sábado, julho 30, 2022

Histórias contadas por Stanley Kubrick

Kirk Douglas e Stanley Kubrick
— rodagem de Horizontes de Glória (1957)

Para o cineasta de Horizontes de Glória e De Olhos bem Fechados, a arte de filmar é indissociável do labor da escrita — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 julho).

Todos conhecemos o lugar-comum que define o cinema contemporâneo a partir de uma fronteira supostamente nítida e, mais do que isso, incontestável: haveria uma zona dos chamados filmes “de efeitos especiais”… e depois tudo o resto, isto é, os “outros”.
O lugar-comum é tanto mais insidioso e, sobretudo, violentamente poderoso quanto está longe de ser uma afirmação que circule apenas pelos interstícios do quotidiano social — muitas vezes contamina os mais variados discursos jornalísticos, incluindo alguns (a que se dá o nome) de crítica de cinema.
A cegueira histórica de tais discursos é tanto maior quanto, quase sempre, os ditos efeitos especiais só são reconhecidos em filmes de super-heróis e nas suas estafadas rotinas. Tal ponto de vista é incapaz de identificar um filme como Irmãos Inseparáveis (1988) — em que David Cronenberg filmou Jeremy Irons a contracenar com… Jeremy Irons (o actor inglês interpreta dois gémeos, médicos ginecologistas) — como uma etapa decisiva na evolução dos modernos efeitos especiais. Ou ainda de reconhecer que Os Pássaros (1963), de Alfred Hitchcock, abriu novos e inusitados caminhos para a manipulação dos sons em cinema.
O que assim se menospreza é a fundamental relação da arte de realizar filmes com a concepção das respectivas histórias, ou melhor, com o trabalho de escrita de argumentos. Cito, a propósito, este pensamento: “Poderemos especular (…) até que ponto a realização não é mais nem menos que uma continuação da escrita. Ora, eu penso que a realização deve ser isso mesmo. Nessa medida, o argumentista-realizador é o perfeito instrumento dramático; e os poucos exemplos que temos em que essas duas técnicas peculiares foram devidamente controladas por um único homem geraram, acredito eu, um trabalho excelente e consistente.”
Quem escreveu estas palavras? Alguém agastado com a saturação de produções da Marvel e da DC Comics, insistindo em repetir receitas narrativas e figurativas há muito esgotadas? Nada disso. São palavras de um artigo assinado por Stanley Kubrick (1928-1999), publicado na edição de inverno (1960-61) da revista de cinema britânica Sight and Sound — o artigo foi agora republicado num notável número especial (verão 2022) para assinalar os 90 anos da revista.
Importa não esquematizar e, sobretudo, não tratar a filmografia de Kubrick como se fosse uma colecção de ideias fixas, regularmente repetidas. Por um lado, é um facto que, por essa altura, ele já trabalhara em argumentos dos seus filmes, incluindo esse genial libelo contra a guerra que é Paths of Glory/Horizontes de Glória (1957), com Kirk Douglas na dupla condição de protagonista e produtor; além do mais, na altura da publicação do artigo, desenvolvia a adaptação de Lolita, de Vladimir Nabokov (cuja estreia ocorreria em 1962). Por outro lado, nos filmes que se seguiram, os argumentos de Kubrick contaram com alguns notáveis colaboradores, incluindo Arthur C. Clarke, para 2001: Odisseia no Espaço (1968), e Frederick Raphael no título final, De Olhos Bem Fechados (1999).
O que importa destacar é o valor essencial de uma concepção — da narrativa de um filme — que nada tem que ver com a adoração beata do “visual” que, hoje em dia, se instalou em muitos sectores da comunicação social e também, obviamente, do público.
Como outros grandes narradores do cinema da segunda metade do século XX, Kubrick é um herdeiro da literatura. Entenda-se: não a literatura como “caução” artística, mas os livros como exaltação e prática do primado da escrita. E não será preciso fazer o inventário de todas as suas adaptações. Lembremos apenas, por exemplo, que o já citado De Olhos Bem Fechados tem como ponto de partida uma novela de Arthur Schnitzler, publicada em 1926, ou que Laranja Mecânica (1971) recria o romance distópico de Anthony Burgess, cuja primeira edição data de 1962.
Incluindo memórias de Alfred Hitchcock, Jean Renoir e Steven Spielberg, entre muitos outros, o número especial da Sight and Sound envolve uma cristalina pedagogia. A saber: a história dos filmes está muito longe de pode ser elaborada apenas através dos aspectos mais imediatos das suas imagens, mesmo quando intensamente emblemáticos. Autores como Kubrick são também metódicos artesãos da palavra e, nessa medida, dos caminhos de verbalização do mundo.

sexta-feira, julho 29, 2022

John Cassavetes
— elogio do grande plano

John Cassavetes em Love Streams (1984):
autor, actor, revolucionário da história do cinema

O legado de John Cassavetes é indissociável do seu trabalho de actor e com os actores; nessa medida, ele é também um dos grandes autores modernos que soube recriar o próprio conceito de personagem. Os seus filmes em reposição — 'John Cassavetes: o verdadeiro rebelde' — são um dos grandes acontecimentos deste verão cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 julho), com o título 'A condição humana em grande plano'.

Quem nunca sentiu a vibração de um grande plano filmado por John Cassavetes (1929-1989) ainda está, provavelmente, na ante-câmara da história do cinema, iludido pelos ruídos ensurdecedores de super-heróis e outros disparates “juvenis”.
Afinal de contas, trata-se de uma epopeia antiga. Ainda Cassavetes não tinha nascido, já David W. Griffith filmava Lillian Gish em Broken Blossoms/O Lírio Quebrado (1919), oferecendo à posteridade aqueles que são, precisamente, alguns dos primeiros e mais belos grandes planos dessa mesma história do cinema.
A questão está longe de ser um mero problema de escala, isto é, de “proximidade” do rosto humano. Diz o senso comum que, através do grande plano, o cinema conseguiu superar a sua herança teatral, substituindo a abertura fixa do palco por esse contacto muito directo, quase táctil, com o actor ou a actriz. Haverá alguma lógica em tal observação, mas só até certo ponto… Em boa verdade, quando vemos um plano geral do deserto filmado por David Lean em Lawrence da Arábia (1962), ninguém dirá que é como se estivéssemos a assistir a uma peça de teatro.

