segunda-feira, janeiro 31, 2022

A 8ª de Mahler por Dudamel

A gravação da 8ª Sinfonia de Gustav Mahler ("Sinfonia dos Mil"), pela Los Angeles Philarmonic, sob a direcção de Gustavo Dudamel, é um acontecimento do mais puro deslumbramento: a sinfonia "impossível" (pelo número de contributos humanos que exige, mesmo se "mil" é um rótulo mítico que não lhe foi dado pelo compositor) renasce como celebração sagrada de uma vida transfigurada pelo poder da música, dos instrumentos e da voz — eis o final.

A IMAGEM: Lucile Boiron, 2022

LUCILE BOIRON
Fanny Ardant
Libération, 20-01-2022

Efterklang
— na companhia de 812 pessoas

Os dinamarqueses Efterklang têm um novo álbum, Windflowers, fiel ao seu gosto de síntese: uma pop de espírito indie, condimentada com sintetizadores q. b. Uma canção destaca-se pela originalidade da sua "visualização": o teledisco de Hold Me Close When You Can foi concebido a partir de fotografias feitas por amigos e colaboradores de todo o mundo, inspirando-se numa primeira audição da canção — 812 pessoas de 49 países.

hold yourself to yourself
hold me close when you can
it floods and it builds
and you can’t go on

even love is a string
let us rush to the spring
looking closer within
when we can’t go on

standing still in a stream
from a mouth of extreme
even now when you enter grace
hold yourself to yourself

in the mind when you trip, even in your highs with the figs, and you wear the wild when you win

hold yourself to yourself
hold me close when you can

domingo, janeiro 30, 2022

Bowie 75 na FNAC
— memória da sessão SOUND + VISION

David Bowie, 1972-73
> guarda-roupa: Kansai Yamamoto; foto: Masayoshi Sukita

No sábado, 29 janeiro, estivemos de novo na FNAC Chiado para mais uma sessão SOUND+VISION, desta vez assinalando os 75 anos do nascimento de David Bowie — e também os 50 anos da sua encarnação como Ziggy Stardust. Aqui fica um dos registos de Bowie que demos a ver, a par das canções que abriram e fecharam a sessão.
Entretanto, eis a data do nosso próximo encontro:

SOUND + VISION MAGAZINE
FNAC Chiado
19 fevereiro, 17h00

* * * * *

>>> Rock'n'Roll Suicide, Hammersmith Odeon, Londres, 3 julho 1973 — do filme Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (estreado em 1979), de D. A. Pennebaker.
 

>>> L'Enfer, Stromae.


>>> Can't Let Go, Robert Plant & Alison Krauss.
 

Swallow: uma tragédia no feminino

Haley Bennett: que ideias habitam o meu corpo?

Espantosa estreia na realização: Carlo Mirabella-Davis filma Swallow num território que podemos aproximar de David Cronenberg, embora possuindo uma identidade própria, sem imitações pueris — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 janeiro).

No filme Swallow (subtítulo português: Distúrbio), porque é que Hunter, personagem interpretada pela meticulosa Haley Bennett, olha fixamente para um berlinde? Porque vai... engoli-lo. Sofre do síndrome de pica (transtorno também designado por alotriofagia) que se manifesta pela compulsão de ingerir objectos ou substâncias não alimentares — tal condição vai necessariamente afectar de forma dramática a sua existência, até porque essa compulsão não se contém face a objectos ainda mais agressivos, pontiagudos ou cortantes.
Descrever esta espantosa estreia na realização de Carlo Mirabella-Davis (também autor do argumento) como um “estudo psicológico” será adequado, mas manifestamente insuficiente. Há em Swallow a intensidade perturbante de uma tragédia no feminino vivida num universo de ilusório bem-estar e harmonia, subitamente abalado pela verdade intratável do corpo e dos desejos que o podem habitar. No limite, Hunter é uma personagem assombrada por essa verdade e pelo seu mapa carnal, tanto mais que a sua história não é estranha a uma angustiada gravidez. Lembramo-nos de alguns filmes de David Cronenberg, mesmo se a controlada depuração do trabalho de Carlo Mirabella-Davis não copia ninguém.

sábado, janeiro 29, 2022

Filmando o futuro que já aconteceu

Vicky Kriesp filmada por Mathieu Amalric
— no labirinto do tempo

Através do seu filme Abraça-me com Força, Mathieu Amalric propõe uma narrativa melodramática em que todos os tempos são ambíguos. Com a talentosa Vicky Krieps no papel central — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 janeiro).

