segunda-feira, fevereiro 28, 2022

Shakespeare, teatro e cinema [8/10]

[ A Tragédia de Macbeth ]  [ Henrique V ]  [ Júlio César ]  [ Trono de Sangue ]  [ As Badaladas da Meia-Noite ]
[ Macbeth ] [ À Procura de Ricardo III ]


O que é que a música rock tem a ver com o teatro "shakespeariano”? Para o australiano Baz Luhrmann, são dois modos diferentes, mas cúmplices, de conjugar a mesma vertigem romântica. Sem prejuízo de, para mais, tudo acontecer entre duas famílias rivais, não de Verona, mas de Verona Beach, cujos gangs, armas de fogo e automóveis parecem saídos de um policial da década de 1970. De tal modo que esta versão da peça mais universal de Shakespeare se mantém obsessivamente fiel ao texto, ao mesmo tempo que preenche a sua banda sonora com temas de grupos como os Garbage, The Cardigans ou The Wannadies. Escusado será dizer que os resultados são bem diferentes das mais célebres versões anteriores, incluindo as de 1936 e 1968, assinadas, respectivamente, por George Cukor e Franco Zeffirelli. Consagrando os seus intérpretes principais — Leonardo DiCaprio e Claire Danes —, Luhrmann transfigurou Shakespeare em arauto da cultura pop.

domingo, fevereiro 27, 2022

sábado, fevereiro 26, 2022

A IMAGEM: Visar Kryeziu, 2022

VISAR KRYEZIU
Roupa é oferecida a refugiados acabados de chegar
ao posto fronteiriço de Medyka, na Polónia
Le Monde, 26 fev. 2022

quinta-feira, fevereiro 24, 2022

Memória de Gary Brooker

Vocalista dos Procol Harum, pianista, compositor, o inglês Gary Brooker faleceu no dia 19 de fevereiro, vítima de cancro — contava 76 anos. A canção A Whiter Shade of Pale, lançada em 1967, ficou como lendário emblema da banda, mas está longe de poder resumir a actividade de Brooker. Para lá dos álbuns em nome pessoal, ele foi também companheiro de diversas aventuras musicais, colaborando, por exemplo, com George Harrison (All Things Must Pass, 1970), ou Kate Bush (The Red Shoes, 1993). Do seu primeiro registo a solo, No More Fear of Flying, datado de 1979, eis o tema-título, numa gravação televisiva do mesmo ano.


>>> Obituário em The Guardian.
>>> Site independente dedicado aos Procol Harum.

Memória de Mark Lanegan

Figura lendária da música de Seattle, pioneiro do grunge como elemento dos Screaming Trees, mais tarde membro dos Queens of the Stone Age, o cantor e compositor Mark Lanegan faleceu no dia 22 de fevereiro — contava 57 anos. A sua história confunde-se com as convulsões de todo um capítulo da música rock em que a rudeza poética dos sons se confunde com um desafio dos limites do factor humano. Eis um bom exemplo da sua peculiar energia: Bed of Roses (1991), dos Screaming Trees.


>>> Obituário em The Seattle Times.
>>> Site oficial de Mark Lanegan.

O realismo aqui e agora

Realismo dos lugares e das personagens

Descerrando os Punhos reflecte uma lógica realista que, em anos recentes, tem marcado filmes de origens geográficas e culturais muito diversas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 fevereiro).

O cinema possui a capacidade de nos fazer participar do desconhecido — como se lá estivéssemos… Enfim, não todo o cinema, mas alguns filmes que sabem enraizar-se numa conjuntura particular para lhe conferir a intensidade e as emoções do universal. Assim é Descerrando os Punhos, de Kira Kovalenko. Assim é, em particular, Ada, uma jovem a viver entre um emprego precário e a frieza autoritária do pai, composta pela notável estreante que é Milana Aguzarova (foi uma das grandes revelações de Cannes/2021).
Estamos perante mais uma manifestação exemplar de uma lógica realista que, em anos recentes, tem marcado filmes de origens geográficas e culturais muito diversas. A par de Kovalenko, lembremos, também na Rússia, dois títulos admiráveis de Kantemir Balagov: Tesnota (2017) e Violeta (2019).
O realismo, entenda-se, nada tem que ver com a estética pueril, misto de aceleração e “voyeurismo”, a que as linguagens dominantes do espaço televisivo nos habituaram. A sua construção começa, não na mera reprodução (um olhar não reproduz o que quer que seja, elabora uma visão), mas sim no estabelecimento de uma relação.
Relação com quê? Pois bem, com o lugar que se filma e, claro, com as personagens e os seus intérpretes. Somos, assim, conduzidos ao interior da região da Ossétia (onde Kovalenko cresceu) como quem descobre um cenário habitado por uma instabilidade que começa por resistir a qualquer decifração. Descerrando os Punhos vai-se consolidando através da agilidade de uma câmara paradoxal: por um lado, tudo se passa como se estivéssemos a assistir a uma reportagem apostada em desvendar uma realidade labiríntica; por outro lado, os movimentos dessa câmara são sempre conduzidos (e, de algum modo, justificados) pela “colagem” aos corpos dos actores.
Este é, enfim, um realismo eminentemente físico, enredado num aqui e agora que o cinema parece revelar em estado nascente — tão estranho e tão íntimo. Para usarmos uma expressão ligada à cinefilia, apetece dizer: tão longe, tão perto.