John & Gena

Antes e depois de começar a realizar os seus próprios filmes, Cassavetes tinha representado alguns papéis que, creio, poderão ajudar a entender melhor a riqueza e complexidade (e também a actualidade) do seu trabalho como cineasta. Lembremos o misto de rudeza, mistério e vulnerabilidade das suas presenças em dois filmes de Don Siegel: Juventude em Perigo (1956), claro sucedâneo temático de Fúria de Viver (1955), de Nicholas Ray, com James Dean (com o simbolismo sugestivo de encontrarmos Sal Mineo no elenco de ambos os filmes) e Contrato para Matar (1964), uma pérola da tradição “noir”, com Lee Marvin e Angie Dickinson. E lembremos também a perturbante convivência de Cassavetes com as forças do Mal em A Semente do Diabo (1968), de Roman Polanski, ou ainda no muito esquecido A Fúria (1978), fabuloso delírio barroco de Brian De Palma que reduz à sua insignificância muitas variações contemporâneas sobre as matrizes clássicas do cinema de terror.
No limite de tal processo de “ampliação” da presença do intérprete no ecrã de cinema, podemos citar esse espantoso filme terminal que é Love Streams/Amantes (1984), em que Cassavetes contracena com sua mulher, Gena Rowlands, num verdadeiro combate de emoções que condensa as singularidades de toda uma obra (dois anos mais tarde, o nome de Cassavetes ainda surgiu ligado a A Grande Burla, mas tratou-se de uma tarefa meramente logística, ajudando a concluir um filme cuja realização tinha sido iniciada por Andrew Bergman).

Actores e personagens

Num plano de ambíguo simbolismo, podemos considerar Love Streams como um reflexo da “irmandade” de emoções — uma verdadeira tribo artística — que Cassavetes criou com os seus actores de eleição. Ou ainda: ele e Gena Rowlands não “duplicam” o seu laço conjugal, já que interpretam dois irmãos — ela é uma mulher de meia idade enredada num processo desgastante de divórcio; ele é um escritor à deriva na sua dependência do álcool, acolhendo a irmã ao mesmo tempo que a ex-mulher o obriga a tomar conta do filho de oito anos (que não conhece) por um período de 24 horas…
Neste turbilhão impossível de apaziguar, sem redenção à vista, os grandes planos dos rostos acabam por funcionar de modo, não exactamente oposto, mas bem diferente do cliché que, com frequência, a eles se associa. De facto, há uma crença pueril que leva a dizer que o grande plano tem esse poder de aproximar e… revelar. Ou se quisermos retomar a dimensão “religiosa” de tal pressuposto: essa aproximação conduzir-nos-ia da dimensão física do corpo à sugestão metafísica da alma.
Podemos até supor que Cassavetes aceitaria a palavra “alma” para descrever as convulsões daqueles que filma. Ainda assim, o que importa referir é que qualquer aproximação da câmara de filmar a cada um dos seus seres cinematográficos parece ter tanto de revelador como de multiplicação do mistério. Para ele, enfim, a condição humana em grande plano não se esgota em nenhuma “significação” definitiva — em boa verdade, cada mistério desnudado converte-se em novo mistério, em novo transe corporal, em mais uma digressão pelo invisível das existências individuais.
Há ainda outra maneira de dizer isto: à maneira de alguns grandes cineastas “introspectivos” (Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman, etc.), Cassavetes é alguém que, reinventando o trabalho dos actores, refaz e relança o próprio conceito de personagem. O autor desse título, emblemático entre todos, que é Rostos (1968), afirmou-se como um revolucionário da relação entre câmara e corpos, quer dizer, dos cruzamentos dos olhares das personagens com o olhar do próprio espectador. No limite, ele entende a existência humana como um teatro íntimo — veja-se ou reveja-se o incontornável Opening Night/Noite de Estreia (1977) — cujo encenador permanece ausente. Quem é esse encenador? Talvez um deus ciumento do fulgor das almas humanas.

Paul Sorvino (1939 - 2022)

A imagem do gangster elegante e malicioso, em Goodfellas/Tudo Bons Rapazes (1990), de Martin Scorsese [trailer], ficou como o emblema natural da carreira de Paul Sorvino: o actor novaiorquino faleceu no dia 25 de julho em Jacksonville, Florida — contava 83 anos.
Com uma vasta filmografia, quer em cinema, quer em televisão, ele foi, afinal, um legítimo herdeiro da grande tradição de secundários de Hollywood: um actor capaz de assumir personagens de diferentes origens e comportamentos, enriquecindo a teia dramática de um filme. Nos anos 70/80, em particular, o seu nome surgiu nas fichas de títulos tão marcantes como Pânico em Needle Park (1971), de Jerry Schatzberg, A Caça (1980), de William Friedkin, ou Reds (1981), de Warren Beatty — voltou, aliás, a trabalhar sob a direcção de Beatty em Dick Tracy (1990), compondo a personagem de Lips Manlis. Vimo-lo também em Nixon (1995), de Oliver Stone, no papel de Henry Kissinger, em Romeu + Julieta (1996), de Baz Luhrmann, ou Bulworth - Candidato em Perigo (1998), uma vez mais com Beatty.