Poderemos começar por definir Abraça-me com Força, o novo filme realizado por Mathieu Amalric, a partir de um dispositivo clássico de melodrama. A saber: alguém abandona o espaço familiar… É, neste caso, a mãe, Clarisse, que surge como o elemento de ruptura: uma manhã, levanta-se, observa o marido e os filhos, ainda deitados, pega na sua mala e sai de casa.
Que está a acontecer, então? Em boa verdade, não temos a certeza. Vicky Krieps, a talentosa actriz luxemburguesa cuja carreira se internacionalizou graças a Linha Fantasma (2017), de Paul Thomas Anderson, representa Clarisse a meio caminho entre a determinação e o sonambulismo. De tal modo que cedo compreendemos que não estamos perante uma narrativa linear: aquilo que está a acontecer pertence a um presente ambíguo, marcado por um passado que não se aquieta, assombrado por um futuro que talvez já tenha acontecido.
Aliás, a incerteza de todos os tempos — e também a sua surpreendente cumplicidade — vai sendo reforçada, cena a cena, pela criação de insólitos laços visuais e sonoros: um gesto que se repete em situações diferentes, uma canção que parece servir de banda sonora a lugares sem ligação aparente, uma frase que se escuta antes (ou depois) do cenário que a viu nascer.
Amalric reencontra, assim, o prazer poético de um cinema que resiste aos modelos correntes de narrativa (tendo como base a peça Je Reviens de Loin, de Claudine Galea). É um processo inusitado e misterioso, parecendo satisfazer o célebre adágio atribuído a Jean-Luc Godard, quando lhe perguntaram se os seus filmes, inequivocamente experimentais, tinham “princípio, meio e fim”. O cineasta de Pedro, o Louco terá respondido: “Sim, mas não necessariamente por essa ordem…”
Entenda-se: o objectivo de Amalric não apela a uma instabilidade temporal apostada em “confundir” o espectador. Aliás, em boa verdade, Abraça-me com Força é um filme que desliza com uma serenidade invulgar, tecida de contenção e elegância. Não se trata de baralhar os elementos da sua “intriga”, mas sim de observar como os seres humanos são feitos, ou melhor, existem através desse ziguezague em que o tempo se faz e desfaz como um destino que, continuamente, denuncia o seu ilusório determinismo.
Não sei se Amalric reconhece Alain Resnais (1922-2014) como referência inspiradora do seu trabalho, sendo, em qualquer caso, curioso recordar que interpretou dois dos seus títulos finais: As Ervas Daninhas (2009) e Vocês Ainda Não Viram Nada (2012). O certo é que, nem que seja pelas ambivalências da sua narrativa, Abraça-me com Força leva-nos a evocar os sobressaltos de uma modernidade que, na obra de Resnais, encontrou a sua concretização exemplar em clássicos como O Último Ano em Marienbad (1961) e Muriel ou o Tempo de um Regresso (1963).
No limite, este é um cinema cuja sedução e sensualidade não podem ser reduzidas à já referida instabilidade das referências temporais. Tal instabilidade é inseparável de uma pergunta fulcral que, sendo narrativa, é também filosófica: afinal, quem é o narrador do filme? Ou ainda: contar uma história é seguir uma voz que nos conduz, ou descobrir que essa voz pode ser uma fabricação do nosso desejo de conhecer? Da incerteza da situação nasce o fascínio do cinema.

* David Bowie, esse desconhecido
— SOUND + VISION na FNAC [hoje, dia 29]

Nos 75 anos de David Bowie, evocamos o criador de Ziggy Stardust, celebrando os 50 anos da sua primeira performance e dando a ver imagens (e sons!) menos conhecidos — canções, filmes, fotografias...

>>> FNAC, Chiado — hoje, dia 29, 17h00.

sexta-feira, janeiro 28, 2022

Sophie Auster, Let's Get Lost

Fiel às raízes pop do seu universo, Sophie Auster tem uma nova canção: Let's Get Lost é um exercício confessional cujo ritmo não anula, antes reforça, uma pose de melancolia. Fabricado em plena pandemia, via Face Time, com o produtor Nick Block (ela em Nova Iorque, ele em Los Angeles), este é o primeiro tema de um álbum em preparação.

The Smile (não são os Radiohead)

Não são os Radiohead, mas lá encontramos Thom Yorke e Jonny Greenwood, na companhia de Tom Skinner (do grupo britânico de jazz Sons of Kemet). Assinam como The Smile e têm uma nova canção: faz lembrar os Radiohead, mas não é grave...

quarta-feira, janeiro 26, 2022

"A voz humana" [citação]

>>> A voz humana ressoa sempre em direcção a uma outra voz e a partir de uma outra voz, ou então numa outra voz. A sua ressonância sonora é indissociável de um movimento de destino e escuta: mesmo quando falo sozinho e silenciosamente "na minha cabeça" (como julgamos poder dizer), quer dizer, quando penso, ouço uma outra voz na minha voz, ou então ouço a minha voz a ecoar numa outra garganta.

JEAN-LUC NANCY
Éditions Galilée (Paris, 2001)

terça-feira, janeiro 25, 2022

O cinema corpo a corpo

Anamaria Vartolomei: não "todas" as mulheres,
mas a irredutibilidade de uma mulher

Com o filme O Acontecimento, de Audrey Diwan, o cinema francês reencontra uma dimensão eminentemente física da arte de filmar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 janeiro).