quarta-feira, fevereiro 23, 2022

Shakespeare, teatro e cinema [7/10]

[ A Tragédia de Macbeth ]  [ Henrique V ]  [ Júlio César ]  [ Trono de Sangue ]  [ As Badaladas da Meia-Noite ]
[ Macbeth ]


Não exactamente uma adaptação de Shakespeare, antes uma reflexão sobre o desafio de encenar Ricardo III. Na dupla condição de actor e realizador, Al Pacino assina um filme a meio caminho entre as exigências do palco e o documentário cinematográfico. Cruzam-se, assim, o registo de uma representação da peça e diversas conversas do próprio Pacino com uma impressionante galeria de actores: Penelope Allen, Alec Baldwin, Vanessa Redgrave, Winona Ryder e Kevin Spacey são alguns dos convocados para esta aventura que tem tanto de pedagogia teatral como de reflexão filosófica sobre a herança “shakespeariana”. No limite, trata-se de avaliar a presença dessa herança na cultura popular, a ponto de Pacino combinar os depoimentos dos seus pares com breves entrevistas de rua a cidadãos anónimos.

terça-feira, fevereiro 22, 2022

The Kills, The Last Goodbye

The Last Goodbye, de The Kills, faz 10 anos — eis um bom pretexto para uma efeméride. Mas não precisamos sequer de evocar a efeméride para ver/ouvir Alison Mosshart e Jamie Hince: este é o respectivo teledisco, dirigido por Samantha Morton.
 

segunda-feira, fevereiro 21, 2022

Shakespeare, teatro e cinema [6/10]

[ A Tragédia de Macbeth ]  [ Henrique V ]  [ Júlio César ]  [ Trono de Sangue ]  [ As Badaladas da Meia-Noite ]

1971. MACBETH

Este é o primeiro filme que Roman Polanski realizou depois do assassinato de sua mulher, a actriz Sharon Tate, pelo gang de Charles Manson: daí que a sua encenação muito crua da violência física tenha sido frequentemente descrita como um processo catártico do realizador. Em qualquer caso, encontramos aqui o rigor de uma visão contundente dos fantasmas da dimensão humana, obviamente já presente em Repulsa (1965) ou A Semente do Diabo (1968). Daí também o jogo calculado entre a teatralidade dos diálogos e o realismo das situações, num ziguezague de emoções que encontra a sua expressão exemplar no trabalho de Jon Finch e Francesca Annis, intérpretes do casal Macbeth — um ano mais tarde, Finch seria o protagonista de Frenzy-Perigo na Noite, penúltimo filme de Alfred Hitchcock.

As coisas concretas
segundo Steve Schapiro

A história de Hollywood nas décadas de 1960/70 conta-se também através de algumas fotografias carregadas de simbolismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 janeiro).

Falecido no dia 15 de janeiro, contava 87 anos, o americano Steve Schapiro é um daqueles fotógrafos que recordamos, não apenas pela excelência das suas imagens, mas também através das memórias históricas que nelas estão inscritas. A começar por alguns momentos emblemáticos do combate pelos direitos civis dos afro-americanos na década de 1960, em particular as marchas entre as cidades de Selma e Montgomery, em 1965, em defesa do direito universal de voto. Foi nesse contexto que Schapiro obteve algumas das mais célebres fotografias de Martin Luther King, num registo realista que nunca foi incompatível com o valor iconográfico e a dimensão mitológica — esse material integra uma edição recente do livro The Fire Next Time (Taschen, 2017), de James Baldwin.
Porventura mais esquecido é o capítulo da vida profissional de Schapiro em que ele se moveu nos bastidores da produção cinematográfica, tendo mesmo, durante alguns anos, trabalhado sob contrato para os estúdios Paramount. Aliás, não se trata tanto de esquecimento como de um desconcertante apagamento “autoral”. Schapiro é, afinal, responsável por algumas das imagens mais fortes de Hollywood nas décadas de 1960/70, imagens que, no seu “anonimato”, passaram a integrar o património iconográfico da época — lembremos o exemplo do retrato de Marlon Brando acariciando um gato no papel de Vito Corleone, em O Padrinho (1972), de Francis Ford Coppola.
Para compreendermos a importância informativa e o valor simbólico de tais imagens, será importante recordar que a sua simples existência decorria de práticas criativas e promocionais que, infelizmente, a partir da década de 1990, os grandes estúdios foram abandonando, cada vez mais cedendo à “facilidade” dos registos digitais. A produção de fotografias das rodagens — normalmente distribuídas à imprensa em tiragens em papel, a preto e branco — era mesmo uma regra essencial na definição do “look” de cada filme.
No limite, tais fotografias podiam adquirir a dimensão de testemunho das convulsões do próprio imaginário cinéfilo, como aconteceu com o espantoso “portfolio” obtido durante a rodagem do derradeiro filme de Marilyn Monroe — Os Inadaptados (1961), de John Huston, com argumento de Arthur Miller —, resultante do trabalho de vários fotógrafos da agência Magnum, incluindo Henri Cartier-Bresson, Eve Arnold, Inge Morath, Elliott Erwitt e Ernst Haas.
Além de O Padrinho, Schapiro esteve, por exemplo, nas filmagens de Chinatown (1974), de Roman Polanski, e Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese, mas são as suas fotografias de O Cowboy da Meia-Noite (1969), de John Schlesinger, que nos levam a estabelecer uma ponte entre o classicismo de Hollywood e as muitas e fascinantes convulsões de um tempo em que o conceito financeiro de “blockbuster” ainda não tinha imposto as suas matrizes de produção e difusão.
1969 foi um ano recheado de sugestivos contrastes. Assim, por um lado, Barbra Streisand (que Schapiro também retratou) protagonizava Hello, Dolly!, de Gene Kelly, empreendimento ainda ligado às glórias clássicas do género musical; por outro lado, Easy Rider, de Dennis Hopper, dir-se-ia um “western” virado do avesso, encarnava os temas, angústias e impasses dessa dinâmica de pensamento e acção que entrou para a história com a designação de contra-cultura.
O Cowboy da Meia-Noite começa por seguir a personagem de Joe Buck, empregado na cozinha de um restaurante do Texas que parte para Nova Iorque. O seu programa tradicional — descobrir o Sonho Americano na grande metrópole — vai transfigurar-se numa descida aos infernos em que terá como cúmplice Enrico “Ratso” Rizzo, doente e miserável, a viver de golpes mais ou menos ligados a esquemas de prostituição.
Não apenas pela abordagem muito crua das cenas de sexo, também pela frieza realista de lugares e ambientes, O Cowboy da Meia-Noite era, de facto, um objecto capaz de desafiar as convenções narrativas clássicas, o que não o impediu de arrebatar três Oscars, incluindo o de melhor filme de 1969 (desmentindo o lugar comum moralista segundo o qual a Academia de Hollywood se rege por um inamovível “conservadorismo”). A fotografia do seu cartaz — com Dustin Hoffman e Jon Voight interpretando, respectivamente, Rizzo e Buck — tem assinatura de Schapiro. Nela detectamos a militante paixão pela vibração concreta do mundo, além do mais reflectindo um tempo ainda alheio aos preconceitos contra o preto e branco.

