA como o derradeiro cenário político induzido pela retórica de Donald Trump? Bem pelo contrário, diz este video do jornal The Washington Post, produzido por J.M. Rieger, com realização de Micah Gelman — muito mais do que uma diatribe discursiva, tal retórica está a organizar-se como elemento activo para as eleições de 2014.
 

segunda-feira, agosto 15, 2022

Normal People
— histórias de uma outra juventude

Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal em Normal People:
"De onde venho, para onde vou?"

Em cinema e televisão, os clichés “juvenis” são muitos e muito poderosos; a série Normal People resiste a todos eles — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 agosto).

Sally Rooney
Eis um cliché social que pontua os nossos dias: a “juventude”. Porquê cliché? Desde logo porque somos bombardeados com variações quotidianas dos seus valores (ou da falta deles), a começar pela omnipresença das respectivas encarnações publicitárias. Ser jovem seria viver numa compulsão festiva sem hiatos — como se o prazer da festa pudesse existir sem os tempos que não são festivos —, de preferência exibindo as mais recentes proezas de telemóveis e afins, gritando muito para qualquer câmara que lhes apareça à frente.
A esse cliché cola-se, muitas vezes, um outro, inerente a algumas linguagens audiovisuais: a “naturalidade”. Não falo de naturalismo, entenda-se, noção que nos poderia levar a algumas interessantes reflexões, alheias ao delírio digital dos nossos dias, envolvendo referências tão diversas como a pintura de José Malhoa (1855-1933) ou uma certa fase do cinema de Jean Renoir (1894-1979). “Ser natural” tornou-se o estereótipo de eleição de muitas narrativas mais ou menos telenovelescas. Quando se diz que os actores de novela “parece que nem estão a representar”, de facto, salvo raras excepções, a expressão carece de uma contundência ainda maior: não estão mesmo a representar, limitam-se a satisfazer outros clichés, neste caso figurativos e dramáticos, sociais, profissionais ou sexuais.
Eis um esclarecedor e fascinante contraste: a mini-série Normal People, produção irlandesa que começou por ser emitida, em 2020, pela BBC Three, pelo canal irlandês RTÉ One e a plataforma americana Hulu (entre nós, está disponível na HBO Max). Trata-se de uma pequena maravilha (12 episódios de meia hora) que segue as muitas convulsões das relações entre Marianne Sheridan e Connell Waldron, primeiro enquanto estudantes numa escola secundária da pequena cidade de Sligo, depois frequentando o Trinitity College, em Dublin.
O título coincide com o do romance da escritora irlandesa Sally Rooney em que a série se baseia (entre nós editado como Pessoas Normais, com chancela da Relógio D’Água, 2019). E vale a pena sublinhar o misto de precisão e distanciamento que tal título envolve. Por um lado, a história de amor de Marianne e Connell parece reflectir a “normalidade”, até mesmo no plano banalmente simbólico, de uma paixão iniciada na escola, sob o signo das atribulações da adolescência; por outro lado, as situações vividas vão levando o espectador a questionar o modo como conhece, ou julga conhecer, as personagens.
Aliás, tal questionamento é tanto mais forte e, por certo, perturbante quanto começa, não no território do espectador, mas no interior da própria dramaturgia de Normal People. Se Marianne e Connell são tão intensos, por vezes tão invulgarmente comoventes, isso decorre do modo como o seu viver — em comum ou com os outros — os leva a formular, ainda que de forma silenciosa, resistente às palavras, a pergunta primordial: “Quem sou eu?” Ou ainda: “De onde venho, para onde vou?”
Esta dinâmica está longe de ser tratada como meramente “introspectiva”. Ainda que de forma ultra-discreta, estranha a qualquer determinismo fácil, a questão das diferenças sociais está sempre presente: Marianne pertence a uma família de grande poder financeiro, enquanto a própria mãe de Connell trabalha como empregada na casa da mãe de Marianne. Além do mais, na relação Marianne/Connell, a sexualidade emerge com uma intensidade genuinamente realista, rara nas ficções contemporâneas.
Fala-se pouco do sexo novelesco, quase sempre encenado como proeza mais ou menos acrobática que desemboca num êxtase sem história. E fala-se ainda menos do sexo como performance maquinal cuja valoração contamina todo o discurso existencial inerente ao Big Brother televisivo. Ora, as cenas propriamente sexuais de Normal People, marcadas por uma sinceridade e um pudor admiráveis, estão longe, muito longe, de ser exclusivamente sexuais, participando de toda a avalanche de emoções que define a sua relação — cada instante carnal arrasta uma delicada vibração emocional.
O mérito pertence, por certo, ao rigor da realização repartida por Lenny Abrahamson e Hattie Macdonald (seis episódios cada), o primeiro mais conhecido, sobretudo por causa do filme Quarto (2015), que valeu um Óscar de melhor actriz a Brie Larson. E pertence também à subtileza radical das composições dos brilhantes intérpretes de Marianne e Connell: Daisy Edgar-Jones e Paul Mescal (agora com 24 e 26 anos, respectivamente). Cada momento íntimo que representam é vivido através de um ziguezague de revelação e mistério que rejeita qualquer visão enredada num cliché “juvenil”. Por vezes, a evidência material dessa intimidade atrai a verdade mais extrema que uma relação pode envolver, verdade à beira do incompreensível. Há em tudo isso uma forma rara de beleza.

