sábado, dezembro 31, 2022

Avatar já não é o que era

James Cameron

Por estes dias, os ecrãs de todo o mundo estão ocupados por Avatar: O Caminho da Água. É pena que ao filme falte uma ideia de cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 dezembro).

Tendo em conta a actual conjuntura social de consumo do cinema, não é arriscado prever que Avatar: O Caminho da Água, a ocupar milhares de ecrãs de todo o mundo, vai ser visto por muitos milhões de pessoas. E transformar-se num gigantesco fenómeno financeiro. O marketing não deixará de rentabilizar tal conjuntura. Fá-lo-á com toda a legitimidade — esperemos apenas que, por uma vez, sem colar aos números das bilheteiras o rótulo de filme “consagrado pela crítica”.
Acontece que tal expressão é sempre mentirosa: mesmo dois textos com juízos positivos (ou negativos) sobre um mesmo filme reflectem diferenças mais ou menos profundas sobre o próprio conceito de “crítica”. Neste caso, vale a pena ler alguns textos americanos (p. ex: The Washington Post, Time, Variety) e europeus (p. ex.: The Guardian, The Independent, The Irish Times) para sabermos, pelo menos, que não há nenhuma unanimidade em torno de Avatar: O Caminho da Água.
Insisto neste ponto, e não por causa da minha apreciação negativa do novo filme de James Cameron: falar dos críticos de cinema como um rebanho que se move sempre em bloco é simplesmente insultuoso. A crítica de cinema (ou de qualquer outro domínio artístico) existe num território de muitas clivagens analíticas, não poucas vezes de perspectivas dissonantes e inconciliáveis — exemplo próximo, neste jornal, poderá ser o entusiástico artigo do meu amigo Rui Pedro Tendinha (DN, dia 15) sobre este mesmo filme.
Entenda-se, por isso: avançar algumas ideias sobre Avatar: O Caminho da Água, como tento aqui fazer, não visa “desmentir” qualquer ponto de vista diferente — se pensássemos todos do mesmo modo a monotonia seria letal. O objectivo é tão só a partilha de duas ou três ideias sobre a desagregação cinematográfica e cinéfila que, a meu ver, o trabalho de Cameron reflecte e, mais do que isso, protagoniza.
Escusado será lembrar que os blockbusters não são “bons” nem “maus” apenas porque são blockbusters. E também que não está em causa o lugar emblemático que Cameron ocupa na evolução do “entertainment”, sobretudo graças a Exterminador Implacável 2 (1991), com Arnold Schwarzenegger, e o primeiro Avatar (2009), capaz de tratar a paisagem digital como nova e exuberante “personagem” épica.
O que agora está em jogo é bem diferente: importa lidar com a actual decomposição dos valores mais primitivos do cinema. A começar pela noção de plano, isto é, esse fragmento de acção que se define pela composição de um determinado espaço e pela gestão associada de um determinado tempo.
Vemos Avatar: O Caminho da Água e chega a ser patética a incapacidade, ou apenas o desinteresse, para construir algo que envolva o prazer (cinematográfico, justamente) de contemplar uma acção que aconteça num espaço específico, num tempo controlado. Prevalece a aceleração gratuita de um vulgar clip publicitário ou televisivo, como se se tratasse de construir mais de três horas de filme a partir da “estética” típica de 30 segundos de alguns flashes visuais (e outras tantas agressões sonoras). A hora final, centrada no combate entre os “bons e os “maus”, mais parece saída de um desses filmes de mercenários com que Sylvester Stallone foi destruindo as potencialidades da fase inicial da sua carreira.
Não estou a falar de nada de esotérico que o espectador não possa reconhecer de modo instintivo. Por contraste, lembremos a sequência de abertura de Aconteceu no Oeste (1968), de Sergio Leone, ou a cena do chuveiro de Psico (1960), de Alfred Hitchcock: não será necessário consultar uma tese de 500 páginas para saber que aquilo que vemos — e ouvimos! — decorre de um minucioso trabalho de amostragem do espaço, a par de uma criteriosa gestão da duração dos acontecimentos.
E não se trata de uma questão de maior ou menor “velocidade”. As coisas são menos simples e muitíssimo mais interessantes: a asfixiante lentidão de Leone gera um efeito de vertigem, enquanto a delirante angústia de Hitchcock parece congelar as medidas do próprio tempo. É isso que faz a beleza do cinema, não esta estratégia de bombardeamento visual e sonoro que comanda todos os elementos de Avatar: O Caminho da Água: o espectador é mesmo entendido como “coisa” a ser dominada pelo mais absoluto sonambulismo narrativo. No limite, somos cercados pelo desregrado “faz de conta” de muitos jogos de video, promovendo um acto de ver e ouvir em tudo e por tudo alheio aos valores específicos do cinema.
O caso agrava-se com a falta de investimento no trabalho de argumento. E não me estou a referir apenas à tacanhez dos diálogos, dignos de uma telenovela com “mensagem” ecológica. Pensemos, por exemplo, em Parque Jurássico (1993), de Steven Spielberg: será que os incríveis dinossauros digitais poderiam ter algum impacto dramático se não surgissem inseridos numa narrativa devidamente ponderada entre momentos de aceleração e hiatos de pausa ou contemplação? No caso de Avatar: O Caminho da Água, dir-se-ia que alguém julgou que uma narrativa se faz de um clímax, a que se cola outro clímax, e mais outro… Resultado: não há intensidade dramática porque, por definição, um clímax só funciona através do contraste com a sua própria ausência, espera ou expectativa.
Infelizmente, Martin Scorsese tinha razão quando chamou a atenção para o facto de haver filmes contemporâneos, nomeadamente de super-heróis — referia-se aos produtos com chancela Marvel — que “não são cinema” (leia-se o seu artigo, já um clássico da escrita sobre cinema, publicado no New York Times de 4 de novembro de 2019). São objectos que resultam de aparatos tecnológicos, lógicas de produção e estratégias de promoção que ignoram todos os valores narrativos que, de Chaplin a Spielberg, passando por Ford, Kubrick ou Coppola, sustentaram (e sustentam) a história do cinema — em particular a história de Hollywood. Avatar: O Caminho da Água é produto desse vazio artístico e conceptual. O seu alvo, porventura também a sua invenção, é um público sem memórias.