domingo, fevereiro 20, 2022

SOUND + VISION MAGAZINE
— memórias de 1972...

Cabaret, O Padrinho, Paul Simon, Lennon & Yoko, Rolling Stones... foram algumas memórias de 1972 que passaram pela nossa sessão na FNAC Chiado. Aqui ficam algumas das imagens (e sons) que mostrámos, registando, desde já, a data do próximo encontro:

SOUND + VISION MAGAZINE
FNAC Chiado
19 março, 17h00

>>> Deliverance / Fim de Semana Alucinante, de John Boorman (o duelo dos banjos).


>>> Rolling Stones, Sweet Virginia (concerto no Texas, 1972).


>>> Lou Reed, Perfect Day (c/ Anthony — Later..., com Jools Holland, BBC, 2003).

Shakespeare, teatro e cinema [5/10]

[ A Tragédia de Macbeth ]  [ Henrique V ]  [ Júlio César ]  [ Trono de Sangue ]


Este filme de Orson Welles é, por certo, uma dos mais prodigiosas versões da herança teatral de Shakespeare. Não se trata da adaptação de uma peça, mas sim da celebração de uma personagem presente ou citada em várias peças — Sir John Falstaff (que Welles compõe com exuberante comoção) —, amigo muito próximo do Príncipe Hal, futuro rei de Inglaterra; foram utilizados textos provenientes de Henrique IV (Partes 1 e 2), Ricardo II, Henrique V e As Alegres Comadres de Windsor. Das várias incursões “shakespearianas” de Welles (incluindo um Macbeth de 1948), esta era a sua preferida, desde logo porque surgiu como prolongamento de uma experiência teatral, Five Kings (1939), já resultante de um elaborado cruzamento daqueles textos. Financiado por Emiliano Piedra, um produtor espanhol, o filme pertence ao período em que Welles só ia conseguindo montar os seus projectos na Europa — cronologicamente, surgiu entre O Processo (1962), produção franco-italo-germânica, e História Imortal (1968), telefilme francês também difundido nas salas.

sábado, fevereiro 19, 2022

A IMAGEM: Erwin Olaf, 2013

ERWIN OLAF
Keyhole
2013

* "Nascidos em 1972"
— SOUND + VISION na FNAC [hoje, dia 19]

Sábado, dia 17, regressamos ao Chiado para recordarmos os nascidos em 1972 — entenda-se: as memórias artísticas desse ano de admirável profusão criativa. Foi, de facto, um ano de acontecimentos de excepção: O Padrinho e Ziggy Stardust... Liza Minnelli em Cabaret, Aretha Franklin a gravar Amazing Grace... Exile on Main St. dos Rolling Stones... São memórias com meio século de vida e a energia de sempre.