Q107, o rock e os seus corpos

A rádio Q107, de Toronto, decidiu reforçar a sua imagem de marca com uma campanha que evocasse e, num certo sentido, invocasse a energia da música rock. Cartazes (em cima) e um video (aqui em baixo) revelam uma ânsia simbólica que não se coíbe de percorrer as entranhas do corpo humano. Sinal dos tempos: a música pode ser exaltante, mas já não há nada de sagrado associado aos corpos humanos.

domingo, agosto 14, 2022

Bill Pitman (1920 - 2022)

Mestre da guitarra, o seu contributo foi essencial para muitas gravações lendárias, da pop ao jazz: o americano Bill Pitman faleceu na sua casa de La Quinta, Califórnia, na sequência de uma queda — contava 102 anos.
De seu nome William Keith Pitman, integrou esse grupo lendário e, num certo sentido, anónimo que foi The Wrecking Crew. Integrando nomes tão talentosos como Don Randi, Carol Kaye ou Tommy Tedesco, os seus serviços foram requeridos pelos mais diversos artistas, incluindo Sonny & Cher, Frank Sinatra, The Beach Boys, Phil Spector, Dean Martin, etc.
Muitas vezes trabalhando como ghost players (literalmente: músicos-fantasmas), deixaram as suas marcas em álbuns e canções que se tornaram referências clássicas da história da música popular. Entre as muitas canções em cujas gravações participaram incluem-se Be My Baby (The Ronettes, 1963), Strangers in the Night (Frank Sinatra, 1966) e Mrs. Robinson (Simon & Garfunkel, 1966) — aqui em baixo, evocam-se algumas dessas canções...
Pitman, por exemplo, tocou cavaquinho em Raindrops Keep Fallin' on My Head, tema de Burt Bacharach/Hal David interpretado por B. J. Thomas na banda sonora do filme Butch Cassidy and the Sundance Kid / Dois Homens e um Destino (George Roy Hill, 1969), vencedor do Oscar de melhor canção. A odisseia musical da banda está evocada no documentário The Wrecking Crew (2008), de Denny Tedesco.

>>> Good Vibrations (The Beach Boys, 1966).
 

>>> Raindrops Keep Fallin' on My Head (B. J. Thomas, 1969).


>>> Half-Breed (Cher, 1973).
 

>>> Obituário no NME.

sábado, agosto 13, 2022

Bella Poarch entre fantasmas

Americana, nascida nas Filipinas, 25 anos de idade, Bella Poarch é uma estrela do TikTok que acaba de lançar o seu primeiro EP: Dolls. O título está longe de ser inconsequente. Isto porque, com a colaboração do realizador Andrew Donoho, ela tem desenvolvido um visual de muitas e inusitadas transfigurações — veja-se o emblemático Build a B*tch. Dessa parceria nasceu agora Living Hell, conto fantasmático elaborado como um festivo cruzamento de danças, tintas e uma casa de banho (a evocação de uma cena de Shining parece ser tudo menos acidental). É, em tempos recentes, um dos telediscos de maior e mais sofisticada alegria visual.