No cinema, e sobre o cinema, circula um discurso normativo que tende a valorizar os filmes apenas em função dos “temas” que abordam, menosprezando as narrativas que, melhor ou pior, trabalham tais “temas”. Na prática, isso envolve uma automática desvalorização do trabalho crítico. Porquê? Porque a crítica, também melhor ou pior, tenta reconhecer e pensar a especificidade narrativa de cada filme.
Aliás, não simplifiquemos. Esta valorização dos “temas” está longe de ser um assunto particular do espaço cinematográfico. Em boa verdade, decorre de uma lógica dominante, por vezes chantagista, de “purificação” das narrativas, lógica que tem vindo a contaminar todas as dinâmicas culturais. Em tempos recentes, entre os seus motores estão as muitas atribulações em torno dos “temas” femininos e afro-americanos, na certeza de que o simples reconhecimento de tal facto continua a desencadear as paixões mais desencontradas.
Lembremos apenas o mais sensato, que é também, a meu ver, o mais produtivo: não se trata (bem pelo contrário!) de desvalorizar a importância política de tais “temas” e, mais do que isso, o seu insubstituível valor em diversas dinâmicas sociais deste nosso século XXI. Trata-se, isso sim, de não ceder ao endeusamento pueril das respectivas narrativas e à automática desresponsabilização dos seus agentes — a não ser que estejamos dispostos a aceitar, por exemplo, que o tratamento do “tema” do adultério pode colocar no mesmo plano a miséria narrativa (entenda-se: as rotinas de imagens e sons) de uma telenovela e os prodígios da escrita de Tolstoi em Anna Karenina.
São questões que, desde o seu triunfo no Festival de Veneza, têm acompanhado o filme francês O Acontecimento (Leão de Ouro em Veneza, há dias estreado em Portugal). Realizado por Audrey Diwan, tendo como base o romance autobiográfico de Annie Ernaux, nele seguimos a experiência dramática de uma jovem que, na França de 1963, em vésperas de entrar para a universidade, engravida e tenta fazer um aborto — na certeza de que, para lá da convulsão emocional da sua situação, pode ir parar à prisão.
Dizer que se trata de um filme “sobre” o aborto é uma preguiçosa facilidade. Desde logo, por uma questão básica de contextualização. A própria realizadora tem tido o cuidado de chamar a atenção para tal facto: “Um aborto clandestino nos anos 1960 nada tem a ver com o que se passa hoje. É de loucos pensar que não sabemos nada desse antigo processo” (entrevista a Rui Pedro Tendinha, publicada no DN, 5 janeiro).
Do mesmo modo, considerar que se trata de um filme sobre a “ilegalidade” do aborto é uma simplificação que o filme combate, ponto por ponto. Claro que o aborto que Anne quer fazer vai contra as regras do mundo em que vive a sua juventude, regras que decorrem não apenas das leis do Estado, mas também, como é óbvio, das normas morais socialmente dominantes. Em qualquer caso, isso não significa que o filme seja uma telenovela sobre uma personagem imaculada contra a “maldade” dos outros. Do ponto de vista político, O Acontecimento é mesmo um filme capaz de encenar o drama de Anne como uma tragédia que circula através de TODOS os discursos sociais, desde o espaço familiar ao exercício da medicina, incluindo o próprio pensamento “interior” de Anne.
Neste tempo dominado pelos rugidos de super-heróis digitais, literalmente sem corpo (ou virtualmente corporizados), a Anne filmada por Diwan é, em tudo e por tudo, uma raridade. E também um prodígio cinematográfico — criado pelos meios de uma narrativa cinematográfica, quero eu dizer.
Em anos recentes, poucas vezes temos podido descobrir algo semelhante, em intensidade e subtileza, à composição de Anne por Anamaria Vartolomei (actriz francesa nascida em 1999, em Bacau, Roménia). A vibração emocional da sua personagem não pode ser desligada da dimensão eminentemente física do seu trabalho, dando-nos a ver uma verdade identitária que, sendo feminina, nada tem a ver com a redução de uma personagem de mulher a símbolo, muito menos bandeira, de “todas” as mulheres — é a sua irredutibilidade que circula pelo filme e, no limite, constrói o filme.
No interior da história do cinema francês, reencontramos, assim, a beleza trémula dos corpos que não podem ser reduzidos a nenhum padrão universal, seja ele de género, social ou político. Há em O Acontecimento o retomar de uma via de expressão que encontra um modelo essencial na filmografia de Maurice Pialat (1925-2003). E, neste caso, confesso que não posso deixar de ceder à tentação simbólica: Sandrine Bonnaire, que aos 16 anos protagonizou o admirável Aos Nossos Amores (1983), de Pialat, surge em O Acontecimento como a mãe de Anne. A história não se repete, mas continua.

segunda-feira, janeiro 24, 2022

Memórias e utopia de Rodrigo Areias

Acácio de Almeida em Cinema/Vencidos da Vida

Rodrigo Areias percorre momentos emblemáticos da sua filmografia, construindo um filme que celebra o cinema e o desejo de filmar: Vencidos da Vida está nos TVCine — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 janeiro).