SOUND + VISION MAGAZINE
FNAC Chiado
19 fevereiro, 17h00

Sophie Auster, em tom nostálgico

Depois do som Let's Get Lost, eis que Sophie Auster apresenta o respectivo teledisco: uma aventura que ela define a partir da inspiração cruzada de Veludo Azul e Paris, Texas. À sua maneira, trata-se de um metódico exercício minimalista, já que foi feito com a colaboração de apenas mais três pessoas: o fotógrafo Spencer Ostrander, partilhando a realização com Theodore Rex King, e a estilista Zarlacht Osmanzoi — nostalgia da década de 80.

sexta-feira, fevereiro 18, 2022

Shakespeare, teatro e cinema [4/10]

[ A Tragédia de Macbeth ]  [ Henrique V ]  [ Júlio César ]


Figura central na internacionalização do cinema japonês, Akira Kurosawa foi também um criador seduzido por diversas componentes da cultura ocidental — um dos seus filmes mais premiados, Ran-Os Senhores da Guerra (1985), tem como base O Rei Lear. Quando dirigiu Trono de Sangue (cujo título original se poderá traduzir por “O Castelo Teia de Aranha”) tinha já assinado Os Sete Samurais (1954), um dos títulos míticos do cinema clássico japonês. Deslocando a acção de Macbeth da Escócia para o Japão medieval, o filme distingue-se por uma majestosa encenação dos círculos íntimos do poder, sua sedução, violência e vulnerabilidade. No papel central está um dos actores também mais internacionais de toda a história do cinema japonês: Toshiro Mifune.

Duas ou Três Coisas, Antena 1 [hoje]

Na Antena 1, um novo programa de rádio concebido e apresentado pelos autores deste blog — Duas ou Três Coisas terá a sua primeira edição hoje, sexta-feira, dia 18 (a partir das 23h12).

Isto não é 007

Nobody's perfect...

Jessica Chastain lidera um elenco apostado em refazer James Bond em tom “feminino”: não vem daí mal ao mundo, mas a imaginação cinematográfica está longe de ser brilhante — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 janeiro).

O que significa Agentes 355? Digamos que quando um filme nos faz encalhar na “mensagem” do seu título algo vai mal (no original: The 355). Até porque, lá para o meio da acção, vamos deparar com uma cena, dramaticamente dispensável, em que uma das personagens vem explicar que se trata de um epíteto lendário ligado à história da espionagem no feminino…
Eis a eventual chave da questão: a possibilidade de “mudar o sexo” das histórias de espiões. Não exactamente regressando ao esplendor romântico de outros tempos — lembramo-nos, claro, de Greta Garbo em Mata Hari (1931) —, antes apostando numa derivação algo requentada de James Bond, agora com mulheres a defender a humanidade de uma arma (informática, pois claro) capaz de destruir tudo e mais alguma coisa.
Há aqui um daqueles simplismos ideológicos que, atrevo-me a pensar, os feminismos vários que têm proliferado no recente cinema americano teriam interesse em questionar — e nós com eles. A saber: porque é que um banal filme de espionagem com heróis masculinos passa a ser um manifesto artístico (e, nessa medida, um “statement” moral) quando são mulheres a protagonizar a mesma banalidade?
Enfim, esta descrição pessimista não faz justiça à excelência dos talentos envolvidos. A começar por Jessica Chastain, actualmente em destaque em duas ofertas do “streaming”: a mini-série Scenes from a Marriage (HBO) e o filme Jogo da Alta-Roda (Prime Video). Foi ela que, na dupla condição de actriz e produtora, propôs o conceito de uma variação feminina sobre 007 e a série Missão Impossível ao realizador Simon Kinberg, depois de com ele ter rodado X-Men: Fénix Negra (2019). Chastain e as protagonistas inicialmente escolhidas — Penélope Cruz, Marion Cotillard, Fan Bingbing e Lupita Nyong’o — estiveram mesmo na edição de 2018 do Festival de Cannes para promover o projecto de The 355.
Os resultados são reveladores de uma bizarra insensatez. É verdade que, tentando explorar uma lógica “intimista” que ganhou força nos mais recentes títulos de James Bond — com destaque para os que foram dirigidos por Sam Mendes: Skyfall (2012) e Spectre (2015) —, aqui encontramos alguns momentos de sofisticada vibração emocional, sobretudo a cargo de Chastain e Diane Kruger (que, entretanto, substituíra Cotillard). Mas não é menos verdade que a “obrigação” de tudo pontuar com soluções estereotipados de acção física (?) vai diminuindo as singularidades com que, apesar de tudo, as personagens femininas foram concebidas — ainda que, convenhamos, Penélope Cruz não consiga emprestar verosimilhança à sua terapeuta colombiana envolvida numa operação da CIA…
Nos momentos mais felizes, Agentes 355 faz lembrar um certo misto de drama e ironia que marcou alguns notáveis filmes de espiões feitos há cerca de meio século — penso, por exemplo, em Os Três Dias do Condor (1975), de Sydney Pollack. É pena que o projecto se vá refugiando num estilo convencional que Simon Kinberg aplica com a eficácia de um tarefeiro sem imaginação. Como se prova, é um risco confiar nos homens.