Anne Heche (1969 - 2022)

Anne Heche nos prémios DGA
(12 março 2022)

Actriz de cinema, mas também dos meios televisivo e teatral, a americana Anne Heche faleceu no dia 11 de agosto, em Los Angeles, na sequência de um acidente de automóvel ocorrido seis dias antes — contava 53 anos.
Embora nunca tenha tido papéis principais que a pudessem projectar para uma outra dimensão de popularidade, Heche deixa o seu nome ligado a alguns títulos tão importantes como Donnie Brasco (1997), um "thriller" de Mike Newell com Johnny Depp e Al Pacino, Manobras na Casa Branca (1997), farsa política escrita por David Mamet e realizada por Barry Levinson, com Dustin Hoffman e Robert de Niro, ou ainda o enigmático e fascinante Birth - O Mistério (2004), de Jonathan Glazer, com Nicole Kidman. Seja como for, o seu papel mais intenso, porque mais tocado pela carga mitológica que transporta, terá sido o de Marion Crane na nova versão de Psico (1998), assinada por Gus Van Sant — Heche retomava, assim, a personagem interpretada por Janet Leigh no original de 1960, um dos clássicos absolutos de Alfred Hitchcock.
Se é verdade que a vida privada de uma personalidade de Hollywood se cruza, ou pode cruzar, de forma perversa com os desígnios da respectiva carreira, Heche terá sofrido os efeitos de tal fenómeno por causa da sua relação com Ellen DeGeneres, com quem viveu no período 1997-2000. Várias vezes se referiu ao facto de tal relação homossexual ter sido determinante para o facto de ter deixado de receber convites dos grandes estúdios para trabalhar — chamou à sua autobiografia, publicada em 2001, Call Me Crazy.

>>> Trailer de Wag the Dog/Manobras na Casa Branca (1997).


>>> Anne Heche e Vince Vaughn: Psico (1998).


>>> Obituário na NPR.

sexta-feira, agosto 12, 2022

Paul Coker Jr. (1929 - 2022)

[ Mad, 1961 ]

>>> Obituário no site Deadline.

Jean-Jacques Sempé (1932 - 2022)

[ Le Petit Nicolas, 1959 ]

>>> Obituário no jornal Le Monde.

Karaoke com Maggie Rogers

Mais um teledisco de Surrender, o excelente novo álbum da americana Maggie Rogers: a canção Want Want é um belo exemplo de um eletropop capaz de cruzar contundência e elegância, devidamente servido por uma voz de elaborada precisão — tudo embrenhado em nostalgia karaoke, dirigido com mão de mestre por Warren Fu.

quinta-feira, agosto 11, 2022

Novo portfolio de Erwin Olaf

O fotógrafo holandês Erwin Olaf tem um novo portfolio. O título — Dance in Close-up — remete para as coregorafias de Hans van Manen (também holandês, também fotógrafo, celebrou 90 anos no passado dia 11 de julho).
A precisão geométrica dos corpos envolve qualquer coisa de utópico, de uma só vez radical na energia e sereníssimo na simbologia. Dir-se-ia uma reportagem de um paraíso perdido. Aqui ficam algumas imagens, não dispensando uma visita ao site oficial de Erwin Olaf.

David Cronenberg já não mora aqui?

Viggo Mortensen em Crimes of the Future:
será que o novo Cronenberg não vai ser visto nas salas portuguesas?

Será que ser cinéfilo ainda é uma condição acarinhada pelas forças dominantes do mercado? Não parece, até porque se tornou urgente repensar os modelos de distribuição/exibição que foram gerados pelos multiplex — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 agosto), em paralelo com um artigo de Rui Pedro Tendinha.