De que se faz o território particular de um cineasta? E, sobretudo, como é que esse território se define e auto-define? Ou ainda: como é que o cineasta desenha o seu próprio mapa?
Em boa verdade, a evolução de qualquer filmografia pessoal vai respondendo a tais questões: cada nova obra existe como uma forma de refazer, porventura expandir, negar ou renegar, a paisagem criativa do autor. Por vezes, isso acontece até num tom em que pedagogia rima com ironia — lembro o delicioso exemplo de Entrevista (1987), de Federico Fellini, com o autor de La Dolce Vita a “inventar” uma entrevista com uma equipa da televisão japonesa, num jogo de escondidas em que Fellini brinca com a percepção corrente do seu trabalho. Outras vezes, a memória privada confunde-se com a dramatização da identidade cinematográfica — veja-se o belíssimo JLG por JLG (1994), de Jean-Luc Godard.
Rodrigo Areias apostou num registo bem diferente, encarando a sua memória criativa como um auto-retrato em forma de “puzzle” aberto a inesperadas (re)configurações. O seu filme Vencidos da Vida (TVCine) funciona, assim, como uma colagem de fragmentos de vários títulos da sua filmografia, incluindo Corrente (melhor curta-metragem portuguesa e prémio do público no Curtas Vila do Conde de 2008), Golias (2010), Cinema (2014), Pixel Frio (2018), etc.
Obviamente, o título escolhido está longe de ser indiferente, cruzando simbolicamente o filme com as memórias a Geração de 70 das décadas finais do século XIX português (Antero de Quental, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, etc.). Reunidos regularmente sob a designação de “Vencidos da Vida”, o grupo corporizou um lema enunciado por Eça e evocado nas notas de produção do filme: “Para um homem, o ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade aparente a que chegou, mas do ideal íntimo a que aspirava.”
Dir-se-ia que Rodrigo Areias apostou numa sedutora ambivalência: há um saldo de desencanto nas imagens e sons agora coligidos, como se neles houvesse (e há!) um desejo de utopia que a história não cumpriu; ao mesmo tempo, esse desencanto coexiste com uma obstinada alegria de filmar a que, à falta de melhor, daremos o nome de felicidade artística.
Viajamos, assim, por experiências narrativas que vão desde o realismo (quase) expressionista de Corrente até ao ritual intimista de Pixel Frio. De qualquer modo, é a curta-metragem Cinema, protagonizada por uma personalidade maior da história do cinema português — o director de fotografia Acácio de Almeida — que emerge como “guia” de Vencidos da Vida. Aí descobrimos a tristeza das ruínas de uma sala emblemática de Guimarães, o Teatro Jordão (actualmente, em processo de reconstrução). Tudo se passa como se essa consciência amarga da emoção primitiva do cinema se tivesse tornado um bem precioso que importa preservar, não como objecto museológico, antes como visão e atitude que as novas gerações podem (e devem) conhecer.

sábado, janeiro 22, 2022

O céu de Grace Cummings

A australiana Grace Cummings não é estranha às artes do palco e, em particular, ao gosto da performance. Certamente por isso, as canções do seu álbum Storm Queen apelam a uma teatralidade que não exclui, antes reforça, a respectiva carga emocional. Em todo o caso, tudo isso passa pela poesia agreste que a sua voz transporta. Eis uma belíssima ilustração: Heaven.

There's your world we live in
I've just discovered Heaven
Where a man is nothing
And the air is something

See the apple, hanging from the tree
It fades away as you reach for it
There is no God
There is no King
Yet you hear, you hear
A singing

Ave, Ave Maria
Ave, Ave Maria

It looks like Heaven's back
Wearing a ten gallon Stetson hat
Nothing was made for sterner stuff
There's nobody to call your bluff

Nothing's gonna catch fire, it's a pretty green
Diamonds in the water
Floating down the stream
There is no God
There is no Queen
Yet you hear, you hear
A singing

Ave, Ave Maria
Ave, Ave, Maria

sexta-feira, janeiro 21, 2022

Elza Soares (1930-2022)

Na sua história, a saga pessoal de uma mulher capaz de superar a pobreza e os abusos cruza-se com a celebração plural da música, do samba ao hip hop, do funk ao jazz: a cantora brasileira Elza Soares faleceu no dia 20 de janeiro, no Rio de Janeiro, de causas naturais — contava 91 anos.
A partir de 1959, quando ganhou um concurso musical na Rádio Vera Cruz, pôde construir uma carreira fulgurante em que o gosto da experimentação se combina com a energia confessional das canções. O seu legado inclui uma discografia de 34 álbuns — os três derradeiros registos foram A Mulher do Fim do Mundo (2015), Deus É Mulher (2018) e Planeta Fome (2019). Em 2019, nos Prémios do Cinema Brasileiro, recebeu uma das suas derradeiras distinções: a de melhor banda sonora, graças ao documentário My Name Is Now, de Elizabete Martins Campos.

>>> Chega de Saudade (registo da televisão espanhola, 1971) + o álbum A Mulher do Fim do Mundo + trailer de My Name Is Now.