Shakespeare, teatro e cinema [3/10]

[ A Tragédia de Macbeth ]  [ Henrique V ]


Com chancela de um grande estúdio (Metro Goldwyn Mayer), esta produção da idade de ouro de Hollywood nasceu de uma “contradição” que acabou por lhe conferir tanto de estranheza como de fascínio. De facto, a escolha de Marlon Brando para interpretar Marco António era tudo menos óbvia, já que, dois anos antes, em Um Eléctrico Chamado Desejo, sob a direcção de Elia Kazan, ele se afirmara como pioneiro do Actors Studio e das suas técnicas de expressão emocional no interior do cinema americano. Rezam as crónicas que o veterano inglês John Gielgud, intérprete de Cassius, serviu de conselheiro a Brando, afinal integrando-o num elenco de luxo que inclui também James Mason, Deborah Kerr e Louis Calhern (como César). A realização é de um mestre clássico: Joseph L. Mankiewicz.

quinta-feira, fevereiro 17, 2022

Elvis, por Baz Luhrmann

Austin Butler é o novo Elvis — salvo seja, bem entendido... A seu lado está Tom Hanks, no papel do Coronel Parker. Assim será Elvis, o filme de Baz Luhrmann (nove anos depois de O Grande Gatsby). Tendo em conta a data de estreia agora anunciada — 23 de junho — , talvez seja um dos títulos da selecção oficial de Cannes (17-28 maio). Para já, temos um trailer exuberante.

terça-feira, fevereiro 15, 2022

Da fantasia teatral à tragédia social

Bradley Cooper em cenários da Grande Depressão:
uma personagem visceralmente trágica

Sem renegar o seu gosto pelo fantástico, Guillermo del Toro consegue, com Nightmare Alley - Beco das Almas Perdidas, um retrato inesperado e fascinante do tempo da Grande Depressão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 janeiro).

Rezam as crónicas que a primeira adaptação cinematográfica do romance Nightmare Alley, de William Lindsay Greshman, foi recebida com um misto de respeito e estranheza. Lançado em 1947 (um ano depois da publicação do livro), o filme realizado por Edmund Goulding, com Tyrone Power no papel central, encaixava nos modelos do cinema “noir”, mas encenando um universo pouco típico do género: uma feira de fenómenos "surreais", incluindo adivinhação do pensamento dos clientes… A estranheza foi tanto maior quanto Power arriscava uma mudança da sua imagem de marca, ele que até aí fora símbolo de aventura mais tradicionais e menos inquietantes.
Passados 75 anos, a versão assinada por Guillermo del Toro parece “sofrer” do mesmo problema de inadequação em relação aos modelos correntes de cinema (dito) fantástico — o que, entenda-se, lhe confere um fascínio muito especial. Não estamos, de facto, perante o esquematismo “metafórico” de alguns dos seus títulos, incluindo O Labirinto do Fauno (2006). E também não se trata de acumular efeitos (pouco) especiais como acontecia no desastroso Batalha do Pacífico (2013).
Este Nightmare Alley — estreado com o subtítulo Beco das Almas Perdidas, já utilizado para a produção de 1947 — ilustra mesmo um “desvio” na lógica dramática do trabalho de Del Toro. Digamos que encontramos aqui a pulsão poética de A Forma da Água (2017), mas com uma elabora contenção simbólica: tudo o que poderia funcionar como “passagem” para um universo fantasioso e, nessa medida, anti-naturalista, transfigura-se, agora, em desencantado realismo.
Para tal contribui um leque de magníficos colaboradores, incluindo Dan Laustsen (fotografia), Tamara Deverell (cenografia) e Luís Sequeira (guarda-roupa): há uma vibração muito física de todos os elementos que nos faz sentir os cruéis contrastes da América da Grande Depressão, em vésperas da Segunda Guerra Mundial. Seguimos, assim, a saga de Stanton Carlisle, composto com requintado pormenor por Bradley Cooper, empregado da feira com um passado oculto que se transforma em especialista de adivinhação nos salões de hotéis de luxo. Há nele um assombramento trágico: especialista no logro, a ponto de se encenar em contacto com o “além”, Carlisle vai enfrentar as contradições de um tempo social em que a crueza dos factos será mais forte que as ilusões teatrais de uma qualquer transcendência.
Del Toro consegue a proeza de expor um território da mais absoluta bizarria — na primeira parte, além dos números de adivinhação, há uma mulher que suporta altas voltagens e um monstro humano (“geek”) que devora galinhas vivas… — sem nunca menosprezar os sinais específicos da época e, sobretudo, as singularidades das personagens. Nightmare Alley é mesmo um filme eminentemente clássico no cuidado com que trata todas as figuras secundárias, para mais servidas por uma galeria de brilhantes actores. Aqui encontramos, entre outros, Cate Blanchett, Toni Collette, Willem Dafoe, Rooney Mara e o sempre tão esquecido (e tão talentoso!) David Strathairn.

segunda-feira, fevereiro 14, 2022

The Kills, 20 anos

20 anos: foi a 14 de fevereiro de 2002 que The Kills — os prodigiosos Jamie "Hotel" Hince & Alison "VV" Mosshart — tiveram a sua primeira performance com público. A respectiva memória está registada no seu Instagram. O primeiro álbum, Keep on Your Mean Side, surgiria cerca de um ano mais tarde, em março de 2003 — eis um dos seus temas: Wait.

domingo, fevereiro 13, 2022

O valor esquecido da intimidade

Jessica Chastain e Oscar Isaac:
face ao olho clínico da câmara de filmar

Na série Scenes from a Marriage reencontramos o valor dos olhares, palavras e silêncios que não são uma mercadoria audiovisual — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 janeiro).