Tudo indica que o mais recente filme do canadiano David Cronenberg — Crimes of the Future, com Viggo Mortensen, Léa Seydoux e Kristin Stewart —, revelado no último Festival de Cannes, poderá não chegar às salas portuguesas. O que suscita uma pergunta didáctica: que está a acontecer para que uma obra de um cineasta de culto, marcante na história dos filmes das últimas quatro décadas, possa não encontrar espaço no nosso mercado?
Talvez seja útil lembrar que esta ausência não se explica (se é que é possível explicá-la…) apenas pelo filme em causa e as suas circunstâncias. Em boa verdade, estamos apenas perante um pormenor inevitavelmente sintomático de um processo de várias décadas. A saber: a decomposição dos laços das forças dominantes do mercado com os respectivos consumidores.
Claro que o desenvolvimento exponencial das plataformas de “streaming” alterou, a nível global, todas as dinâmicas do cinema — da produção à difusão. Resta saber se tal desenvolvimento basta para explicar a (falta de) lógica de uma ideologia promocional cujo esgotamento começou muito antes da consolidação do “streaming”.
As mesmas forças dominantes do mercado foram desviando as suas atenções (leia-se: os seus investimentos) para a promoção unilateral de alguns “blockbusters” americanos — “bons” ou “maus”, não é (nunca foi) essa a questão. Mais do que isso: instalaram um fosso brutal entre o ruído promocional em torno desses produtos e o quase silêncio que (des)acompanha a maioria dos outros.

A frieza dos números

O reflexo cru de tudo isso está nos números oficiais das bilheteiras, semanalmente divulgados pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual [ICA]. Quase sempre encontramos dois ou três títulos que vão acumulando 100 mil ou mais entradas, enquanto a maioria dos restantes raramente chega aos 10 mil (ou mesmo aos 5 mil). O próprio mercado foi sendo “partido” por dentro, deixando de — ou desistindo de trabalhar para — ter um número significativo de filmes “médios” (na frequência, entenda-se, com 40 ou 50 mil espectadores), essenciais para um razoável equilíbrio financeiro.
Nada disto é linear: os número absolutos podem, e devem, ser relativizados. Um exemplo parcelar mas, uma vez mais, sintomático, pode ajudar. Assim, no fim de semana de 21/24 julho, Thor: Amor e Trovão (que já ultrapassou os 200 mil bilhetes vendidos) teve, em média, 23 espectadores em cada uma das suas sessões. Quer isto dizer que, no mesmo período, Thor: Amor e Trovão mobilizou um número de espectadores que é 191 vezes maior que o correspondente a Rostos, um dos clássicos de John Cassavetes actualmente em reposição. E, no entanto, Rostos consegue uma frequência por sessão de 35 espectadores…
Há assim, apesar de tudo, alguma distribuição/exibição independente que, mesmo com drásticos limites, não desiste de pensar a relação com os públicos (plural, entenda-se). Mas quase ninguém quer lidar com o absurdo dos números referidos. É sempre mais fácil proclamar que assim vai o “gosto” do público (e usa-se sempre o singular). Quase ninguém está disposto a reconhecer que nada disto pode ser pensado se não começarmos por atentar no relativismo dos números. Que relativismo é esse? Pois bem, entre 21 e 24 de julho Thor: Amor e Trovão foi projectado 1201 vezes nas salas de Portugal. Quantas sessões se realizaram com Rostos? Quatro… Contas redondas: 300 vezes menos.
Ninguém sugere que Rostos teria condições para conseguir o mesmo número de espectadores de Thor: Amor e Trovão. Não se trata de promover uma corrida (os “meus” filmes contra os “teus”), mas de reconhecer que o mercado vive — e sobrevive mal — num jogo de desequilíbrios que só pode gerar aquilo que temos observado nas últimas décadas: um afunilamento da oferta e uma desagregação de qualquer base sólida de espectadores.

Cinefilia, o que é?

