quinta-feira, junho 30, 2022

Wong Kar Wai
— alguns restos românticos

Maggie Cheung e Tony Leung em In the Mood for Love:
memórias e solidões de Hong Kong

Revendo os filmes de Wong Kar Wai numa magnífica edição em DVD, em particular In the Mood for Love, reencontramos um cinema que não desistiu do romantismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 junho).

Se o leitor conhece o filme In the Mood for Love (2000), realizado por Wong Kar Wai, saberá que a inspiração para o título provém da canção I’m in the Mood for Love — mais exactamente, da versão interpretada por Bryan Ferry, incluída nesse admirável álbum de “velharias” que é As Time Goes By (1999). Com um paradoxo a ter em conta: a canção não é escutada no próprio filme (mesmo se algumas edições da respectiva banda sonora a incluem). Desenha-se, assim, uma via de cumplicidades românticas que nos remete para o original da canção, composta por Dorothy Fields/George Oppenheimer (letra) e Jimmy McHugh (música), integrando a banda sonora da comédia romântica Every Night at Eight (1935), de Raoul Walsh — a interpretação era de Frances Langford [eis Ferry + Langford].




Sempre senti que a pulsão poética de tudo isto esbarra com o determinismo do título português do filme: Disponível para Amar. É, a meu ver, um dos exemplos “clássicos” de inadequação e, mais do que isso, traição simbólica que um título pode favorecer. A sugestão de que o par interpretado por Maggie Cheung e Tony Leung — dois seres solitários cujos parceiros estão ausentes — vive o amor através de alguma forma de “disponibilidade” situa a acção num terreno de escolhas racionais que, em tudo e por tudo, contraria o espírito romântico da narrativa.
Se Wong Kar Wai filma alguma coisa de palpável é, justamente, a proximidade dos corpos e dos desejos que existe… porque sim. Em boa verdade, é essa a premissa, consciente ou inconsciente, do romantismo cinematográfico. Podemos revisitar agora esse universo através de “Mundo de Wong Kar Wai”, uma magnífica caixa de DVD (Leopardo Filmes).
In the Mood for Love/Disponível para Amar surge num conjunto de sete títulos, em cópias restauradas, com assinatura daquele que é, afinal, um dos nomes fulcrais do cinema de Hong Kong. Cinco são anteriores: As Tears Go By/Ao Sabor da Ambição (1988), Days of Being Wild/Dias Selvagens (1990), Chungking Express (1994), Fallen Angels/Anjos Caídos (1995) e Happy Together/Felizes Juntos (1997); o último, 2046 (2004), enredado em sugestões de ficção científica, é normalmente encarado como uma sequela de In the Mood for Love (também porque os dois argumentos foram escritos em simultâneo).
A tragédia de uma maternidade incerta em As Tears Go By, as duas histórias paralelas de Chungking Express ou a ambiência queer de Happy Together são apenas alguns dos elementos mais óbvios de uma problematização do romantismo que escapa ou, em rigor, transcende a “disponibilidade” dos seus protagonistas. Porquê? Porque o romantismo envolve uma relação dúplice com o tempo presente: as personagens são peões incautos desse tempo, ainda que os seus desejos as projectem num outro calendário.
A esse propósito, Wong Kar Wai nunca deixou de sublinhar a importância simbólica da situação de In the Mood for Love no começo da década de 1960, em Hong Kong, pressentindo memórias de diferentes lugares e outras vivências (o próprio realizador nasceu em Xangai, em 1958). Paradoxalmente ou não, no plano cinematográfico, a sensibilidade romântica afirma-se como expressão de uma paixão narrativa que resiste a rotular as convulsões particulares de cada vida humana. Nesta perspectiva, a redescoberta de Wong Kar Wai através do DVD é tanto mais motivadora quanto vivemos — ou somos compelidos a viver — tempos de avassaladora indiferença por qualquer centelha de romantismo e, por fim, da sua metódica destruição.
Observe-se, a esse propósito, a normalização da noção mecânica e mecanicista segundo a qual há uma continuidade obrigatória entre um qualquer acontecimento, trágico ou não — seja a guerra na Ucrânia, seja o Jubileu de Isabel II —, e a sua “análise”. Que está, então, a acontecer? A instalação de um imaginário social e mediático, logo cultural, que nos obriga a sentir qualquer facto como “coisa” que só existe em determinado momento porque, nesse mesmo momento, o vamos afogar num qualquer “significado”.
Ora, Wong Kar Wai é um daqueles cineastas que sabe que nenhum significado pode esgotar, muito menos racionalizar, a vibração de um instante, por mais efémera ou indiferente que a sua duração possa parecer. Veja-se ou reveja-se a depurada utilização das imagens em câmara lenta para filmar alguns movimentos de Maggie Cheung e Tony Leung — como se o cinema desejasse fixá-los na intensidade de cada momento, libertando-os do desgaste do tempo.