Numa carta enviada a Jean-Paul Sartre, a 19 de janeiro de 1940, Simone de Beauvoir (Lettres à Sartre, ed. Gallimard, 1990) tece algumas considerações sobre o processo de escrita de O Ser e o Nada (que Sartre publicaria em 1943), derivando depois para diversos apontamentos sobre o amor. “Amo-vos”, escreve ela, evitando como sempre o tratamento por “tu” (“Je vous aime”). Por contraste ou ironia, logo a seguir refere também que uma vez, em Saint-Germain-les-Belles, Sartre lhe disse que ela é alguém que, no amor, “não se dá”. Entrecortada por várias considerações domésticas, surge então esta frase radical, de um radicalismo trágico contaminado por uma metódica promessa de riso: “Acontece que o amor não é uma simbiose, mas sobre isso havemos de verter algumas lágrimas noutra altura”.
Há, talvez, outra maneira de dizer isto: a intimidade que o amor deseja, promete ou imagina não é um dado adquirido, muito menos uma garantia enunciada ou, por assim dizer, promulgada pelo contrato (afectivo “ou” legal, eventualmente afectivo “e” legal) que une dois humanos. Da intimidade apenas sabemos que exprime a intensidade microscópica do presente, sem passado que a caucione ou futuro que garanta a sua repetição. Ou como escreve Roland Barthes nos seus Fragmentos de um Discurso Amoroso (Edições 70, Lisboa, 1981, tradução de Isabel Gonçalves): “Passada a primeira confissão, ‘eu amo-te’ deixa de ter significado; nada mais faz do que retomar de modo enigmático, tão vazia parece, a mensagem antiga (que talvez não tenha sido veiculada por estas palavras). Repito-o sem qualquer relevância: sai da linguagem, divaga, onde?”
Reencontro a questão labiríntica da intimidade na prodigiosa mini-série de Hagai Levi, Scenes from a Marriage (à semelhança de outras plataformas de streaming, a HBO ignora a possibilidade de traduzir os seus títulos para português). A inspiração provém de Cenas da Vida Conjugal, mini-série e filme que Ingmar Bergman realizou em 1973. Em termos esquemáticos, assistimos às convulsões do casamento de Jonathan e Mira — interpretados por Oscar Isaac e Jessica Chastain —, num processo de ruptura e reconciliação, amor e ódio, que parece não ter fim. E tanto mais quanto tal processo, ainda que com inevitáveis ressonâncias familiares, profissionais e sociais, só pode ser vivido como “coisa” íntima, alheia a qualquer exterior.
No domínio social (no “nosso” domínio social, entenda-se), a intimidade desapareceu como valor — e quase ninguém encara ou problematiza semelhante desastre existencial. Por um lado, é verdade, a sua simples definição apela a um certo “afastamento” de tudo o que é social. Ao mesmo tempo, no plano social, precisamente, a intimidade surge diariamente reduzida a mercadoria obscena do Big Brother televisivo, fenómeno que, perante a demissão argumentativa das chamadas entidades culturais e políticas, nos massacra com a noção de que a intimidade é “aquilo”. Sintoma triste: tem pertencido apenas a alguns registos de comédia a pedagogia de nos mostrarem a mediocridade do Big Brother — penso, concretamente, no programa de rádio Portugalex (Antena1), nos videos de Nilton (Instagram) e em quadros recentes de Herman José e dos actores do programa Cá por Casa (RTP1).
Ora, aquilo que regressa em Scenes from a Marriage, com uma contundência dramática plena de pudor, é a irredutibilidade de qualquer espaço íntimo. Não se trata de caracterizar o território daquele casal como algo que vai ser “revelado”, dir-se-ia “posto a nu” pelo facto de alguém o encenar e filmar. Afinal, quem pode garantir que o humano se encerra numa fronteira nítida ou estável? Certamente não por acaso, a realização pontua todos os episódios com elementos de mise en scène que nos recordam que estamos perante actores a representar uma ficção (de alguma maneira retomando o efeito de estranheza que Bergman aplicava, “entrevistando” os seus actores, Erland Josephson e Liv Ullmann).
Aquilo que regressa é o carácter intratável, infinitamente vulnerável, de qualquer intimidade. Na certeza de que a sua verdade não é partilhável — qualquer abertura a qualquer exterior anula a sua dinâmica, isto é, decompõe a dimensão íntima, mesmo quando tal dimensão possa ser habitada pela mais cruel ilusão comunicacional.
Nesta perspectiva, Scenes from a Marriage é também um belíssimo testemunho do valor antigo (“bergmaniano”, se quiserem) do trabalho dos actores. Jessica Chastain e Oscar Isaac são, por certo, dois dos mais fabulosos actores contemporâneos — recorde-se esse filme admirável que é Um Ano Muito Violento (2014), de J. C. Chandor, em que interpretavam um casal bem diferente, mas também, de alguma maneira, a experimentar a fragilidade da sua intimidade. Reencontramo-los, aqui, na corda bamba emocional de um trabalho em que, do mais breve movimento do olhar à hesitação gutural de uma palavra, tudo é importante, tudo pertence à maravilhosa instabilidade de ser, de estar vivo. E tudo decorre desse acontecimento sem equivalente que consiste em arriscar tal instabilidade, os seus gestos e também os seus silêncios, face ao olho clínico de uma câmara de filmar.