Algumas plataformas de “streaming” agravam tudo isto através de uma oferta que tem contribuído para o esvaziamento de qualquer cultura cinéfila. A lógica de supermercado (bastante mal arrumado…) tem dominado tais plataformas, promovendo junto do público uma noção preguiçosa do cinema: os filmes pertenceriam a uma entidade sem história, sem contrastes, alheia a qualquer gosto saudável de descoberta.
Como se isto não bastasse, a crise de frequência das salas (obviamente agravada pela pandemia) tem sido “compensada” através de um paradoxal salto para o abismo: instalou-se uma multiplicação delirante de estreias — passou a ser normal haver oito novos filmes numa semana, por vezes dez ou mais — que não está sustentada por nenhuma estratégia clara de difusão e promoção. Nem sequer pela mais básica informação.
A quantidade de títulos irrelevantes que chegam às salas é tanto mais desconcertante quanto reflecte uma dramática ausência de agilidade comercial e promocional, também ela “compensada” por um marketing enquistado nos ditames de super-heróis e afins. Os exemplos são, infelizmente, regulares. Veja-se o caso de O Pugilista, com Russell Crowe, estreado nas salas a semana passada, ao mesmo tempo que a Prime Video o lançava em streaming um pouco por todo o mundo: em Portugal mobilizou 437 espectadores em 93 sessões (média inferior a cinco espectadores por sessão).
Podemos aplicar a velha demagogia: “a culpa é dos críticos…” É verdade que quem quiser confortar-se com tal acusação, tem toda a liberdade para o fazer. Resta saber se isso ajuda alguém a contribuir para a resolução dos problemas acumulados. Cito apenas três: o esgotamento dos conceitos de distribuição e exibição que, nas últimas três décadas, tiveram os multiplex como emblema; o exclusivo das grandes promoções para os chamados “blockbusters”, menosprezando as potencialidades da maior parte dos restantes títulos; enfim, o tratamento dos filmes como produtos sem critérios de valor, abolindo qualquer componente cinéfila na relação com os espectadores. Sim, porque a cinefilia já foi um salutar factor comercial.

quarta-feira, agosto 10, 2022

Terror [citação]

>>> Os terroristas têm tanto medo da vida como nós temos da morte. Agitam um máximo de morte à nossa frente, desse modo assustando-nos, porque todos os dias nós agitamos um máximo de vida à sua frente, assustando-os.

YANN MOIX
Terreur
Grasset / Le Livre de Poche (2018)

Memória de Olivia Newton-John

Foi com o filme Grease (1978) que Olivia Newton-John, contracenando com John Travolta, entrou na galeria de estrelas internacionais do entertainment. Em qualquer caso, seria o seu 11º álbum de estúdio, Physical (1981), a conferir-lhe dimensão mitológica e, ao mesmo tempo, símbolo universal de uma certa cultura "libertária" da década de 80. O teledisco da canção-título [video], dirigido por Brian Grant, porventura demasiado subtil para os códigos actuais do "politicamente correcto", ficou como objecto exemplar da sua consagração.
Falecida no dia 8 de agosto, vítima de cancro, o seu legado reflecte a rara conjugação da energia musical com o apelo popular do cinema.


>>> Obituário no Variety.
>>> Site oficial de Olivia Newton-John.

terça-feira, agosto 09, 2022

Brad Pitt ou a paixão do burlesco

Brad Pitt no comboio Tóquio/Kyoto:
comédia em alta velocidade

Subitamente, um grande espectáculo de verão: Brad Pitt comanda Bullet Train: Comboio Bala, aventura japonesa que é também uma das melhores comédias que Hollywood produziu em tempos recentes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 agosto).