10 discos de 2022 [7]

* All of Us Flames

Na viagem criativa de Ezra Furman há uma tenacidade individual e um espírito de grupo que envolvem um desejo de revolta capaz de desafiar a crueza da morte: Tonight, tonight I'm dreaming of my queer girl gang / We who walk this deadly path / And the city that tries to kill us each night will soon bow before our wrath [Lilac and Black, lyric video aqui em baixo]. O seu álbum de 2022, o sexto a solo, expõe tudo isso com uma energia romanesca (não há, aqui, muito espaço para romantismo) que não é estranha a um desenho quase documental das histórias que nele pressentimos — no limite, deparamos com uma demanda de verdade que a própria voz de Ezra encarna de forma cristalina.


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The Gift, 2022

A linguagem mais ou menos esotérica, discretamente lúdica, de alguma ficção científica poderá ajudar-nos a descrever o álbum que a banda universal de Alcobaça, The Gift, lançou em 2022: Coral é, de facto, um belíssimo ovni que nos leva a reconhecer (se é que andávamos distraídos) que a mais genuína alegria pop não implica qualquer tipo de resistência à convivência com matrizes tradicionalmente enraizadas noutros universos, a começar pela chamada música clássica, incluindo, claro, as suas eventuais componentes corais — afinal de contas, por alguma razão sentimos que Leonard Bernstein continua na vanguarda de tudo isto.
Coral resulta, assim, uma experiência sensorial que envolve um renovado pensamento sobre a nossa relação, ou melhor, as possibilidades da nossa relação com o universo multifacetado do espectáculo. Na verdade, mesmo que isso se insinue de modo subconsciente, Coral é um acontecimento que nos leva a repensar a condição partilhada de ouvintes e espectadores, abrindo a nossa percepção à fascinante pluralidade que a criação artística pode envolver.
Nesta perspectiva, Sónia Tavares, Nuno Gonçalves, John Gonçalves e Miguel Ribeiro lembram-nos que o experimentalismo não é uma pose ostensiva de quem se julga o centro do mundo, mas um trabalho incessante de quem soube colocar a música no lugar central de uma deriva sempre disponível para um novo desafio — muitas vezes, 7 Vezes, pelo menos.