Joan Shelley, tradicionalmente

A tradição folk ainda é o que era... E, não havendo traição às suas raízes, que outra coisa poderia ser? Aí está o álbum The Spur, de Joan Shelley, como depurada e eloquente demonstração — este é o tema-título.
 

terça-feira, junho 28, 2022

Infância: que políticas?

Sintoma (neste caso vindo de França): o jornal Libération analisa a situação das creches, apontando a falta de instituições com as condições mínimas exigidas e a deficiente formação de alguns educadores. Para lá dos casos de excepção, a regra é perturbante: vivemos tempos de muitos discursos piedosos e simplistas de "protecção" das crianças, mas escasseiam as políticas que tenham alguma noção ágil, inteligente e, sobretudo, não paternalista da infância.

domingo, junho 26, 2022

Tess Parks, canto e dança

Eis uma pequena pérola vinda do Canadá. Assina: Tess Parks, nascida em Toronto, em 1992. Publicou o primeiro álbum, Blood Hot, em 2013, tendo depois mantido uma colaboração regular com o produtor e multi-instrumentalista Anton Newcombe, líder da banda The Brian Jonestown Massacre, com quem aliás lançou Tess Parks & Anton Newcombe (2018). Personagem de um rock de grande liberdade criativa, reminescente de alguma nostalgia psicadélica, Parks apresenta agora And Those Who Were Seen Dancing, uma dezena de canções de invulgar precisão musical e poética — eis Happy Birthday Forever (teledisco feito, segundo algumas fontes, com imagens das aulas de bailado da própria cantora).

BOWIE / ZIGGY / FNAC

Da sessão SOUND + VISION da FNAC, no sábado, dia 25, aqui ficam algumas memórias soltas da nossa revisitação de Ziggy Stardust a propósito do seu 50º aniversário.

>>> David Bowie, Changes (1971; lyric video, 2018).
 

>>> Duran Duran, Five Years (2021).
 

>>> Choir! Choir! Choir!, Heroes (2019).
 

sábado, junho 25, 2022

Regina Spektor, Opus 8

Nascida em Moscovo, em 1980, a americana Regina Spektor continua a construir uma obra alheada de modas efémeras e experimentações equívocas. Home, Before and After, o seu oitavo álbum de estúdio, aí está para confirmar a serena fidelidade a padrões criativos muito pessoais, algures entre um barroquismo contido e uma suave contaminação por elementos folk — tudo tratado através de uma voz, não propriamente invulgar, mas que sabe preservar as singularidades de um peculiar gosto narrativo.
Eis o tema de abertura do álbum — Becoming All Alone —, primeiro no lyric video correspondente ao registo agora editado, depois, apenas com piano, em The Late Show, com Stephen Colbert.
São dois belos exemplos das novas aventuras musicais e poéticas de Spektor.





Ziggy Stardust, 50 anos
— SOUND + VISION [FNAC, hoje]

O álbum Ziggy Stardust and the Spiders from Mars surgiu em 1972, faz agora 50 anos — na próxima sessão SOUND + VISION, na FNAC, revisitamos imagens e sons daquela que continua a ser a personagem mais lendária de David Bowie e um dos ícones da história do rock.

>>> FNAC, Chiado — hoje, 25 junho (17h00).

sexta-feira, junho 24, 2022

Ziggy Stardust, 50 anos [11/11]

Foi a 16 de junho de 1972 que surgiu The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, álbum em que David Bowie inventava a sua personagem mais mítica, redefinindo a carreira e, mais do que isso, abrindo um capítulo do rock consagrado às possibilidades de permanente discussão da identidade artística, pública e privada. São 11 canções, aqui metodicamente recordadas — esta é a décima primeira, Rock'n'Roll Suicide.