>>> Obituário em The Hollywood Reporter.

quarta-feira, julho 27, 2022

David Warner (1941 - 2022)

A estranheza da sua presença ligava-se com a subtileza da arte de representar: o actor inglês David Warner faleceu no dia 24 de julho, num hospital de Londres, vitimado por cancro no pulmão — a sua morte ocorreu cinco dias antes de completar 81 anos.
Com uma sólida formação teatral, entrou para a Royal Shakespeare Companhy em 1962. A partir daí, começou a ser solicitado para trabalhos em cinema e televisão, construindo uma filmografia de muitos contrastes, impressionante, desde logo, pela quantidade: mais de duas centenas de títulos.
Tom Jones (1963), de Tony Richardson, é um dos primeiros momentos dessa filmografia. De qualquer modo, o seu primeiro papel de destaque ocorreria em Michael Kohlhaas, o Rebelde (1969), segundo o romance de Heinrich von Kleist, sob a direcção de Volker Schlöndorff. Acabaria por se tornar um secundário de múltiplas facetas, surgindo, por exemplo, em Balada do Deserto (1970), western de Sam Peckinpah, Providence (1977), romance filosófico de Alain Resnais, ou Tron (!982), guerra de computadores assinada por Steven Lisberger. A mini-série bíblica Masada (1981), valeu-lhe um Emmy. Teve o seu derradeiro papel cinematográfico em O Regresso de Mary Poppins (2018), de Rob Marshall.

>>> Resumo da carreira de David Warner [The Guardian].


>>> Obituário no BFI.

terça-feira, julho 26, 2022

Bob Rafelson (1933 - 2022)

Foi uma figura de segunda linha, mas não de segunda importância, na consolidação de uma "nova Hollywood": Bob Rafelson faleceu no dia 23 de julho, na sua casa de Aspen, Colorado, vítima de cancro nos pulmões — contava 89 anos.
Na transição das décadas de 60/70, Rafelson começou por ser um produtor decisivo na zona dos “independentes”, ainda que sempre com alguma relação com os grandes estúdios. Com o seu amigo Bert Schneider, fundou a Raybert Productions, depois BBS Productions, empresa que produziu três títulos emblemáticos desse contexto de muitas transfigurações industriais e narrativas: Easy Rider (1969), de Dennis Hopper, Five Easy Pieces/Destinos Opostos (1970), do próprio Rafelson, e A Última Sessão (1971), de Peter Bogdanovich. Em tais filmes, o renovado gosto de contar histórias cruza-se com o desencanto existencial (familiar, sexual, político, etc.) gerado pelas ilusões libertárias dos sixties — veja-se ou reveja-se a personagem interpretada por Jack Nicholson em Five Easy Pieces.
Em qualquer caso, o título mais conhecido da sua filmografia é, obviamente, o magnífico O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes (1981), com Jessica Lange e Jack Nicholson, tendo como base o romance de James M. Cain, já adaptado, em 1946, por Tay Garnett, com Lana Turner e John Garfiel (em Portugal: O Destino Bate à Porta). Assinou ainda, entre outros títulos, o drama familiar O Rei de Marvin Gardens (1972), também com Jack Nicholson, uma variação do noir clássico intitulada A Viúva Negra (1987) e a aventura As Montanhas da Lua (1990).
A sua biografia artística contém ainda um capítulo muitas vezes esquecido: Rafelson está ligado à criação da banda rock The Monkees e, em particular, ao seu programa televisivo muito popular nos EUA, no período 1966-68. A sua derradeira longa-metragem, No Good Deed/Refém, um thriller com Samuel L. Jackson e Milla Jovovich, surgiu em 2002.

>>>  Genérico de abertura da série The Monkees.


>>> Trailer de Five Easy Pieces.


>>> Bob Rafelson falando das suas influências (2005).


>>> Obituário em The Washington Post.

domingo, julho 24, 2022

O dia, a noite e a beleza de tudo isso

Aconteceu em 1973:
Jean-Pierre Léaud, Françoise Lebrun e Bernadette Lafont

Quase meio século depois, La Maman et la Putain leva-nos a lidar com um valor que perdeu cotação social: a beleza — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 julho).

Perante a reposição, em magnífica cópia restaurada, de La Maman et la Putain/A Mãe e a Puta (1973), de Jean Eustache — começando por Lisboa (Nimas) e Porto (Trindade) —, não consigo desligar o reencontro com o filme daquilo que é a minha história particular enquanto espectador de cinema. Durante quase meio século, este é um filme que me tem acompanhado como uma referência cristalina e um fantasma indecifrável.
Jean Eustache
Em boa verdade, quando o vi pela primeira vez, nos tempos heróicos do Festival da Figueira da Foz, não o compreendi. Não que isso me leve agora a pedir perdão por ter tido 20 anos, muito menos a alimentar o cliché segundo o qual a nossa história individual vai consolidando uma clareza mental sancionada pelo passar dos anos… Pensar o envelhecimento exige-nos mais (e melhor) do que isso.
Acontece que La Maman et la Putain é um daqueles objectos estranhos e fascinantes, capaz de encarnar uma duplicidade rara na história do cinema. Assim, tudo nele nos remete para o presente da sua fabricação, numa dimensão de testemunho em que os artifícios da ficção envolvem um incrível poder documental; ao mesmo tempo, esse presente parece ter-se eternizado, levando-nos a reencontrar o filme como sinal ambíguo do aqui e agora em que o revemos.
Nele reconhecemos as marcas de um tempo em que, para o melhor e para o pior, uma geração (a minha, hélas!) viveu e protagonizou um singular turbilhão ideológico e moral. O errante e errático Alexandre — interpretado por Jean-Pierre Léaud como se o fim do mundo dependesse da justeza da sua relação com a câmara de filmar — é esse ser condenado a lidar com a herança simbólica das ideias “libertárias” da década de 1960, agora contaminadas pela crueza de um tempo sem promessas de redenção. Ele evoca mesmo algumas atribulações recentes — a Revolução Cultural Chinesa, Maio de 68, os cabelos compridos, etc. — para justificar a elegância e o egoísmo da sua tese: “Estou convencido de que tudo o que tem acontecido no mundo nestes últimos anos tem sido completamente contra mim.”
Seria, por isso, ceder à mediocridade mediática dos tempos (2022, entenda-se) reduzir tudo isso a um qualquer cenário militante segundo o qual o narcisismo de Alexandre vai sendo desmontado pela energia das duas mulheres — Veronika (Françoise Lebrun) e Marie (Bernadette Lafont) — que pontuam as suas angústias quotidianas. Se há noção que, em 1973 como agora, o trabalho de Eustache desmente é a que se refugia num esquematismo “masculino/feminino” segundo o qual qualquer personagem masculina está condenada a ser estandarte e cúmplice de todos os dramas que as personagens femininas possam enfrentar.
Aliás, sublinhando uma ironia interior ao próprio filme, vale a pena lembrar as poucas imagens em que coexistem Alexandre, Veronika e Marie, incluindo a cena (totalmente assexuada) em que os vemos na mesma cama. De facto, perpassa por La Maman et la Putain a sensação, de uma só vez desencantada e movida pela curiosidade, de que não há nada de explicitamente sexual que possa esgotar, muito menos resolver, as convulsões vividas pelo trio. Alexandre di-lo com poética mágoa: “Ela era bela como o dia, mas eu gostava das mulheres belas como a noite.”
Cada uma à sua maneira, Veronika e Marie são sublimes de mistério. Aquilo que elas devolvem ao olhar de Alexandre não encontra outra forma de materialização que não seja na avalanche de palavras. Estamos, de facto, perante uma “contradição” formal que poucos têm sabido explorar como Eustache o fez: ao realismo terno dos lugares contrapõe-se a exuberância romanesca dos diálogos (por certo dos mais extraordinários que podemos encontrar em toda a história do cinema).
Reabrindo, assim, o dossier La Maman et la Putain, talvez possamos dizer que o filme de Eustache desenha um painel da condição humana cujo ponto de fuga é a palavra. A saber: a possível intensidade da fala, por vezes eminentemente erótica, no interior de um mundo em que a vulgaridade do falar (veja-se o horror do Big Brother televisivo) impõe a sua lei.
Na sessão de La Maman et la Putain em Cannes, a abrir a secção de “Clássicos” deste ano (17 de maio), Françoise Lebrun deixou uma sugestão aos espectadores, sobretudo os mais novos, aconselhando-os a esquecer tudo o que foi escrito sobre o filme. Ou seja: teremos que partir do zero para sermos dignos da beleza magoada que abençoa Alexandre, Veronika e Marie.