10 filmes de 2022 [6]

* CAUSEWAY 
Lila Neugebauer

Num tempo tão saturado de retóricas jornalísticas e "artísticas", será que ainda sabemos usar a palavra minimalismo sem cedermos a simplismos temáticos ou determinismos estéticos? Arrisquemos: é para uma grandeza minimalista que somos convocados nesta primeira longa-metragem para cinema da directora teatral novaiorquina Lila Neugebauer. O retrato do regresso a casa de uma jovem veterana da guerra no Afeganistão possui a intensidade e a comoção de uma tragédia suspensa — Jennifer Lawrence compõe a personagem com a contenção de uma verdadeira star, sem esquecer o contraponto dramático de Brian Tyree Henry, herdeiro da grande tradição de secundários, ou melhor, supporting actors de Hollywood.


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10 discos de 2022 [6]

* And Those Who Were Seen Dancing

Pop psicadélico — eis uma classificação que reapareceu a propósito do segundo álbum a solo da canadiana Tess Parks (nove anos depois de Blood Hot e de diversas colaborações com Anton Newcombe, dos Brian Jonestown Massacre). A justeza da expressão pode, em qualquer caso, atrair uma noção pitoresca de "nostalgia" que será francamente deslocada. Há na música — e na voz — de Parks uma intensidade do presente capaz de reunir a amarga passagem do tempo com a serenidade de uma contemplação genuinamente poética. Entenda-se: sem medo da sua solidão — para ver e ouvir: I See Angels.


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terça-feira, dezembro 27, 2022

10 filmes de 2022 [5]

* OSSOS E TUDO 
Luca Gudagnino

Provavelmente, alguns espectadores de um futuro mais ou menos distante reconhecerão no par Timothée Chalamet/Taylor Russell uma aliança capaz de simbolizar os medos, angústias e anseios deste nosso tempo tão incerto. Guadagnino filma-os como um resto esplendoroso do nosso romantismo perdido e também, tragicamente, da desagregação de qualquer noção mitológica de "juventude". O filme é um parente próximo da série que ele lançou em 2020 (We Are Who We Are), movido pela mesma nostalgia daquilo que fugiu às nossas crenças: a possibilidade do sublime.


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segunda-feira, dezembro 26, 2022

10 discos de 2022 [5]

* Bach: Sei Solo

3 Sonatas + 3 Partitas (completadas em 1720): eis um dos desafios mais extremos que a música de Johann Sebastian Bach pode colocar a um violinista. Para o grego Leonidas Kavakos, trata-se de um exercício, com o seu quê de pedagógico, em que o regresso às origens corresponde a uma "limpeza" dos academismos acumulados pelo tempo, celebrando uma alegria inigualável e contagiante — este é um extracto da Fuga da Sonata para Violino Solo, nº 1.