[ 1 ]  [ 2 ]  [ 3 ]  [ 4 ]  [ 5 ]  [ 6 ]  [ 7 ]  [ 8 ]  [ 9 ]  [ 10 ]

Time takes a cigarette, puts it in your mouth
You pull on your finger, then another finger, then your cigarette
The wall-to-wall is calling, it lingers, then you forget
Ohhh, you're a rock 'n' roll suicide

You're too old to lose it, too young to choose it
And the clock waits so patiently on your song
You walk past a cafe but you don't eat when you've lived too long
Oh, no, no, no, you're a rock 'n' roll suicide

Chev brakes are snarling as you stumble across the road
But the day breaks instead so you hurry home
Don't let the sun blast your shadow
Don't let the milk float ride your mind
They're so natural - religiously unkind

Oh no love! you're not alone
You're watching yourself but you're too unfair
You got your head all tangled up but if I could only make you care
Oh no love! you're not alone
No matter what or who you've been
No matter when or where you've seen
All the knives seem to lacerate your brain
I've had my share, I'll help you with the pain
You're not alone
Just turn on with me and you're not alone
Let's turn on with me and you're not alone
Let's turn on and be not alone
Gimme your hands cause you're wonderful
Gimme your hands cause you're wonderful
Oh gimme your hands.




>>> A canção tal como foi interpretada no espectáculo final de Ziggy Stardust, a 3 de julho de 1973, no Hammersmith Odeon (Londres). As imagens pertencem ao filme que regista esse espectáculo, Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, de D. A. Pennebaker (lançado em 1979).


>>> Tóquio, 1990.
 

EUA: o fim do direito constitucional ao aborto

supremecourt.gov

Eis o discurso de Joe Biden [24 junho, 17h00], reagindo à decisão do Supremo Tribunal dos EUA, revertendo a decisão do caso Roe v. Wade (1973), pondo fim ao direito constitucional ao aborto. Segundo o presidente norte-americano, "o Supremo Tribunal retirou expressamente um direito constitucional ao povo americano — não o limitaram, simplesmente retiraram-no."

terça-feira, junho 21, 2022

Beyoncé — nova canção, novo álbum

A nova canção de Beyoncé intitula-se Break My Soul e serve de anúncio de um álbum, Renaissance, com lançamento marcado para 29 de julho — eis o lyric video. Segundo artigo da British Vogue, o novo registo está marcado por um "exuberante retro-futurismo".

Ziggy Stardust, 50 anos [10/11]

Foi a 16 de junho de 1972 que surgiu The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, álbum em que David Bowie inventava a sua personagem mais mítica, redefinindo a carreira e, mais do que isso, abrindo um capítulo do rock consagrado às possibilidades de permanente discussão da identidade artística, pública e privada. São 11 canções, aqui metodicamente recordadas — esta é a décima, Suffragette City.

[ 1 ]  [ 2 ]  [ 3 ]  [ 4 ]  [ 5 ]  [ 6 ]  [ 7 ]  [ 8 ]  [ 9 ]

Hey man, oh leave me alone you know
Hey man, oh Henry, get off the phone, I gotta
Hey man, I gotta straighten my face
This mellow thighed chick just put my spine out of place
Hey man, my schooldays insane
Hey man, my work's down the drain
Hey man, well she's a total blam-blam
She said she had to squeeze it but she then she

Oh don't lean on me man, 'cause you can't afford the ticket
I'm back on Suffragette City
Oh don't lean on me man
'Cause you ain't got time to check it
You know my Suffragette City
Is outta sight she's all right

Hey man, oh Henry, don't be unkind, go away
Hey man, I can't take you this time, no way
Hey man, droogie don't crash here
There's only room for one and here she comes, here she comes

Oh don't lean on me man, 'cause you can't afford the ticket
I'm back on Suffragette City
Oh don't lean on me man
'Cause you ain't got time to check it
You know my Suffragette City
Is outta sight she's all right

Oh hit me

Oh don't lean on me man, 'cause you can't afford the ticket
...

segunda-feira, junho 20, 2022

Pomme: nova canção

A francesa Pomme tem uma nova canção, Nelly, recordando o destino trágico da escritora canadiana Nelly Arcan (1973-2009): um misto de confessionalismo e teatralidade, sustentado por um admirável teledisco — a canção integrará o terceiro álbum de Pomme, Consolation, agendado para 26 de agosto.
 

Ziggy Stardust, 50 anos [9/11]

Foi a 16 de junho de 1972 que surgiu The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, álbum em que David Bowie inventava a sua personagem mais mítica, redefinindo a carreira e, mais do que isso, abrindo um capítulo do rock consagrado às possibilidades de permanente discussão da identidade artística, pública e privada. São 11 canções, aqui metodicamente recordadas — esta é a nona, Ziggy Stardust.