>>> Obituário na Globo.
>>> Elza Soares no Instagram.

quinta-feira, janeiro 20, 2022

Gaspard Ulliel (1984-2022)

Libération

Gaspard Ulliel, um dos rostos mais populares do actual cinema francês, faleceu no dia 19 de janeiro, na sequência de um acidente de ski na estação de desportos de inverno La Rosière — contava 37 anos.
Les Égarés/Os Fugitivos (2003), admirável drama sobre o interior da França durante a ocupação nazi, assinado por André Téchiné, foi um título decisivo para impor a sua pose distante e enigmática, ao mesmo tempo carregada de emoções. A versatilidade de imagem, pose e registo dramático permitiu-lhe até protagonizar um anúncio da Chanel, sob a direcção de Martin Scorsese, uma das obras-primas da publicidade do século XXI.
Hannibal - A Origem do Mal (2007), de Peter Webber, título certamente menor na galeria de versões cinematográficas da personagem de Thomas Harris, terá sido o filme que mais contribuiu para a sua fama internacional. Entre outros momentos marcantes da sua filmografia, podemos destacar The Tulse Luper Suitcases, Part 2 (2004), de Peter Greenaway, Um Longo Domingo de Noivado (2004), de Jean-Pierre Jeunet, Un Barrage contre le Pacifique (2008), de Rithy Panh, A Princesa de Montpensier (2010), de Bertrand Tavernier, Saint Laurent (2014), de Bertrand Bonello, Tão Só o Fim do Mundo (2016), de Xavier Dolan, e Eva (2018), de Benoît Jacquot. Foi distinguido com dois Césares do cinema francês: melhor esperança masculina (Um Longo Domingo de Noivado) e melhor actor (Tão Só o Fim do Mundo).
 
>>> Trailer de Les Égarés + Bleu de Chanel.




>>> Obituário na France 24.

quarta-feira, janeiro 19, 2022

Elogio dos felinos e da sua publicidade

A publicidade situa-nos num mundo idealizado que quase ninguém questiona: o certo é que, de alguma maneira, todas as imagens são políticas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 janeiro).

Na infinita multiplicidade de registos que circulam pelo mundo audiovisual, os trabalhos publicitários são um verdadeiro tabu. Não de acordo com esse infantilismo jornalístico que, cada vez que uma figura da cena política recusa avançar com alguma informação supostamente obrigatória, de imediato convoca a palavra “tabu”, arrastando um misto de expectativa e censura moral. O tabu publicitário envolve algo de incomparavelmente mais fundo: por princípio, a “sociedade” e os seus obsessivos “escrutínios” não questionam as representações da publicidade, seja qual for o respectivo domínio, do carácter redentor do espaço familiar até ao conceito compulsivo de festividade associado à juventude.
Um dos exemplos clássicos de impostura das encenações publicitárias é a forma corrente de apresentação dos novos modelos de automóveis. Exemplo benigno, entenda-se: a palavra impostura não decorre de qualquer dúvida sobre as qualidades específicas dos produtos publicitados. Tem a ver, isso sim, com tudo aquilo que nas imagens (e sons) é apresentado como a utilização futura do produto em causa pelo potencial consumidor. Assim, na esmagadora maioria dos anúncios de automóveis, não só não há outros automóveis, como tudo acontece em espaços da mais absoluta solidão. Tráfego? Estradas congestionadas? Cidades habitadas por pessoas? Nada de nada: o automóvel que podemos comprar será o único do planeta Terra…
Há outra maneira de dizer isto: a idealização do produto que se tenta vender envolve (depende mesmo de) uma redução da realidade, seja ela qual for, a uma perversa abstração. Como se vivêssemos, não num mundo em que a publicidade é um acto de linguagem, mas sim num universo “alternativo” que a publicidade sanciona porque, no limite, foi por ela inventado. Os exemplos são intermináveis e, convém não esquecer, quotidianos: da família que irá desfrutar do novo ambientador de odores florais ao adolescente que se “socializa” através do seu telemóvel, todos embarcam, ou podem embarcar, na felicidade publicitada.
Eis um esclarecedor contraponto: um cartaz com chancela da Big Cat Rescue, organização não lucrativa da cidade de Tampa, California, que possui um santuário para felinos selvagens. Concebido por Michael Schillig, da agência publicitária PPK, também sediada em Tampa, o cartaz distingue-se por uma lógica informativa, pedagógica e, em última instância, política. Nessa medida, claro, não pode ser confundido com as motivações de uma qualquer intervenção publicitária sobre os méritos de um aspirador ou as proezas de um desodorizante…
Aliás, não é isso que está em causa. Ou melhor, corrijo: é precisamente isso que está em causa — não em função da “coisa” que se dá a conhecer, antes através da linguagem que se utiliza e, muito em particular, do modo como essa linguagem concebe (ou não) o destinatário (cada um de nós) como sujeito activo, capaz de ver, compreender e pensar.
De que se trata, então? De chamar a atenção para a futilidade e, mais do que isso, a irresponsabilidade de tratar os tigres bebés como meros objectos de uma “experiência táctil”. Na base do cartaz, recorda-se mesmo que esses tigres recém-nascidos são muitas vezes “retirados às mães logo à nascença e explorados para renderem grandes lucros”. Com consequências brutais: “Quando se tornam demasiado perigosos para receberem festas, podem ser vendidos, abandonados ou mesmo mortos” (no site da Big Cat Rescue, podemos aceder a imagens dos tratadores dos pequenos felinos, em fascinante proximidade com os animais, evitando tocá-los com as mãos).
O espantoso cartaz da Big Cat Rescue dá-nos a ver a vibração física — que é uma forma de intimidade — de uma entidade que existe através do nosso olhar, dos nossos gestos e, uma vez mais, das nossas políticas. “Desenhado” com mãos humanas, o rosto do tigre surge, assim, desprovido de qualquer carácter pitoresco, muito menos anedótico. Não é um boneco de peluche para ser acariciado e rapidamente descartado, antes um ser vivo que, na sua irredutibilidade, existe também através do modo como o representamos — sendo a representação um acto vital de disponibilidade cognitiva.
Num tempo em que as notícias “natalícias” nos alertam para a estupidez humana dos que compram animais bebés como objectos decorativos que, mais tarde ou mais cedo, vão ser descartados, esta é uma exemplar lição pedagógica. Na certeza de que um cartaz não resolve, por si só, nenhum drama. Ainda assim, pode contribuir para que algum olhar faça uma pausa, pressentindo a complexidade do mundo à sua volta.