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António Mega Ferreira (1949 - 2022)

[ FOTO: Gerardo Santos / DN ]

Escritor, jornalista, criador de novos e fascinantes factos culturais, António Mega Ferreira faleceu no dia 26 de dezembro, em Lisboa — contava 73 anos.
Começou no jornalismo, em 1968, como redactor do Comércio do Funchal, tendo passado, entre outras publicações, pelo Jornal Novo, Expresso, O Jornal e Jornal de Letras — neste último foi chefe de redacção, cargo que também desempenhou na RTP2. Depois, como colunista, o seu nome surgiu em diversas publicações, incluindo Expresso, Diário Económico e Diário de Notícias.
O seu trabalho foi decisivo na organização da Expo'98, tendo sido seu comissário — depois, entre 1999 e 2002, presidiu ao Parque Expo. Presidiu ao Conselho de Admninistração da Fundação Centro Cultural de Belém, de 2006 a 2012. O último cargo público que assumiu foi o de director da Orquestra Metropolitana de Lisboa.
Entre 1986 e 1988, foi director editorial do Círculo de Leitores, tendo criado a revista Ler, que também dirigiu. Como autor literário, por certo a área fulcral do seu legado, deixa uma obra de várias dezenas de títulos, entre a crónica de viagens e o romance, passando pela poesia. A paixão pela Itália — e, também por isso, pela escrita "italiana" de Stendhal — é um dos pontos de fuga, afectivo e civilizacional, da sua escrita.
Estes são os dois primeiros parágrafos de 'O centro de Roma', texto de abertura do livro Roma - Exercícios de reconhecimento (ed. Sextante, 2003).

>>> Cada viajante constrói, das cidades que ama, uma ideia que raramente coincide com a lógica da geografia urbana. Na sua forma de amar uma cidade, desenha percursos, associações imaginárias, mitos instrumentais que o fazem ver as fachadas, os monumentos, as praças e as gentes de uma determinada zona como os melhores sinais identificadores do espírito do lugar. A sua noção de geografia é essencialmente afetiva, as suas preferências não são racionais, e, por isso, essa zona eleita figura no seu espírito, e para sempre, como o centro da cidade. Para mim, a Piazza della Rotonda e o Panteão são o verdadeiro centro de Roma.
Lembro-me perfeitamente da primeira vez que vi o Panteão, há mais de três décadas. Vinha da Piazza della Minerva, onde alguém me chamara a atenção para o gracioso elefante de Bernini que suporta um antiquíssimo obelisco egípcio em granito de Assuão e, antes mesmo de abordar lateralmente a entrada principal do Panteão, extasiara-me com um golpe de luz sobre a fachada ocre do modesto Albergo Abruzzi. O templo estava fechado, era talvez ao fim da tarde, e grupos de turistas vagueavam sob as colunas do pórtico. A imagem que guardo é a de um sereno abandono, mas era verão e as tardes aquecem ao calor da pedra, na Roma que amo como nenhuma outra cidade.

>>> Depoimento para a RTPN (2011) sobre três "leituras eternas".


>>> Obituário: RTP + Imprensa Nacional.

Memória de Maya

PICASSO
Maya à la poupée
16 janeiro 1938

Entre os muitos quadros familiares de Pablo Picasso, Maya à la Poupée ocupa um lugar muito especial — aí encontramos Maya Ruiz-Picasso, filha mais velha do pintor, nascida da sua relação com Marie-Thérèse Walter, retratada poucos meses depois do seu segundo aniversário; foi, no começo de 2007, uma das obras roubadas da casa de Diana Widmaier Picasso (filha de Maya), tendo sido recuperada poucos meses mais tarde. Há dias, um comunicado da família fez saber que Maya faleceu a 20 de dezembro, "pacificamente, rodeada pela família" — contava 87 anos.

domingo, dezembro 25, 2022

10 filmes de 2022 [4]

* IRMÃO E IRMà
Arnaud Desplechin

Cada novo filme de Desplechin transporta uma renovada mensagem, de uma só vez artística e filosófica: o cinema existe através dos seus corpos. Ou ainda: o primado da mise en scène e, em particular, a lógica do labor da câmara pertence aos actores — deles emana, a eles regressa. Marion Cotillard e Melvil Poupaud são, desta vez, os "mensageiros" dessa crença criativa, encarnando dois irmãos assombrados por um desentendimento por resolver, tendencialamente irresolúvel. A vibração física de tudo isso coexiste com a emoção de um teatro transcendental.