Perante a estreia de Bullet Train: Comboio Bala, protagonizado por Brad Pitt, reencontramos uma dúvida: para onde vai o cinema de verão? Ano após ano, a pergunta regressa, concisa e incómoda. E por duas razões fundamentais: primeiro, porque esse cinema está parasitado pelos valores impostos pelo marketing de super-heróis e afins; depois, porque as grandes forças de produção de Hollywood tendem a esquecer a diversidade da sua nobre tradição de “entertainment”, reduzindo o espectáculo a uma rotina de formas e fórmulas cada vez mais entediante.
Se é verdade que não há regra sem excepção… aí está a excepção! Adaptando um livro de Kotaro Isaka, com grande impacto nos mercados japonês e americano, Bullet Train narra as aventuras e desventuras de um assassino contratado que responde (ou é obrigado a responder) pelo nome de código “Ladybug” (à letra: Joaninha). A sua coordenadora envia-o numa viagem no “comboio bala” que liga Tóquio a Kyoto, com a missão de recuperar uma mala que contém uma grande quantidade de dinheiro. No mesmo comboio viajam mais alguns assassinos interessados na mesma mala, directa ou indirectamente ligados à personagem de “Morte Branca”, um sinistro cérebro criminoso…
A sinopse é limitada e limitativa, quanto mais não seja porque ignora o saber (e o sabor) narrativo que perpassa por todos os elementos de Bullet Train. Acontece que estamos perante um objecto que se distingue pela inteligência cénica e cenográfica com que sabe tirar partido do espaço fechado das carruagens — creio que não exagero se disser que uns bons 90% da acção têm lugar no interior do comboio em movimento. Tal “claustrofobia” é tanto mais surpreendente e envolvente quanto surge potenciada como elemento de comédia pelo realizador David Leitch (até agora, o seu título mais interessante era Atomic Blonde, um “thriller” de 2017 protagonizado por Charlize Theron).
Estamos, de facto, perante uma comédia, das mais vertiginosas e surreais que Hollywood produziu nos últimos tempos. O filme sabe convocar toda uma série de clichés ligados à tradição do “thriller” policial para, metodicamente, os decompor em explosões de alegria formal e contagiante gosto do absurdo — tudo pontuado por diálogos de maravilhosa contundência teatral, dir-se-ia desafiando a rapidez do próprio comboio. Como se esta fosse uma “missão impossível” refeita em tom de farsa.
A excelência técnica de tudo isto é incrível — a provar também que há diferenças importantes entre a invenção que aqui encontramos e as rotinas dos chamados efeitos especiais. Sem esquecer que nada disso anula (bem pelo contrário!) a contribuição fundamental dos actores, incluindo Aaron Taylor-Johnson e Brian Tyree Henry, dupla de assassinos que se dão a conhecer pelos nomes de “Tangerina” e “Limão”. Enfim, destaquemos o prodigioso trabalho de Brad Pitt a afirmar-se como legítimo herdeiro de uma tradição que passa por Buster Keaton e Jerry Lewis, oferecendo-nos um “Ladybug” de genuína poesia burlesca.

segunda-feira, agosto 08, 2022

Elogio de Brad Pitt

Bullet Train / Comboio Bala: sofisticação & humor

A popularidade de Brad Pitt como actor está longe de esgotar o seu trabalho no interior de Hollywood: importa não esquecer os seus fundamentais contributos como produtor.
A esse propósito, observemos os mapas das receitas do cinema dos EUA neste último fim de semana, verificamos que o novo filme com Brad Pitt — Bullet Train, entre nós lançado como Comboio Bala — surge em destaque nos tops. Nas salas americanas, esta magnífica paródia “policial” lidera com cerca de 30 milhões de dólares de receitas, acumulando um pouco mais no mercado internacional.
É uma performance consistente, ainda que apenas mediana no contexto da indústria de Hollywood. Seja como for, a maior parte das notícias omite a importância de Brad Pitt na história das últimas duas décadas da produção americana. Entenda-se: os filmes não são “bons” nem “maus” em função dos seus rendimentos… Nada disso! Acontece que há personalidades que poderiam (ou deveriam) ser conhecidas e reconhecidas por algo mais do que a sua fotogenia.
Na verdade, Brad Pitt tem tido uma exemplar carreira de produtor através da empresa Plan B, por ele fundada em 2001, tendo como sócios Jennifer Aniston (então sua mulher) e o amigo Brad Grey (falecido em 2017, contava 59 anos).
Com chancela da Plan B, como produtora principal ou associada, fizeram-se filmes tão diversos — e tão importantes — como The Departed - Entre Inimigos (2006), de Martin Scorsese, O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford (2007), de Andrew Dominik, A Árvore da Vida (2011), de Terrence Malick (cujo trailer se recorda aqui em baixo), 12 Anos Escravo (2013), de Steve McQueen, ou Moonlight (2016), de Barry Jenkins.
Quer isto dizer que a Plan B não tem servido apenas para organizar alguns dos projectos protagonizados pelo próprio Brad Pitt. Há na sua estratégia um desejo de diversidade e experimentação que, além do mais, lhe tem valido significativas distinções, incluindo vários Oscars. Mesmo face ao novo Bullet Train, creio que será útil sublinhar que os caminhos do “entertainment” estão longe de se esgotar nas aventuras de super-heróis com carimbo da Marvel ou da DC Comics: com um Brad Pitt de muita sabedoria e ironia, Bullet Train é mesmo uma das mais inventivas e sofisticadas comédias que vimos em tempos recentes.