terça-feira, janeiro 18, 2022

Sonic Youth — raridades

In/Out/In: assim se chama um novo álbum de raridades dos Sonic Youth, anunciado para 18 de março. São cinco faixas em tom de ensaio/experimentação, gravadas na década de 2000-10. Para começar, eis In & Out.

segunda-feira, janeiro 17, 2022

Licorice Pizza
— memórias do paraíso perdido

Cooper Hoffman e Alana Haim

Paul Thomas Anderson, realizador de Magnólia, revisita os lugares da sua adolescência, em San Fernando Valley, reencontrando uma emoção romanesca que cristaliza nos actores estreantes: Alana Haim e Cooper Hoffman — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 dezembro), com o título 'Paul Thomas Anderson filma o paraíso perdido'.

Paul Thomas Anderson
Eis uma sugestiva conjuntura cinematográfica. O final do 2021 fica marcado por dois filmes americanos com importantes componentes musicais. Primeiro, foi West Side Story, de Steven Spielberg, por óbvias razões: nele se revisita o musical de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, estreado na Broadway em 1957. Agora, surge Licorice Pizza, de Paul Thomas Anderson, crónica das atribulações amorosas de dois jovens, Alana Kane e Gary Valentine, em que as canções, muito mais do que um pano de fundo, funcionam como elementos orgânicos de uma complexa e fascinante trama narrativa.
A lista de maravilhas que nos são dadas a escutar inclui July Tree (Nina Simone), But You’re Mine (Sonny & Cher), Peace Frog (The Doors), Life on Mars? (David Bowie) ou If You Could Read My Mind (Gordon Lightfoot)… Sem esquecer o belíssimo tema instrumental, também intitulado Licorice Pizza, composto por Jonny Greenwood, colaborador habitual de Paul Thomas Anderson.
Estamos perante uma memória romanesca que prolonga as componentes (quase) autobiográficas de uma parte significativa da filmografia de Anderson, nascido em Los Angeles, em 1970. San Fernando Valley, a zona da sua adolescência onde, aliás, continua a habitar, ressurge em Licorice Pizza — lembremos que aí se desenvolvia também a teia de personagens e canções de Magnólia (1999) — como cenário emblemático de um modo de viver em que os desejos particulares de cada personagem se enredam sempre com uma peculiar lógica comunitária. Mais ainda: “Licorice Pizza” é o nome de uma lendária cadeia de lojas de discos da Califórnia do Sul.

Memórias de 1973

No período de pré-produção, Anderson fez questão em mostrar aos actores principais o filme American Graffiti, que George Lucas realizou em 1973, antes de se lançar nas suas aventuras galácticas (A Guerra das Estrelas surgiria quatro anos mais tarde). Aí podemos encontrar também uma memória californiana da juventude, neste caso da cidade de Modesto, durante as férias de verão de 1962. Além de que 1973 é, precisamente, o ano em que decorre a acção de Licorice Pizza.
Para lá da memória temática, o realizador, também argumentista, terá querido sublinhar o valor fulcral do trabalho dos actores. Assim, em American Graffiti, podemos encontrar vários nomes que, de uma maneira ou de outra, iriam adquirir especial evidência na história de Hollywood: Richard Dreyfuss, Ron Howard, Harrison Ford… No caso de Licorice Pizza, deparamos com dois estreantes que são, simplesmente (apetece dizer: radicalmente) as revelações do ano: Alana Haim e Cooper Hoffman, respectivamente como Alana e Gary.
Também aqui o circuito de heranças e cumplicidades é revelador. Assim, Alana Haim é uma das três irmãs da banda Haim, com a qual Anderson tem mantido uma admirável colaboração artística, realizando vários dos seus telediscos (todos disponíveis no YouTube, sugiro, para começar, Now I’m In It). Cooper Hoffman é filho do grande Philip Seymour Hoffman (1967-2014), actor que Anderson dirigiu várias vezes, desde o seu primeiro filme, Passado Sangrento (1996), até The Master - O Mentor (2012).
Mais do que nunca, o cinema de Anderson vive, aqui, da vibração muito física dos actores. Os sobressaltos da sua energia, a exposição contraditória dos seus afectos contaminam o olhar (e os movimentos) de uma câmara de filmar que participa em todos os instantes com a proximidade ambígua de uma verdadeira personagem. Nesta época de tantas máscaras digitais, desvalorizando o labor específico dos actores, redescobrimos, assim, o valor insubstituível da presença humana, reavivando um classicismo de Hollywood que tem a sua matriz tutelar na obra de Elia Kazan, o autor que, há 60 anos, realizou Esplendor na Relva.