[ 1 ]  [ 2 ]  [ 3 ]  [ 4 ]  [ 5 ]  [ 6 ]  [ 7 ]  [ 8 ]

Ziggy played guitar
Jamming good with Weird and Gilly
And the Spiders from Mars
He played it left hand
But made it too far
Became the special man
Then we were Ziggy's band

Ziggy really sang
Screwed-up eyes and screwed-down hairdo
Like some cat from Japan
He could lick 'em by smiling
He could leave 'em to hang
They came on so loaded, man
Well-hung and snow-white tan

So where were the spiders
While the fly tried to break our bones?
With just the beer light to guide us
So we bitched about his fans
And should we crush his sweet hands?

Ziggy played for time
Jiving us that we were voodoo
The kids were just crass
He was the nazz
With God-given ass
He took it all too far
But, boy, could he play guitar


Making love with his ego
Ziggy sucked up into his mind, ah
Like a leper messiah
When the kids had killed the man
I had to break up the band



>>> A canção tal como foi interpretada no espectáculo final de Ziggy Stardust, a 3 de julho de 1973, no Hammersmith Odeon (Londres). As imagens pertencem ao filme que regista esse espectáculo, Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, de D. A. Pennebaker (lançado em 1979).

Vieirarpad
— elogio da pintura e dos seus bichos

Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes:
escrever, pintar, filmar

Tendo como base a correspondência entre Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, no período 1932-1961, o documentário Vieirarpad, realizado por João Mário Grilo, convoca-nos para uma viagem fascinante na intimidade da pintura — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 junho).

O lançamento do documentário Vieirarpad, de João Mário Grilo, acontece num contexto em que a dinâmica do mercado cinematográfico passou a estar marcada por desequilíbrios brutais que os agentes políticos e culturais nem sempre têm mostrado disponibilidade para reconhecer. Exemplo esclarecedor: de acordo com o portal Sapo, o filme surgirá, para já, em nove salas do país; entretanto, consultando os números oficiais do Instituto do Cinema e do Audiovisual, ficamos a saber que, na semana passada, Top Gun: Maverick foi lançado em 147 ecrãs.
Há um misto de desinformação e má fé que levará a concluir (?) que o crítico está a sugerir que Vieirarpad deveria ter o mesmo enquadramento comercial da mais recente aventura de Tom Cruise. Enfim, não é fácil (do meu ponto de vista, é quase impossível) desmontar o simplismo argumentativo que, há muitas décadas, alimenta estes debates de coisa nenhuma, por vezes ampliados pelo vício mediático das falsas polémicas.
Simplificando (até porque simplicidade não é o mesmo que simplismo), lembremos apenas que os valores culturais dominantes — de que o marketing ligado aos grandes estúdios americanos é um instrumento poderosíssimo — tendem a secundarizar um objecto como Vieirarpad e a sua belíssima ousadia criativa. Nada disto, entenda-se, contraria o facto de o crítico continuar a reconhecer a admirável criatividade do cinema “made in USA”, incluindo alguns títulos de Tom Cruise… mas como diria Billy Wilder: “Isso é outra história!”

Palavras íntimas

O fascínio de Vieirarpad começa no seu título. Resulta, como é óbvio, da conjugação de Vieira e Arpad, ou seja, Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) e Arpad Szenes (1897-1985). Na origem do projecto está uma exposição intitulada “Escrita Íntima” (2014), acompanhada de um livro com o mesmo título, reunindo a correspondência entre os dois artistas trocada no período 1932-1961. Produzido por Fernando Centeio (ZulFilmes), integra depoimentos, entre outros, de Marina Bairrão Ruivo, directora do Museu Arpad Szènes-Vieira da Silva, da museóloga Raquel Henriques da Silva e do galerista Jean-François Jaeger.
A fusão dos nomes consagrada no título envolve uma poética amorosa que está para além (talvez aquém) das cumplicidades estéticas — sem esquecer que cada um dos pintores foi frequentemente retratado pelo outro (sobretudo Vieira por Arpad). Dito de outro modo: sendo uma metódica redescoberta do trabalho dos dois artistas, Vieirarpad é também uma viagem através das palavras que trocaram nesse outro universo de radical intimidade que pode ser a escrita.
Lidas por Luís Lucas, Suzana Borges e Fernanda Lapa, as cartas de Vieirarpad renascem, assim, como pontuações biográficas que estão para lá de qualquer noção académica de testemunho de uma vida comum (o que, entenda-se, já não seria pouco). Através da via epistolar, Vieira e Arpad vão preenchendo o espaço e, num certo sentido, recriando o tempo das suas separações: as cartas desenham novas paisagens afectivas capazes de acolher os gestos amorosos feitos de palavras mais fortes que qualquer distância.
Há em tudo isso a carinhosa animalidade de quem inventa com o outro — e para o outro — o pudico jardim de uma nova zoologia. O tratamento de “bicho” e “bichinho” vai pontuando as cartas como matéria de uma gramática que se liberta de qualquer sistema corrente de linguagem e comunicação. Ponto importante na revisitação de tais memórias é a recuperação de alguns extractos de outro magnífico documentário sobre Vieira e Arpad: Ma Femme Chamada Bicho (1978), de José Álvaro Morais.