Michael Henderson (1951 - 2022)

[ Wikipedia ]

Figura emblemática do jazz americano dos anos 70/80, especialista da guitarra baixo, também vocalista, Michael Henderson faleceu no dia 19 de julho, na sua casa de Atlanta, Georgia — contava 71 anos.
Músico ligado aos tempos de fusão do jazz, Henderson trabalhou, em particular, em vários álbuns de Miles Davis, incluindo o prodigioso Live-Evil (1971). A partir de 1976, encetou uma carreira a solo em que um certo gosto romântico se combina com a vibração funk. Ao mesmo tempo, foi um colaborador regular de nomes como Marvin Gaye, Aretha Franklin e Stevie Wonder.

>>> Be My Girl, do primeiro álbum, Solid (1976).
 

>>> Obituário na Billboard.

Memórias do ataque ao Capitólio

A primeira parte dos trabalhos da comissão que investiga o ataque ao Capitólio, em Washington, no dia 6 de janeiro de 2021 terminou com a inequívoca demonstração das responsabilidades de Donald Trump na criação de condições para que tal ataque acontecesse e, em particular, na sua resistência a tomar qualquer atitude que pudesse pôr fim ao seu desenvolvimento.
A comissão retomará os seus trabalhos em setembro. Para já, podemos encontrar em The Late Show, com Stephen Colbert, um contundente resumo daquilo que ficou provado – são 14 minutos de grande televisão.

sábado, julho 23, 2022

Herbie Hancock — sons com 50 anos

Entre 1971 e 1973, Herbie Hancock lançou três álbuns: Mwandishi, Crossings e Sextant — é o chamado "período Mwandishi". Ou seja: um conjunto de fascinantes experiências de fusão, com o funk e as electrónicas a transfigurarem matrizes herdadas do gosto tradicional de improvisação. São produtos do trabalho de um sexteto de invulgares talentos (todos eles envolvidos na percussão!):

* Herbie Hancock – piano, piano eléctrico, mellotron, percussão
* Eddie Henderson – trompete, fliscorne, percussão
* Bennie Maupin – saxofone soprano, flauta, clarinete, flautim, percussão
* Julian Priester – trombones tenor e alto, percussão
* Buster Williams – guitarra baixo, contrabaixo, percussão
* Billy Hart – bateria, percussão

2022 é o ano em que Crossings perfaz meio século — escutemos, por isso, o tema Quasar, 50 anos de modernidade.

sexta-feira, julho 22, 2022

A IMAGEM: Bruce Gilden, 2013-14

BRUCE GILDEN / Magnum
Black Country
2013-14

Duas ou Três Coisas
— Antena 1, dia 22 (23h14)

[ Duas ou Três Coisas ]

Do "renascimento" de Kate Bush aos livros que andamos a ler...
... e escutando, por exemplo, Ryan Adams e William Orbit.
Estamos na Antena 1, às sextas-feiras, como é habitual: a edição nº 20 de Duas ou Três Coisas começa às 23h14, logo após as notícias à hora certa — depois, fica disponível em RTP Play.

quinta-feira, julho 21, 2022

Sonic Youth, 1992

Foi há 30 anos, mais precisamente no dia 21 de julho de 1992: surgia Dirty, peça fundamental da discografia dos Sonic Youth, celebração grunge cuja energia, metodicamente, excedeu os rótulos do momento — para recordar: Sugar Kane.
 

segunda-feira, julho 18, 2022

Sharunas Bartas
— tragédia e realismo

Alina Zaliukaite-Ramanuskiene, notável actriz do cinema da Lituânia

O realizador Sharunas Bartas regressou ao mercado português com Na Penumbra, evocação de tempos conturbados pós-Segunda Guerra Mundial. Ou como a tragédia nasce, aqui, de um depurado realismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 julho), com o título 'Memórias trágicas da nossa Europa'.