A IMAGEM: Brigitte Niedermair, 2022

BRIGITTE NIEDERMAIR
Dior
Verão 2022

sexta-feira, fevereiro 11, 2022

Coldplay em ambiente digital

Proezas do nosso mundo digital... Convenhamos que a música dos Coldplay se mantém naquele patamar de segurança em que o sofisticado polimento de estúdio se combina com estruturas convencionais, quase sempre geridas de modo académico e preguiçoso. Dito isto, importa referir que a banda de Chris Martin continua a promover ideias (e a possuir meios!) para enriquecer o território dos telediscos.
Volta a acontecer agora com Let Somebody Go, canção do álbum Music of the Spheres (2021), com o vocalista na companhia de Selena Gomez, protagonizando uma deambulação amorosa em impressionante cenário virtual, não poucas vezes a fazer lembrar o visual de Inception/A Origem (2010), de Christopher Nolan — com direcção de Dave Meyers, está tudo fotografado num preto e branco de texturas antigas e sedutoras.

quinta-feira, fevereiro 10, 2022

Shakespeare, teatro e cinema [2/10]

[ A Tragédia de Macbeth ]


Figura central na história do teatro e do cinema “shakespeariano”, Laurence Olivier realizou três adaptações em que também assumiu o papel central. Esta foi a primeira (seguiram-se Hamlet, em 1948, e Ricardo III, em 1955), quatro anos depois de Olivier ter rodado Rebecca, sob a direcção de Alfred Hitchcock. Com especial impacto da comunidade de Hollywood, valeu a Olivier um Oscar honorário pela “proeza excepcional” de levar ao ecrã Henrique V enquanto “actor, produtor e realizador”. Para lá da qualidade do elenco, o filme funcionou, na altura, a par de alguns títulos da dupla Michael Powell/Emeric Pressburger, como exemplo modelar da sofisticação do Technicolor tal como era praticado, a par de Hollywood, pelos estúdios britânicos.

A IMAGEM: Vincent Isore, 2022

VINCENT ISORE
"Poluição na Ile-de-France"
Libération, 10 fev. 2022

terça-feira, fevereiro 08, 2022

Nova canção de Sharon Van Etten

Depois do álbum Remind Me Tomorrow, depois de uma colaboração com Angel Olsen, eis um novo single de Sharon Van Etten: Porta foi composto em 2020 e apresenta-se como o resgate afectivo de um período de depressão — pedagógico e poético.

Shakespeare, teatro e cinema [1/10]

Denzel Washington em A Tragédia de Macbeth: a caminho de um Oscar?

William Shakespeare regressou à actualidade cinematográfica graças a A Tragédia de Macbeth, de Joel Coen: da tragédia à comédia, desde os tempos do mudo, o seu teatro tem inspirado as mais variadas aventuras cinematográficas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 janeiro), com o título 'Shakespeare — O cinema gosta do seu teatro'.

No cinema, que visão temos do Macbeth, de William Shakespeare (1564-1616)? Digamos, para simplificar, que não há uma resposta única, muito menos definitiva. Quanto mais não seja por razões estatísticas: segundo os dados mais recentes disponíveis no site do Guinness World Records (referentes a 2016), existem 98 adaptações da peça sobre o rei da Escócia que, tragicamente, descobre que esta nossa vida atribulada é uma coisa “cheia de ruído e furor que nada significa”.
A provar que os assombramentos de Macbeth continuam a ecoar no nosso presente, aí está a magnífica versão de Joel Coen, A Tragédia de Macbeth, disponível numa plataforma de streaming (Apple TV+). Dizem os analistas americanos de Hollywood que será uma presença forte nas nomeações para os Oscars (a atribuir a 27 de março), com Denzel Washington a perfilar-se como sério candidato ao título de melhor actor.
Em boa verdade, para lá da actividade dos palcos, Shakespeare é, muito simplesmente, o autor mais vezes filmado. Ainda segundo o Guinness, contando com produções cinematográficas e televisivas (coligidas na mesma data), podemos encontrar nada mais nada menos que 1.121 adaptações dos seus textos teatrais.
No caso de Macbeth, por exemplo, há registos de uma primeira versão (de que não se conhecem cópias), realizada nos EUA, em 1908, com realização de James Stuart Blackton e William V. Ranous, actor de teatro especialista em Shakespeare, como protagonista. Sem esquecer que Shakespeare inspirou também muitas variações, incluindo West Side Story, de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, uma reinvenção musical de Romeu e Julieta também recentemente recriada por Steven Spielberg. Aqui ficam algumas memórias de uma imensa paisagem cinematográfica.

[continua]

segunda-feira, fevereiro 07, 2022

Tori Amos — concerto na NPR

Três canções: Baker Baker, do álbum Under the Pink (1994); Ocean to Ocean e 29 Years, ambas de Ocean to Ocean (lançado em outubro de 2021): Tori Amos protagonizou mais um Tiny Desk (Home) Concert, na NPR — 15 minutos de depurada intimidade, pudor e partilha.

sábado, fevereiro 05, 2022

Lauro António (1942-2022)

© Paulo Alexandrino / Global Imagens

O programa de televisão Lauro António Apresenta e o filme Manhã Submersa são referências centrais do seu trabalho, mas a sua actividade multifacetada passou também pela escrita e pela programação de cinema — Lauro António faleceu aos 79 anos (este texto foi publicado no Diário de Notícias, 4 fevereiro, com o título 'Morreu Lauro António, crítico, cineasta, amante do cinema').