A paixão da arte

Sendo um objecto relativamente solitário no actual panorama da distribuição/exibição cinematográfica, o filme de João Mário Grilo tem boa companhia na história do cinema português. Para nos ficarmos pela referência tutelar de Manoel de Oliveira, recordemos as suas curtas-metragens O Pintor e a Cidade (1956) e As Pinturas do Meu Irmão Júlio (1965), respectivamente sobre os trabalhos de António Cruz e Júlio/Saúl Dias, irmão de José Régio.
Sabemos, aliás, que as relações de cinema e pintura são inúmeras e multifacetadas — da dimensão épica de Andrei Rublev (1966), de Andrei Tarkovsky, à biografia anti-romântica de Francis Bacon em Love Is the Devil (1998), de John Maybury, passando pelo esplendor de A Vida Apaixonada de Van Gogh (1956), de Vincente Minnelli, a especulação filosófica de Paixão (1982), de Jean-Luc Godard, ou a perturbante vibração sensorial de Van Gogh (1991), de Maurice Pialat. São, sobretudo, relações capazes de convocar o olhar do espectador para algo mais do que a mera confirmação do lugar histórico ou do valor simbólico de determinado pintor.
Escusado será dizer que na delicada depuração narrativa de Vieirarpad acompanhamos uma relação com a pintura em que o trabalho artístico, muito mais do que suporte de uma qualquer “mensagem”, decorre de um entendimento específico da vida, da arte de viver. Como escreve Arpad: “Não te deixes dominar por nenhuma paixão política, a nossa é a arte.”

domingo, junho 19, 2022

Ziggy Stardust, 50 anos [8/11]

Foi a 16 de junho de 1972 que surgiu The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, álbum em que David Bowie inventava a sua personagem mais mítica, redefinindo a carreira e, mais do que isso, abrindo um capítulo do rock consagrado às possibilidades de permanente discussão da identidade artística, pública e privada. São 11 canções, aqui metodicamente recordadas — esta é a oitava, Hang on to Yourself.

[ 1 ]  [ 2 ]  [ 3 ]  [ 4 ]  [ 5 ]  [ 6 ]  [ 7 ]

Oh, she's a tongue twisting storm
Comes to the show tonight
Praying to the light machine
She wants my honey not my money
She's a funky-thigh collector
Laying on the 'lectric dream

Come on, come on
We really got a good thing going
Come on, come on
If you think we're gonna make it
You better hang on to yourself

We can't dance, we don't talk much, we just ball and play
Then we move like tigers on Vaseline
Well, the bitter comes out better on a stolen guitar
You're the blessed, we're the Spiders From Mars

Come on, come on
...

sábado, junho 18, 2022

Jean-Louis Trintignant, título a título

[Libération, 18/19 junho]

Recordando Jean-Louis Trintigant, antes do mais através de um dos seus filmes mais esquecidos, que é também um dos clássicos gerados pelo chamado "western spaghetti": O Grande Silêncio (1968), de Sergio Corbucci (em França: Le Grand Silence). E contaminando a própria actualidade política pela memória do actor: Vivement Dimanche! é o título original de Finalmente Domingo! (1983), derradeira realização de François Truffaut.
Escrever é também nomear o mundo através das palavras que herdámos.

>>> Trailers de O Grande Silêncio e Finalmente Domingo!.