Geografia & cultura

Gary e Alana conhecem-se no dia em que os alunos do liceu de Gary estão a ser fotografados para o álbum de curso. Ela tem 25 anos e trabalha como assistente de fotografia, ele tem 15 anos e, ali mesmo, convida-a para sair… O pitoresco do resumo está longe de fazer justiça à riqueza emocional dos labirintos que Licorice Pizza vai percorrendo, incluindo um jantar em casa de Alana (com as irmãs e os pais interpretados por toda a família Haim) e o envolvimento de Gary num negócio de colchões de água…
Paul Thomas Anderson consegue colocar em cena um universo geográfico e cultural — em boa verdade, um sistema de vida — em que se cruzam, numa espécie de magia redentora, sempre ameaçada, a banalidade do quotidiano e a sua transfiguração pelas imagens. A esse propósito, repare-se como as vivências de Alana e Gary são pontuadas pelos encontros com personagens do mundo do cinema interpretadas por actores tão conhecidos como Bradley Cooper ou Sean Penn.
Dir-se-ia que Licorice Pizza reencontra o paraíso perdido de um cinema primitivo em que a presença dos actores, o calor da pele e a verdade infinita dos rostos, dispensam qualquer efeito especial. Na certeza de que esse primitivismo possui, aqui e agora, a urgência de uma vanguarda.

10 filmes de 2021 [10]


Danielle Arbid

"Desde o mês de setembro do ano passado, não fiz outra coisa senão esperar por um homem..." — o romance de Annie Ernaux expõe o feminino como território de uma multitude de desejos que não se aquieta em nenhuma identidade, combate ou militância: "apenas" um radicalismo sem contraponto. São raros os filmes que saibam encenar a carnalidade de tudo isso sem excluir, antes parecendo intensificar, uma verdade abstracta, sem sujeito nem objecto. É isso que Danielle Arbid consegue, contando com uma actriz mais além de qualquer matriz conhecida: Laetitia Dosch.
 

* * * * *
1 - West Side Story / 2 - Time / 3 - Being the Ricardos / 4 - Spencer / 5 - Funeral de Estado /

domingo, janeiro 16, 2022

Ariana DeBose no SNL

Eis alguns momentos da mais pura vibração espectacular. Aconteceu no Saturday Night Live, com Ariana DeBose a assumir as funções de apresentadora. À actriz que interpreta a extraordinária "Anita" do West Side Story de Steven Spielberg junta-se a sempre admirável Kate McKinnon: evocam alguns dos temas mais emblemáticas do musical de Bernstein/Sondheim, numa performance em que, além do mais, a televisão encarna, em cinco breves minutos, o lema de sempre: The show must go on.
 

Herman José, Big Mano

Não será preciso recorrer a estudos "sociológicos" ou estatísticas "científicas" para reconhecermos que, nas últimas duas décadas, o Big Brother televisivo tem sido, culturalmente, um dos sistemas de comunicação mais poderosos. Da agressiva banalização das relações humanas à consagração de uma noção fútil de televisão, nele encontramos também a redução da nobre noção de espectáculo a uma mediocridade sem alternativa — há muitos anos, convém relembrar [ex.: 2010].
Honra lhe seja feita, Herman José é das poucas personalidades públicas que, ao longo deste tempo, tem sabido demarcar-se da tristeza normativa de tal conjuntura. Como? A resposta não é moral, mas profissional: através do seu trabalho criativo no domínio da comédia televisiva.
Agora, de novo, isso volta a acontecer com o seu "Big Mano Conhecidos", uma proeza de inteligência, imaginação e representação [RTP]. Ei-lo, recriando a personagem de Kasha, contracenando com Joana Pais de Brito, Maria Rueff, Gabriela Barros e Joaquim Monchique (respectivamente como Cristina Ferreira, Jaciara, Liliana e Bruno de Carvalho).
 

sábado, janeiro 15, 2022

10 álbuns de 2021 [10]

Billie Eilish

2021 foi o ano em que, a 18 de dezembro, Billie Eilish celebrou o seu 20º aniversário. Happier Than Ever surgiu a 30 de julho, afirmando uma identidade criativa a que não é estranha a serena resistência aos estereótipos "juvenis" que continuam a dominar a paisagem mediática global. Sempre com a preciosa colaboração do irmão, Finneas O'Connell (que em outubro lançaria o seu primeiro álbum a solo, Optimist), Billie é detentora de uma vibração pop que se amplia e transfigura no fluxo de um dizer/cantar que, na prática, a distingue de todos os fenómenos da mesma faixa etária. De facto, não a vemos — nem escutamos — como protótipo de uma qualquer idade, antes como expressão de uma verdade musical sem idade. Eis a faixa-título, espelho crítico de qualquer noção pitoresca de "felicidade", em performance em The Tonight Show, de Jimmy Fallon.