Sharunas Bartas, lituano, nascido em 1964, é um cineasta que pudemos descobrir num contexto muito particular. Já lá vão trinta anos: a sua primeira longa-metragem, Três Dias (1991), foi o grande acontecimento da Semana dos Novos Realizadores do Fantasporto de 1992. A partir daí, ainda que de modo incompleto, o seu trabalho continuou a marcar presença nas nossas salas, até porque Portugal tem alguma ligação com a produção dos seus filmes: aconteceu com Freedom (2000), cujos produtores foram Paulo Branco e o próprio Sharunas Bartas; volta a acontecer agora com Na Penumbra, seleccionado para Cannes/2020 (o ano em que o festival não se realizou devido à pandemia), resultante de uma coprodução europeia a que surge associado o nome da empresa Terra Treme.
Dizer que Na Penumbra fica, desde já, como uma das grandes estreias deste verão cinematográfico decorre, em primeiríssimo lugar, do reconhecimento do misto de rigor narrativo e contundência temática da obra de Sharunas Bartas. Ao mesmo tempo, tal reconhecimento não deixa de envolver uma bizarra ironia: nada do que aqui possamos encontrar envolve os valores (ou a falta deles) dos chamados “espectáculos de verão” — estamos perante um exemplo modelar do labor de um dos grandes solitários do cinema contemporâneo, prosseguindo uma obra metódica e obsessiva, sempre visceralmente ligada às convulsões da nossa Europa.
A tragédia enraiza-se na terra, ou melhor, na pertença ameaçada a um lugar. Assim, a acção nasce da herança traumática da Segunda Guerra Mundial. Estamos em 1948 e deparamos com a oposição de dois grupos: os soldados soviéticos que ocupam a Lituânia e a resistência dos “partisans”, eles próprios marcados pela traição dos que pactuam com os invasores.
Sharunas Bartas não procura, de modo algum, os efeitos típicos de um tradicional “filme de guerra”. Na Penumbra desenvolve-se mesmo a partir dos elementos de um drama rural, centrado na figura fascinante e vulnerável do jovem Untè, de 19 anos (Marius Povilas Elijas Martynenko): por um lado, ele vive a condição de filho adoptivo, a cargo de um pai e uma mãe (Arvydas Dapsis e Alina Zaliukaite-Ramanuskiene, todos notáveis actores) assombrados pela ruptura do seu próprio espaço conjugal; por outro lado, as tensões militares vão empurrar Untè para uma iniciação cruel na violência obscena da guerra…
De tal modo que, muito antes de nos dar a ver qualquer cena de combate, Sharunas Bartas desenha um fresco desencantado de um tempo em que as relações humanas — a começar pelos precários laços familiares — se encontram ameaçadas por uma violência que, de uma maneira ou de outra, se infiltra em todos os recantos do quotidiano. Lembramo-nos, por isso, do seu brilhante filme anterior, Geada (2017), centrado na viagem de um par de jovens lituanos que se oferecem para um transporte de ajuda humanitária para a Ucrânia… Num caso como noutro, o depurado realismo de Sharunas Bartas não é estranho aos fantasmas de que (também) se faz a história.

domingo, julho 17, 2022

Kelly Zutrau, aliás, Wet + Nick Ventura

Como se uma canção fosse sempre o resultado de duas imagens que se repetem, sem se sobrepor... Assim é, pelo menos, o simples e sugestivo teledisco de Turn The Lights Down Low, uma das canções de austera beleza do EP Pink Room, da banda novaiorquina Wet. Tudo isso ecoando através da voz límpida, envolente e indecifrável de Kelly Zutrau — o teledisco tem realização de Nick Ventura.
 

Regina Spektor, 2011

Editado em 2011 para venda em concertos, o álbum de estreia de Regina Spektor, 11:11, tem existido como uma espécie de ovni de culto, não exactamente inacessível, mas francamente raro. Finalmente, em agosto, será reeditado (em vinyl) — eis o maravilhoso tema de abertura, Love Affair (sem esquecer, claro, que o novíssimo Home, Before and After surgiu há poucas semanas).
 

sábado, julho 16, 2022

Três contos morais
sobre o valor das imagens

Amy Adams no papel de Margaret Keane
Olhos Grandes (2014): a arte de desejar a beleza

No delírio mediático do nosso mundo, não basta “explicar” as imagens: é preciso parar para olhar e acolher algum silêncio — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 julho).

[NPG]
1.
O jubileu da Rainha Isabel II reforçou na praça pública — entenda-se: no espaço mediático em que, mal ou bem, sobrevivemos — o papel de alguns “especialistas” de língua inglesa, vocacionados para nos esclarecer sobre os infinitos enigmas da família real britânica. Tal como perante os/as “influencers” que nascem das pedras da calçada, não posso esconder o meu espanto muito plebeu: como é possível proferir tantas e tão patéticas banalidades, ao mesmo tempo desfrutando de um palco público que lhes confere o estatuto, quase científico, de intocáveis autoridades morais? Problema meu, entenda-se, já que não consigo mostrar-me indiferente, quanto mais não seja porque uma das “especialidades” de tais personagens envolve as significações das imagens. Assim, deparei mesmo com alguém que apresentava toda uma “tese” sobre a percepção da Princesa Diana por Isabel II a partir da recuperação de breves segundos de materiais de arquivo que eram, por assim dizer, tratados como se fossem sequências de ADN que o espectador, pobre mortal, não saberia decifrar. No limite, triunfava uma rasteira obscenidade ontológica: desde um movimento brusco da cabeça da Rainha até ao ritmo lento de uma determinada caminhada, tudo era sujeito a uma desavergonhada “psicanálise” em que alguns segundos de imagens em movimento reduziam a personagem a uma antologia grosseira de segredos diplomáticos e estados de alma — nos dias que correm, “isto” detém um poder discursivo que quase ninguém quer questionar.