Jean-Louis Trintignant (1930 - 2022)


Figura emblemática e universal das últimas sete décadas do cinema francês, o actor Jean-Louis Trintignant faleceu no dia 17 de junho, na sua casa de Uzès, na região de Gard — contava 91 anos.
Até o vimos a fazer western spaghetti... É verdade, aliás num clássico do género: O Grande Silêncio (1968), de Sergio Corbucci. Habitado por uma timidez radical [Le Monde], de algum modo "resolvida" de modo criativo através do trabalho no teatro (estreou-se nos palcos em 1951), a carreira de Trintignant pode ser balizada por duas Palmas de Ouro de Cannes: Um Homem e uma Mulher (1966), de Claude Lelouch, e Amor (2012), de Michael Haneke — ambos também vencedores do Oscar de melhor filme estrangeiro (em representação da França e da Áustria, respectivamente). Também em Cannes, ganhou um prémio de interpretação graças a Z - A Orgia do Poder (1969), de Costa-Gavras.
Vimo-lo em E Deus Criou a Mulher (1958), contracenando com Brigitte Bardot, sob a direcção de Roger Vadim, garantindo que o romantismo (não) estava morto; ou em A Ultrapassagem (1962), de Dino Risi, com Vittorio Gasmann, viajando pelo desencanto da sociedade de consumo; ou ainda no derradeiro filme de François Truffaut, Finalmente Domingo! (1983), ao lado de Fanny Ardant, procurando os restos do romantismo na euforia do policial. Em Os Melhores Anos da Nossa Vida (2019), Lelouch voltou a filmar as personagens de Um Homem e uma Mulher, refazendo o par interpretado por Trintignant e Anouk Aimée, de algum modo iluminando o segredo existencial da arte subtil de Trintignant: saber envelhecer. E deixar que as câmaras registassem o discreto esplendor dessa aventura demasiado humana.

>>> A Minha Noite em Casa de Maud (1969), de Eric Rohmer.
 

>>> O Conformista (1970), de Bernardo Bertolucci.


>>> Três Cores: Vermelho (1994), de Krzysztof Kieslowski.
 

>>> Quem Me Amar Irá de Comboio (1998), de Patrice Chéreau.
 

>>> Em 2018, no Théatre des Celestins (Lyon), com o espectáculo Trintignant Mille Piazzolla.


>>> Obituário no jornal The Guardian.
>>> Jean-Louis Trintignant no site New Wave Film.

sexta-feira, junho 17, 2022

Blonde — o trailer

Será, no mínimo, uma das grandes apostas da Netflix para a próxima temporada de prémios: Blonde, com Ana de Armas no papel de Marilyn Monroe, adapta o livro homónimo de Joyce Carol Oates; a realização tem assinatura de Andrew Dominik e este é o primeiro trailer — o filme chega a 23 de setembro.

quinta-feira, junho 16, 2022

Ego [citação]

>>> Alguns sentimentos caíam em desuso, porque já não os sentíamos, porque parecia absurdo senti-los, reservados a épocas menos desenvolvidas e a populações enganadas, tais como o patriotismo e a honra. A "vergonha", invocada a propósito de tudo, já não era a mesma, era apenas uma humilhação provisória, uma ferida momentânea no ego — o respeito era, sobretudo, uma exigência do reconhecimento desse ego por parte dos outros. Já não se ouvia dizer "bondade" e "bons rapazes". Ter orgulho no que se faz era substituído por ter orgulho no que se é: mulher, gay, provinciano, judeu, árabe, etc.

ANNIE ERNAUX
(Livros do Brasil, 2020)

Ziggy Stardust, 50 anos [7/11]

Foi a 16 de junho de 1972 que surgiu The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, álbum em que David Bowie inventava a sua personagem mais mítica, redefinindo a carreira e, mais do que isso, abrindo um capítulo do rock consagrado às possibilidades de permanente discussão da identidade artística, pública e privada. São 11 canções, aqui metodicamente recordadas — esta é a sétima, Star.

[ 1 ]  [ 2 ]  [ 3 ]  [ 4 ]  [ 5 ]  [ 6 ]

Johnny went to fight in Belfast
Rudi stayed at home to starve
I could make it all worthwhile
As a rock & roll star
Bevan tried to change the nation
Sonny wants to turn the world, well he can tell you that
He tried
I could make a transformation as a rock & roll star

So inviting, so enticing to play the part
I could play the wild mutation
As a rock & roll star
I could do with the money
I'm so wiped out with things as they are
I'd send my photograph to my honey - and I'd c'mon like
A regular superstar

I could make a transformation as a rock & roll star

So inviting - so enticing to play the part
...