* * * * *

A IMAGEM: Kiki Streitberger, 2021

KIKI STREITBERGER
Concurso de beleza de camelos
Al Dhafra, Emirados Árabes Unidos (2021)
New York Times

Finneas, The Kids Are All Dying

Mais um teledisco de Finneas, de um tema do álbum Optimist: The Kids Are All Dying aí está, num perturbante registo, a meio caminho entre tragédia e caricatura.

sexta-feira, janeiro 14, 2022

10 filmes de 2021 [9]


Paul Schrader

Algumas das forças mais poderosas do mercado bem tentam desviar-nos da verdade original do cinema — personagens & actores. O certo é que a resistência envolve nomes como Paul Schrader, senhor de uma excelência narrativa que, neste caso, cruza o retrato de uma solidão radical (a do "contador" de cartas) com o espírito desencantado de uma parábola em que reconhecemos sinais, dores e traumas da história recente da América — com Oscar Isaac, um dos maiores actores deste tempo, a provar que o seu trabalho em Star Wars não passa de uma pobre figuração.
 

* * * * *
1 - West Side Story / 2 - Time / 3 - Being the Ricardos / 4 - Spencer / 5 - Funeral de Estado /

quinta-feira, janeiro 13, 2022

Billie Bossa Nova no Hotel Biltmore

I'm not sentimental
But there's somethin' 'bout the way you look tonight
Makes me wanna take a picture
Make a movie with you that we'd have to hide

Está concluído o registo de canções de Billie Eilish para a plataforma Vevo. Os cenários do lendário Hotel Biltmore, em Los Angeles, serviram para a depurada recriação de temas do álbum Happier Than Ever, celebrando uma nostalgia totalmente enredada com o imaginário e a imaginação do nosso presente — eis a pompa, o erotismo e o pudor de Billie Bossa Nova.

Sidney Poitier, in memoriam

Sidney Poitier, Adivinha Quem Vem Jantar (1967)
— à esquerda da imagem: Katharine Hepburn e Cecil Kellaway

Com a morte de Sidney Poitier — ocorrida a 6 de janeiro, aos 94 anos [CNN] — desaparece uma personalidade essencial, porque carregada de simbolismo, na história das últimas seis décadas de Hollywood. Desde logo, porque ele foi o primeiro afro-americano a ser distinguido com o Oscar de melhor actor: aconteceu em 1964, graças à sua composição em Os Lírios do Campo, de Ralph Nelson.
Tal memória ajuda-nos, aliás, a relativizar uma certa formatação ideológica, indissociavelmente artística, com que, em anos recentes, tem sido (re)contada a história dos negros americanos no interior das ficções cinematográficas dos EUA. Assim, a noção de que a "valorização" das personagens afro-americanas é um fenómeno recente, ligado às convulsões sociais da "era Trump", resulta de uma cegueira história, no mínimo, irresponsável.
Para nos ficarmos pelo caso de Poitier, lembremos a sua presença em alguns títulos emblemáticos das décadas de 50/60, no interior de um cinema de muitas clivagens — era um cinema que estava, justamente, a questionar as memórias nacionais (no "western", por exemplo) e a redefinir muitas coordenadas dos seus retratos sociais (nos dramas e melodramas).
Vimo-lo, por exemplo, em Sementes de Violência (1955), notável retrato de uma escola em convulsão com assinatura de Richard Brooks, Porgy and Bess (1959), adaptação da ópera de George Gershwin por Otto Preminger, Chamada para a Vida (1965), drama psicológico que marcou a estreia na realização de Sydney Pollack [trailer], No Calor da Noite (1967), policial urbano de Norman Jewinson, ou ainda o emblemático Adivinha Quem Vem Jantar (1967), em que Stanley Kramer encenava a particularíssima convulsão de uma família branca cuja filha decide apresentar aos pais o seu namorado negro.
São referências históricas que nos recordam algo de muito básico: não é possível conhecer a representação cinematográfica dos afro-americanos como se tal assunto tivesse sido gerado pelos filmes que descobrimos nos últimos seis meses... A herança de Sidney Poitier recorda-nos uma velha e muita básica lição: fazer história (dos filmes ou do que quer que seja) não é o mesmo que procurar no passado a "reprodução" dos temas do nosso presente.

quarta-feira, janeiro 12, 2022

10 álbuns de 2021 [9]

BadBadNotGood

Leland Whitty + Chester Hansen + Al Sow: os canadianos BadBadNotGood renovam o seu gosto primitivo por um jazz improvisado que, em qualquer caso, não tem nada de banalmente nostálgico, já que se mantém disponível para as contaminações mais diversas, do R&B ao hip hop. Congregando músicos de muitas origens, incluindo o compositor brasileiro Arthur Verocai, este quinto álbum da discografia da banda é uma colecção de aventuras livres e contagiantes — ex.: Beside April.


* * * * *