2.
Em França, várias organizações de fotógrafos profissionais puseram em marcha uma campanha com esta palavra de ordem: #UnePhotoÇaSePait. Ou seja, à letra, “uma fotografia paga-se” (ver, por exemplo, Libération, 30 junho). Em causa está a falta de reconhecimento financeiro e simbólico do trabalho dos fotógrafos, a par da proliferação de bancos de imagens a baixo custo (por vezes, gratuitas) e do desrespeito pelos direitos de autor, tudo isto contaminado por aquilo que consideram alguma indiferença dos poderes públicos. Escusado será dizer que as questões de enquadramento legal que os profissionais franceses apontam não podem ser tomadas como elementos universais e intermutáveis. Seja como for, no plano civilizacional, o seu protesto ecoa uma tragédia realmente global que tem como incauto protagonista o consumidor individual — esse consumidor que interiorizou a ideia (e a moral pueril) segundo a qual o seu telemóvel é um instrumento divino de interpretação do mundo à sua volta. Em causa está uma lei mediática segundo a qual todas as imagens se equivalem: pertenceriam a um mundo sem regras em que as questões primordiais de trabalho são irrelevantes, acabando por anular as especificidades de contexto e linguagem. Tudo isso desemboca na pergunta que envolve o nosso sonambulismo cognitivo: num mundo de delirante circulação de imagens, quem é que ainda tenta, realmente, olhá-las e reflectir sobre os modos da sua percepção?

3.
Neste tempo de frequente tratamento da morte como um ritual compulsivamente mediático, eis uma notícia que, até mesmo nos EUA, não foi muito evidente: no dia 26 de junho, na sua casa de Napa, Califórnia, faleceu a pintora americana Margaret Keane, contava 94 anos. Célebre pelos quadros de rostos com olhos grandes, a sua odisseia pessoal está retratada num magnífico filme de Tim Burton, protagonizado por Amy Adams, intitulado, justamente, Olhos Grandes (2014); centra-se no período do seu casamento com Walter Keane (1955-65), durante o qual o marido, um pintor falhado, expôs e vendeu os quadros da mulher como se fossem de sua autoria. Dois factores tendem a “formatar” as componentes desta história: primeiro, há críticos de arte que reduzem o trabalho de Margaret a um descartável fenómeno “kitsch”; depois, alguns feminismos gostam de identificar a estupidez de Walter como símbolo obrigatório do carácter malévolo de “todos” os homens face à expressão das mulheres… Digamos apenas, para simplificar, que aquilo que Burton coloca em cena não é uma coisa nem outra. Olhos Grandes é um filme sobre o desejo de beleza, ou melhor, sobre a vontade artística de criar algo que toque os outros através do valor inefável da própria representação. Essa vulnerabilidade está ameaçada no nosso mundo: obcecados pela “explicação” das imagens, não abrimos os olhos para o que, pelo menos em algumas imagens, resiste a qualquer vulgarização mediática, apelando a um pudico silêncio.

terça-feira, julho 12, 2022

Monty Norman (1928 - 2022)

[ montynorman.com ]

Cantor, compositor, produtor musical, o inglês Monty Norman faleceu no dia 11 de julho — contava 94 anos.
A sua trajectória é indissociável de um modelo de teatro emninentemente inglês, cruzando comédia e musical, tendo trabalhado com figuras como Peter Sellers, Benny Hill ou Spike Milligan; foi autor de musicais como Songbook (1979) e Poppy (1982), tendo também trabalhado na versão inglesa do francês Irma la Douce (1958) que estaria na base do filme homónimo de Billy Wilder, produzido em 1963.
Em qualquer caso, o lugar muito especial que Monty Norman ocupa na história da música popular do século XX decorre do facto de ser ele o autor do tema de James Bond. Mais exactamente, foi ele que compôs a música para Dr. No/Agente Secreto 007 (1962), primeiro título da saga Bond (c/ Sean Connery; real. Terence Young) — o impacto foi tal que acabou por se fixar como "tema oficial" de James Bond.

>>> Eis duas versões do tema:
— no genérico de abertura de Dr. No, pela orquestra de John Barry;
— interpretado ao piano pelo autor, em 2012, numa gravação para o jornal The Telegraph.




>>> Obituário no jornal The Guardian.
>>> Evocação no site oficial de 007.

segunda-feira, julho 11, 2022

Mohammad Rasoulof preso no Irão

Mohammad Rasoulof

As autoridades iranianas prenderam o realizador Mohammad Rasoulof — um protesto por ele assinado contra o abuso da força e a violência policial terá sido o pretexto invocado para mais este acto arbitrário contra o realizador de O Mal não Existe; outro cineasta, Mostafa Aleahmad, foi encarcerado pelo mesmo motivo.
A situação está a desencadear muitas reacções internacionais, exigindo a libertação de Rasoulof. O texto que se publica aqui em baixo é da responsabilidade conjunta da Leopardo Filmes e do Lisbon & Sintra Film Festival, entidades que têm divulgado a obra de Rasoulof no contexto português.
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PS — Já depois do encarceramento de Rasoulof, Jafar Panahi voltou a ser preso [Libération]. No respectivo site, podemos ler a tomada de posição do Festival de Cannes.
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Mohammad Rasoulof, realizador de There Is no Evil / O Mal não Existe, Urso de Ouro no festival de Berlim em 2020, distribuído em Portugal pela Leopardo Filmes, e de a A Man of Integrity, que integrou a Selecção Oficial em Competição do LEFFEST 2017, foi preso na última sexta-feira pelas autoridades iranianas, como se pode ler numa notícia da Variety, corroborada pelos seus produtores Kaveh Farnam e Farzad Pak. O pretexto para a prisão de Rasoulof, juntamente com o realizador Mostafa Al-Ahmad, foi um protesto nas redes sociais contra o abuso da força e a violência policial [#lay_down_your_weapon] e ainda o ano de prisão a que foi condenado por ter feito o filme A Man of Integrity. Recorde-se que Rasoulof foi impedido pelas autoridades iranianas, que lhe haviam confiscado o passaporte, de se deslocar ao festival de Berlim, e foi a sua filha que recebeu em seu nome o Urso de Ouro em 2020.