Lauro António faleceu no dia 3 de fevereiro, aos 79 anos, vítima de um ataque cardíaco fulminante. A sua imagem pública tornou-se indissociável da televisão e do seu Lauro António apresenta (TVI, 1994-97), programa que deu a ver muitos títulos marcantes da história do cinema, promovendo o gosto pela descoberta da pluralidade temática e narrativa da Sétima Arte.
Seja como for, tal referência está longe de poder resumir a vida profissional de um verdadeiro amante do cinema que foi crítico, cineasta, programador, conferencista e autor de uma longa bibliografia dedicada ao mundo infinito dos filmes, seus autores e protagonistas. Em tempos recentes, o seu empenho nas tarefas de divulgação traduziu-se na realização do programa “Masterclass de História do Cinema”, às segundas-feiras, no Forum Municipal Luísa Todi, em Setúbal. A relação assim estabelecida com o município da cidade levou à criação da Casa das Imagens Lauro António, na baixa de Setúbal, com a vocação de ser, de uma só vez, Biblioteca, Mediateca e Arquivo.
Inaugurada a 8 de maio de 2021, a Casa das Imagens acolheu o seu espólio em que se destacam centenas de publicações dedicadas a cinema, televisão e todas as áreas do audiovisual. A secção de mediateca integra muitos milhares de filmes — 1500 em cassetes VHS e dez mil em DVD e Blu-ray, além de registos sonoros em cassetes e vinil. O espaço está aberto de segunda a sexta-feira (10/18 horas), e aos sábados (14/18 horas).

Da crítica à programação

Nascido em Lisboa, a 18 de agosto de 1942, Lauro António licenciou-se em História, pela Faculdade de Letras de Lisboa. Ainda estudante, envolveu-se na actividade cineclubista, tendo sido dirigente do Cine-Clube Universitário e do ABC Cineclube.
Começou a escrever regularmente sobre cinema em 1963, no jornal República, vindo a desempenhar um papel central na geração que, ao longo da década de 1960, marcou e transfigurou a prática da crítica de cinema em Portugal, consolidando a sua presença regular nos jornais de grande circulação — nesse aspecto, é fundamental lembrar a sua colaboração nas páginas do Diário de Lisboa (1967-1975).
Escreveu também, por exemplo, nos jornais Diário Popular, Diário de Notícias e Diário de Lisboa (2ª fase), e na revista Opção, ao mesmo tempo que desenvolvia grande actividade como editor, nomeadamente de revistas como Enquadramento, Isto É Espectáculo e Isto É Cinema. Entre as dezenas de livros que publicou, ora com produções originais, ora coligindo textos do seu trabalho como crítico, incluem-se O Cinema entre Nós (D.Quixote, 1968), Cinema e Censura em Portugal (Arcádia, 1977), David Cronenberg: As Metamorfoses Modernas (Fantasporto, 1988), Lauro António Apresenta (Asa, 1994) e Visões de Cristo no Cinema (Biblioteca Museu República e Resistência, 2005).
Porventura menos conhecida do grande público foi a sua faceta de programador. E não apenas em vários certames de cinema, como o Festróia (Setúbal), o Cine-Eco (Seia) ou o Famafest (Famalicão). Foi ele o responsável pela programação do Apolo 70, sala pioneira no interior de um centro comercial (na altura, a designação era “drugstore”): inaugurado em maio de 1971, o Apolo 70 abriu com Tell Them Willie Boy Is Here/O Vale do Fugitivo (1969), um “western” assinado por Abraham Polonsky, durante alguns anos dando a ver títulos fundamentais da actualidade cinematográfica, incluindo Ivan, o Terrível (1945), de Sergei Eisenstein, Um Assassino pelas Costas (1971), de Steven Spielberg, e Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick, a par de diversas retrospectivas de grandes clássicos (por exemplo, as comédias realizadas por Jerry Lewis). Recentemente, a Casa das Imagens anunciara um ciclo de evocação dos 50 anos do Apolo 70, a iniciar a 12 de fevereiro.

Realizador e professor

Como realizador, ao assinar Manhã Submersa (1980), Lauro António criou um dos acontecimentos simbolicamente marcantes, e também de maior sucesso, de um tempo em que o cinema português ia sendo pontuado por grandes debates sobre os seus trunfos e limites comerciais. O filme nasceu da cumplicidade artística do cineasta com Vergílio Ferreira (1916-1996): antes da adaptação do seu romance, Lauro António tinha já abordado o universo do escritor na curta-metragem Prefácio a Vergílio Ferreira (1975).
Entre os seus créditos como realizador incluem-se ainda, por exemplo, a curta O Zé Povinho na Revolução (1978), a longa O Vestido Cor de Fogo (1985), segundo José Régio, e os telefilmes A Bela e a Rosa e Casino Oceano (ambos de 1983).
O gosto de Lauro António pela investigação e partilha do cinema levou-o a exercer a actividade de professor (IADE, Universidade Nova, Universidade Moderna, etc.), tendo coordenado um grupo de estudos do Ministério da Educação para a integração no cinema no ensino (1990-93). Nos últimos anos, mantinha uma relação regular com os leitores através do blog Lauro António Apresenta… — o seu derradeiro texto, com data de 14 de janeiro é dedicado ao filme O Poder do Cão, de Jane Campion.