I could fall asleep at night
As a rock & roll star
I could fall in love all right
As a rock & roll star


Ziggy Stardust, 50 anos [6/11]

Foi a 16 de junho de 1972 que surgiu The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, álbum em que David Bowie inventava a sua personagem mais mítica, redefinindo a carreira e, mais do que isso, abrindo um capítulo do rock consagrado às possibilidades de permanente discussão da identidade artística, pública e privada. São 11 canções, aqui metodicamente recordadas — esta é a sexta, Lady Stardust.

[ 1 ]  [ 2 ]  [ 3 ]  [ 4 ]  [ 5 ]

People stared at the makeup on his face
Laughed at his long black hair, his animal grace
The boy in the bright blue jeans
Jumped up on the stage
Lady Stardust sang his songs
Of darkness and disgrace

And he was alright, the band was altogether
Yes, he was alright, the song went on forever
Yes, he was awful nice
Really quite out of sight
And he sang all night long

Femme fatales emerged from shadows
To watch this creature fair
Boys stood upon their chairs
To make their point of view
I smiled sadly for a love
I could not obey
Lady Stardust sang his songs
Of darkness and dismay

And he was alright, the band was altogether
Yes, he was alright, his song went on forever
And he was awful nice
Really quite paradise
And he sang all night, all night long

Oh, how I sighed when they asked if I knew his name
Oh, that was alright, the band was altogether
...

quarta-feira, junho 15, 2022

Ziggy Stardust, 50 anos [5/11]

Foi a 16 de junho de 1972 que surgiu The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, álbum em que David Bowie inventava a sua personagem mais mítica, redefinindo a carreira e, mais do que isso, abrindo um capítulo do rock consagrado às possibilidades de permanente discussão da identidade artística, pública e privada. São 11 canções, aqui metodicamente recordadas — esta é a quinta, It Ain't Easy.

[ 1 ]  [ 2 ]  [ 3 ]  [ 4 ]

When you climb to the top
Of the mountain
Look out over the sea

Think about
The places perhaps
Where a young man could be

Then you jump back down
To the rooftops
Look out over the town

Think about
All of the strange things
Circulating 'round

It ain't easy, it ain't easy
It ain't easy to get to Heaven
When you're going down

Well, all the people
Have got their problems
That ain't nothing new

With the help of the good Lord
We can all pull on through
We can all pull on through

Get there in the end
Sometimes it'll take you right up
And sometimes down again
 
It ain't easy, it ain't easy
...

Satisfaction
Satisfaction
Keep me satisfied

I've got the love
Of a hoochie koochie woman
She calling from inside

She's a calling from inside
Trying to get to you
All the woman really wants
You can give her something too

It ain't easy, it ain't easy
...

terça-feira, junho 14, 2022

Philip Baker Hall (1931 - 2022)

Com o seu ar de Roland Barthes reencarnado em paisagens do "noir" americano, Philip Baker Hall foi um exemplo modelar do tradicional character actor de Hollywood: vitimado por um enfisema pulmonar, faleceu no dia 12 de junho na sua casa de Glendale, California — contava 90 anos.
A sua sóbria, sempre enigmática, capacidade de interpretação teve especial valorização na obra de Paul Thomas Anderson, a começar pela sua primeira longa-metragem, Hard Eight, revelada, ainda com o título Sydney, na secção "Un Certain Regard", do Festival de Cannes de 1996, nunca estreada nas salas portuguesas (editada em video como Passado Sangrento); surgiu depois em Boogie Nights - Jogos de Prazer (1997) e Magnolia (1999).
Entre os títulos marcantes da sua filmografia, incluem-se ainda The Truman Show - A Vida em Directo (1998), de Peter Weir, O Informador (1999), de Michael Mann, O Talentoso Mr. Ripley (1999), de Anthony Minghella, Dogville (2003), de Lars von Trier, e Zodiac (2007), de David Fincher. Também com uma longa carreira televisiva, teve os seus papéis mais populares nas séries Seinfeld (1991-98) e Uma Família Muito Moderna (2011-12).

>>> Abertura de Hard Eight, com John C. Reilly.
 

>>> Com Jerry Seinfeld (terceira temporada, episódio 22).
 