Jafar Panahi
Rasoulof, um dos mais proeminentes realizadores iranianos, cujos filmes têm vindo a ser proibidos noIrão (em 2010 foi condenado a seis anos de prisão pelo crime de “associação, conluio e propaganda contra o regime”, sentença mais tarde reduzida a uma pena condicional, tendo o cineasta pago uma fiança, e à proibição de fazer filmes, como aconteceu com Jafar Panahi), está em solitária na prisão de Evin, em Teerão, uma prisão para os presos políticos, onde tem estado a ser interrogado. Outra das acusações prende-se com o documentário que tem em mãos, Intentional Crime, no qual investiga a morte do poeta iraniano Baktash Abtin, também ele um preso político, desde a sua detenção e hospitalização até à sua morte em circunstâncias obscuras.

Os protestos internacionais contra a prisão arbitrária de Mohammad Rasoulof e Mostafa Al-Ahmad têm-se alastrado, desde os directores do festival de Berlim, Mariette Riesenbeck e Carlo Chatrian, ao presidente da European Film Academy, Mike Downey. Os produtores de Rasoulof apelam à comunidade internacional, aos realizadores, produtores, distribuidores e todos os que trabalham no cinema, para uma “condenação firme das autoridades iranianas, que desrespeitam os direitos humanos e as liberdades civis dos realizadores iranianos independentes, que reprimem e pressionam de forma constante”, e exigem a sua “libertação imediata e incondicional”.

A Lei de Teerão
— a lei da cidade e a consciência do mal

Tragédia em Teerão:
Navid Mohammadzadeh, um actor fora de série

Da produção cinematográfica do Irão continuam a chegar propostas de invulgar ousadia temática e energia narrativa: é agora o caso de A Lei de Teerão, um retrato contundente da acção da polícia face aos circuitos da droga, com assinatura do jovem Saeed Roustaee — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 junho).

Para lá do ruído mediático das campanhas de super-heróis e afins, como vai o nosso conhecimento do “cinema do mundo”? Apesar dos desequilíbrios do mercado português, importa reconhecer que vamos tendo a possibilidade de descobrir alguns filmes de diversas origens geográficas e culturais: do Irão, por exemplo, em particular da sua chamada “nova vaga”. A referência de Abbas Kiarostami (1940-2016) é, obviamente, incontornável, mas podemos citar também autores como Jafar Panahi, Majid Majidi ou Moshen Makhmalbaf. Entretanto, o nome de Asghar Farhadi tornou-se o mais conhecido junto das plateias de todo o mundo, já que realizou os dois únicos títulos iranianos que arrebataram o Oscar de melhor filme internacional: Uma Separação (2011) e O Vendedor (2016).
Pois bem, é altura de acrescentarmos a essa lista o nome de Saeed Roustaee. E com grande destaque: o seu filme A Lei de Teerão (2019), a partir de hoje [30 junho] em exibição, é um prodígio de encenação e vibração emocional, retratando a acção de um grupo de polícias contra o flagelo social das drogas. O título internacional — Just 6.5 — reflecte a angústia de um diálogo entre esses polícias, avaliando a dimensão do flagelo. Ou seja: no Irão existem “apenas” 6,5 milhões de toxicodependentes.

Drama e tragédia

Um crítico dos EUA (Peter Debruge: Variety, 7 nov. 2019) condensou de forma sugestiva o impacto de A Lei de Teerão, apelidando-o de versão iraniana do clássico The French Connection/Os Incorruptíveis contra a Droga (1971), de William Friedkin. As diferenças são muitas, mas é um facto que estamos perante o mesmo gosto pela energia física, dramática e política de uma matriz em que todas as personagens, longe de qualquer maniqueísmo fácil, surgem marcadas por uma surpreendente complexidade.
O brilhante argumento de A Lei de Teerão, também da responsabilidade de Roustaee, organiza um “twist” — não exactamente factual, mas dramatúrgico — que faz com que a sua duração se apresente, por assim dizer, “repartida” por duas personagens principais. Tudo começa com a brigada de Samad Majidi (Payman Maadi, actor que vimos, por exemplo, em Uma Separação) e uma rusga que desemboca numa incrível perseguição pelos becos de um bairro pobre — tal sequência basta, aliás, para definir um olhar de cineasta, capaz de usar os materiais da ficção através de um obsessivo realismo documental. A droga que encontram leva Majidi a reforçar o processo de investigação que há muito tem um objectivo fulcral: localizar e prender Nasser Khakzad (Navid Mohammadzadeh, prodigioso actor), um dos principais líderes do tráfico de drogas em Teerão…
Nada disto é linear, muito menos determinista. Desde logo, porque a miséria dos bairros em que vivem muitos toxicodependentes, e também o cenário dantesco da prisão em que Khakzad é detido, superam qualquer tentativa de descrição objectiva. Depois, porque nesse inferno de infinitas atribulações ninguém existe como personagem banalmente “simbólica”.
Majidi está assombrado por múltiplos problemas, tentando obter uma promoção que, segundo ele, irá apaziguar a sua vida conjugal, sendo a certa altura acusado de ter desviado droga que capturou… Quanto a Khakzad, conhecemo-lo numa tentativa de suicídio, dir-se-ia vencido pela própria riqueza fenomenal que acumulou, para a pouco e pouco sabermos do seu passado enraizado na mesma abjecção social que o filme vai expondo — a sua consciência do mal que protagoniza confere-lhe, no plano cinematográfico, a dimensão de uma personagem genuinamente trágica.

O valor da palavra

Saeed Roustaee filma o sistema das drogas, não apenas como uma entidade maléfica capaz de ameaçar a consistência da sociedade, mas também como um elemento perverso que, através de mecanismos de profunda crueldade, acabou por gerar o seu próprio tecido social. Daí o misto de contundência realista e desencanto moral que contamina todos os momentos de A Lei de Teerão.
Podemos, talvez, filiar o filme numa tradição do género “policial” que, na sua transversalidade, encontramos do cinema asiático até Hollywood, obviamente passando por diversas cinematografias europeias. Em qualquer caso, a classificação é redutora, já que Roustaee constrói grande parte das acções do filme privilegiando o valor dramático da palavra: os diálogos pesam de forma decisiva nos ambientes de A Lei de Teerão, no limite definindo o labor de cada uma das personagens para tentarem encontrar um lugar seguro nessa “lei” que emana da concepção ideal, ou idealizada, da própria cidade.
Resta dizer que nada disto é estranho à convulsiva saga familiar que encontramos em Leila’s Brothers, o filme que Roustaee realizou depois de A Lei de Teerão, há pouco mais de um mês revelado na secção competitiva de Cannes — foi, aliás, um dos grandes filmes do festival que o júri presidido por Vincent Lindon cometeu a “proeza” de não premiar. Resta ficarmos pelo mais simples: nascido em Teerão em 1989, Roustaee é um nome a inscrever na lista dos mais jovens e mais talentosos cineastas contemporâneos.