domingo, agosto 07, 2022

Russell Crowe em tom secundário

Como relançar a sua carreira? Russell Crowe dá o exemplo...

Retratando um campeão do começo do século XIX, O Pugilista é um drama com tanto de esquemático como de determinista: um produto banal do “streaming” que, insolitamente, teve estreia nas salas portuguesas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 julho).

Não há muito a dizer sobre O Pugilista, o novo filme de Russell Crowe, realizado por Daniel Graham. A própria classificação de “filme de Russell Crowe” carece de pertinência, já que o actor nascido na Nova Zelândia assume apenas um papel secundário na trajectória da personagem central, Jem Belcher — referência lendária na história do boxe, campeão de Inglaterra nos primeiros anos do século XIX —, interpretado pelo galês Matt Hookings.
O nome de Hookings surge, aliás, mais duas vezes no genérico: produtor e argumentista. Dizem as notícias que o seu empenho se enraiza no facto de ser filho de David Pearce, campeão que entrou na história do boxe como o “Rocky galês”.
Estamos perante uma narrativa convencional, dividida em três partes esquemáticas e deterministas: conhecemos Belcher na infância, inspirado pelo espírito rebelde e lutador do avô (Crowe); acompanhamos a sua ascensão, num contexto em que o boxe começava a ser reconhecido pelas classes sociais mais poderosas; enfim, temos o previsível e interminável combate final, pontuado por muita hemoglobina e uma agressiva banda sonora, numa desastrada imitação de O Touro Enraivecido (1980), de Martin Scorsese.
Resta o insólito, para não dizer absurdo, da própria estreia de O Pugilista nas salas portuguesas, prolongando uma estranha decomposição de critérios no tratamento de alguns títulos em língua inglesa. Convém lembrar que este é um filme com chancela dos estúdios Amazon. As suas produções destinam-se, em última instância, à respectiva plataforma de “streaming” (Prime Video), raras vezes tendo “direito” a ser vistas nas salas, dispensando até o efeito promocional dos Oscars.
Lembremos o exemplo sintomático desse filme prodigioso que é Being the Ricardos, de Aaron Sorkin: nem mesmo as suas três nomeações em categorias de interpretação — Nicole Kidman (actriz), Javier Bardem (actor) e J. K. Simmons (actor secundário) — fizeram com que, no mercado português, o pudéssemos ver em sala.
Que faz, então, com que um produto drasticamente secundário, artisticamente irrelevante e comercialmente frágil, surja agora nas salas da NOS? Será uma tentativa de prolongar o sucesso que já conseguiu noutros países?… Não exactamente. Se consultarmos uma fonte fiável sobre os dinheiros do cinema (o site Box Office Mojo), verificamos que O Pugilista apenas estreou em dois países (Croácia e Rússia), tendo acumulado uma receita patética: 106.816 dólares (praticamente o mesmo em euros). Entretanto, vai chegando à Prime Video de outros países (por exemplo, no Reino Unido, no passado dia 22).
Enfim, os filmes não são “melhores” nem “piores” por causa das escolhas (legítimas, não é isso que está em causa) de quem os coloca no mercado. Mas face a estas contradições, podemos voltar a perguntar que se faz — ou anda a fazer — para revitalizar o tão fragilizado circuito das salas. E relembrar que, pelo menos para a Amazon, o nome de Nicole Kidman não basta para valorizar comercialmente um filme.