>>> Obituário na Variety.

segunda-feira, junho 13, 2022

O paraíso segundo a Volkswagen

Assim vai o mundo. E também o paraíso. Um recente anúncio da Volkswagen (proveniente dos seus representantes na África do Sul) dá-nos a conhecer um determinado ambiente de trabalho (o inferno, bem entendido) para se concentrar numa personagem que se liberta graças ao seu automóvel... A sinopse diz mesmo que estamos perante a "encarnação da liberdade, tenaz independência e do impulso para a libertação."
Motivador, sem dúvida. Com uma promessa de duvidosa gratificação: no final, o automóvel anda por estradas desertas e tudo parece passar-se num planeta sem qualquer outro ser humano... Não se pode ter tudo, claro.

Ziggy Stardust, 50 anos [4/11]

Foi a 16 de junho de 1972 que surgiu The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, álbum em que David Bowie inventava a sua personagem mais mítica, redefinindo a carreira e, mais do que isso, abrindo um capítulo do rock consagrado às possibilidades de permanente discussão da identidade artística, pública e privada. São 11 canções, aqui metodicamente recordadas — esta é a quarta, Starman.

[ 1 ]  [ 2 ]  [ 3 ]

domingo, junho 12, 2022

Andrew Bird, Opus 14

Dois anos depois de Hark!, aí está o 14º álbum de estúdio, a solo, de Andrew Bird: Inside Problems é mais uma eloquente demonstração do talento do violinista mais ligado ao indie rock, ou do criador pop mais fiel às matrizes clássicas. Com um cartão de visita, Make a Picture, recheado de nostalgia cinéfila, devidamente abençoada pelo mundo felino.
 

sábado, junho 11, 2022

Julee Cruise (1956 - 2022)

Popularizada pelo seu trabalho com David Lynch, a cantora americana Julee Cruise faleceu no dia 9 de junho, contava 65 anos. Segundo informações prestadas pelo marido, Edward Grinnan, Cruise suicidou-se — sofria de lupus eritematoso sistémico, doença autoimune que provoca dores intensas e incapacidade de caminhar; nas palavras de Grinnan, "deixou este mundo de acordo com os seus próprios termos".
O quarto e último álbum de Cruise, My Secret Life, foi lançado em 2011. Apesar da visibilidade de alguns capítulos da sua carreira — nomeadamente a digressão que fez com os B-52 (substituindo Cindy Wilson) e a participação no musical da Broadway Return to the Forbidden Planet —, foi a colaboração com Lynch que mais contribuiu para definir a sua imagem artística como representante do chamado "dream pop". Exemplares disso mesmo são:
Falling, canção-tema da série Twin Peaks (1990-91);
— o envolvimento, como autora e intérprete, em Industrial Symphony: Nº 1 (1990), produção teatral concebida por Lynch e Angelo Badalamenti;
— as interpretações da personagem de uma cantora no filme Twin Peaks: Fire Walk with Me (1992) e na série Twin Peaks: The Return (2017).
O seu primeiro álbum, Floating Into the Night (1989), foi produzido por Lynch/Badalamenti, integrando Falling e outros temas que surgem em Twin Peaks — é frequentemente encarado como uma espécie de banda sonora "oficiosa" da série. Em qualquer caso, uma das suas canções, Mysteries of Love, existia já em 1986, ano em que surgiu na banda sonora de outro filme de Lynch, Veludo Azul.

>>> Falling, num programa da televisão sueca, em 1990.


>>> Your Girl (c/ DJ Dmitry), do álbum My Secret Life.
 

>>> Obituário na Variety.

Ziggy Stardust, 50 anos [3/11]

Foi a 16 de junho de 1972 que surgiu The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, álbum em que David Bowie inventava a sua personagem mais mítica, redefinindo a carreira e, mais do que isso, abrindo um capítulo do rock consagrado às possibilidades de permanente discussão da identidade artística, pública e privada. São 11 canções, aqui metodicamente recordadas — esta é a terceira, Moonage Daydream.

[ 1 ]  [ 2 ]

I'm an alligator
I'm a mama-papa comin' for you
I'm the space invader
I'll be a rock 'n' rollin' bitch for you
Keep your mouth shut
You're squawking like a pink monkey bird
And I'm bustin' up my brains for the words

Keep your 'lectric eye on me, babe
Put your ray gun to my head
Press your space face close to mine, love
Freak out in a moonage daydream, oh yeah!

Don't fake it baby, lay the real thing on me
The church of man, love
Is such a holy place to be
Make me baby, make me know you really care
Make me jump into the air
 
Keep your 'lectric eye on me, babe
Put your ray gun to my head
Press your space face close to mine, love
Freak out in a moonage daydream, oh yeah!
...
Freak out, far out, in out