sábado, julho 09, 2022

Yeah Yeah Yeahs + Perfume Genius

O mais recente álbum dos novaiorquinos Yeah Yeah Yeahs intitula-se Mosquito e data de 2013... Entretanto, a vocalista Karen O aventurou-se em algumas derivações a solo, Nick Zinner (guitarra, teclas) e Brian Chase (bateria) também circularam por outras paragens, mas, finalmente, a espera acabou! Ou seja: o quinto álbum de estúdio da banda, Cool It Down, vai chegar a 30 de setembro — e é verdade, sim: o título é roubado a uma das canções de Loaded (1970), de The Velvet Underground.
O cartão de visita, exuberante, quase burlesco, saborosamente "lynchiano", chama-se Spitting Off the Edge of the World, tem a colaboração de Perfume Genius e teledisco com assinatura de Cody Critcheloe.

sexta-feira, julho 08, 2022

Cinema, confinamento & etc.

O Leopardo (1963)
— Alain Delon e Claudia Cardinale filmados por Visconti

Repensar o cinema, aqui e agora, é uma tarefa que não pode ignorar as regras dominantes do consumo dos filmes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 junho), com o título 'Da diferença à indiferença'.

Investigador e professor de cinema, José Bogalheiro acaba de publicar um livro, tão breve quanto motivador, a que chamou Se Confinado um Espectador (ed. Documenta). Trata-se de uma colectânea de textos escritos entre novembro de 2020 e julho de 2021 (para o site “À Pala de Walsh”), nascidos, tal como o título sugere, em contexto de pandemia, assombrados pelos sinais de progressiva decomposição dos circuitos clássicos do cinema.
No primeiro texto, motivado pelo filme A Voz Humana (2020), de Pedro Almodóvar, o autor recorda mesmo que “de semana para semana, multiplicam-se as notícias cada vez mais inquietantes sobre o encerramento de salas de cinema.” Não sem concluir que importa não desistir do voto formulado pelo próprio Almodóvar no sentido de não esquecermos as emoções do fenómeno cinematográfico, recomendando aos espectadores que “vão ao cinema, pois todas essas emoções se descobrem apenas num grande ecrã, entre desconhecidos, e às escuras.” O subtítulo do livro, convém sublinhar, é esclarecedor: O cinema como metamorfose da experiência interior.
Directa ou indirectamente, o livro de José Bogalheiro impele-nos a regressar a algum tipo de reflexão sobre os poderes e perversões da conjuntura virtual — entenda-se: o poder imenso das plataformas de streaming — em que os filmes passaram a viver no imaginário dos espectadores (ou a morrer na memória colectiva).
E não apenas por causa do contraste que pode existir entre a grandeza física de um ecrã de uma sala de cinema e a insuperável “pequenez” das nossas experiências caseiras, mesmo quando marcadas por suplementos técnicos que o marketing não desiste de valorizar. O que está em jogo é a diferença radical entre os valores de uma cinefilia indissociável de uma história frondosa do cinema com mais de um século — sempre envolvida por um código tácito de comportamentos sociais — e a ligeireza, tão festiva quanto irresponsável, do consumo indiferenciado de filmes.
Nesse contexto de indiferenciação, os filmes já não são filmes; como gostam de dizer alguns executivos de empresas de cinema, são “produtos”. Não é uma banal troca de palavras: para tal discurso, o cinema como entidade específica da história da humanidade não existe. No limite, podemos encontrar na Netflix um filme como Austerlitz (1960), de Abel Gance, sem que haja uma única informação, ainda que esquemática ou banalmente enciclopédica, sobre o papel criativo e o lugar mítico do seu realizador na dinâmica histórica e artística do grande cinema popular (nota pedagógica: muitos exemplos deste tipo, primários e chocantes, podem encontrar-se em quase todas as plataformas).
Num dos seus textos, José Bogalheiro recorda outro tipo de “objectificação” dos filmes. Assim, há quase 60 anos, a difusão de O Leopardo (1963), de Luchino Visconti, adaptando o romance homónimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, foi objecto das mais variadas peripécias. Recordemos, simplificando: na estreia, numa sala de Roma, o filme tinha uma duração de 197 minutos, tendo mais tarde ganho a Palma de Ouro de Cannes com 185 minutos — esta versão, que serviu de base ao restauro de 1991, acabou por ser considerada a “definitiva”; pelo meio, a versão “anglo-americana” fez com que, em vários mercados, o filme fosse distribuído em cópias de fraca qualidade, resultantes dos chamados contratipos (cópias de cópias) com crescente degradação da qualidade das imagens.
As atribulações da obra-prima de Visconti podem ser revisitadas como um pequeno conto moral para os nossos tempos de acumulação caótica de imagens e estímulos visuais (e sonoros). Assim, a fixação de O Leopardo na sua cópia “definitiva” está, por certo, contaminada por diversas formas de mercantilismo; ainda assim, foi vivida como uma saga interior ao próprio cinema e às suas componentes específicas.
Nos dias que correm, a exaltação comercial da “diferença” — por exemplo: ter acesso caseiro a um filme “qualquer” — transforma-se, por vezes, num triunfo obsceno da indiferenciação. Seja um filme de Abel Gance, seja a mais vulgar barulheira protagonizada por um super-herói mil vezes reciclado, tudo se acumula na gratificação pueril do consumo. Como José Bogalheiro refere, lembrando George Steiner, “não estamos livres da barbárie” que começa na iliteracia face às imagens. A tragédia política que isso envolve obriga os políticos a pensar as imagens que usam — ou em que são usados.