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10 discos de 2022 [4]

* Entering Heaven Alive
JACK WHITE

Jack White é um trabalhador incansável do rock, incluindo a produção (Third Man Records), as experiências colectivas (The White Stripes, The Raconteurs, The Dead Weather) e, claro, a cada vez mais importante actividade a solo. Em 2022, lançou este álbum em meados de julho, cerca de dois meses depois de um outro, intitulado Fear of the Dawn. Neste caso, prevalece uma aposta de desnudamento instrumental da maior parte das canções, de algum modo intensificando o puzzle de emoções em que tudo acontece, por vezes em tom de breve conto moral — por exemplo, Love Is Selfish.


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Tug of War, o teledisco

Os 40 anos do álbum Tug of War (lançado a 26 de abril de 1982) permitiram-nos redescobrir alguns dos respectivos telediscos, agora remasterizados em HD. Momento fulcral do trabalho de Paul McCartney a solo — entenda-se: ainda e sempre na companhia de George Martin —, a sua energia pop/sinfónica mantém-se inalterável. Eis o teledisco da canção-título, num registo pouco habitual dos bastidores da respectiva produção.

A IMAGEM: Trent Parke, 2007

TRENT PARKE / Magnum
Adelaide, Austrália do Sul
2007

sábado, dezembro 24, 2022

Isto não é um jogo de futebol

Stanley Kowalski, aliás, Marlon Brando em 1951: "Stella!"

O futebol relança uma velha pergunta cultural: como é que os seres humanos se relacionam com o olhar de uma câmara? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 dezembro).

Porque gritam os adeptos de futebol? Recuemos algumas décadas, afastemo-nos das tragédias do Mundial e, por momentos, embora correndo o risco de ofender a pátria, acreditemos que a nossa felicidade poderá não estar dependente do próximo piscar de olhos de Cristiano Ronaldo — não custa tentar. Tentemos outra pergunta: porque grita Marlon Brando?
Quem conhece o filme Um Eléctrico Chamado Desejo, de Elia Kazan, adaptado da peça de Tennessee Williams, lembrar-se-á que Brando é Stanley Kowalski, casado com Stella. Vivem no “bairro francês” de Nova Orleães. Com a chegada de Blanche DuBois, a irmã de Stella que transporta as memórias e os fantasmas de uma riqueza perdida no Mississippi, o casal vai ser profundamente abalado. Esta imagem possui o poder de um lendário ícone do cinema, a ponto de simbolizar uma personagem complexa, um actor genial e, por fim, a primeira e gloriosa geração do Actors Studio. Que acontece, então? Desesperado com o efeito perverso de Blanche nas atribulações do seu território conjugal, Stanley grita: “Stella!”
Estava-se em 1951. Que é como quem diz: a imagem pertence a uma “pré-história” cinéfila, agora muitas vezes reduzida a clichés paternalistas, esmagada pelo poder de “super-heróis” e “efeitos especiais”. Apesar da sua intensidade e beleza, incólume à passagem das décadas, a imagem remete-nos para um passado tristemente desconhecido de muitos cidadãos, a ponto de alguns participantes nos concursos televisivos tenderem a ridicularizá-lo como coisa dispensável porque, como às vezes dizem a propósito de temas desse passado, “eu ainda não tinha nascido”…
Ainda assim, falemos de gritos. Através de um rudimentar, mas sugestivo, esquematismo histórico, conseguimos perceber que, entre 1951 e 2022, algo mudou na relação dos extremismos humanos com as câmaras. Repito e sublinho: na relação com as câmaras.
O grito de Brando é apenas um detalhe de uma performance (e um filme) que, de facto, lançou o primeiro acto de uma verdadeira revolução cinematográfica. Os intérpretes ligados ao Actors Studio (de que Kazan tinha sido um dos fundadores, em 1947) definiram uma nova teatralidade dos corpos e das palavras que, paradoxalmente ou não, gerou uma fascinante linguagem cinematográfica — lembremos que nessa primeira vaga do Actors Studio encontramos nomes como James Dean, Paul Newman, Joanne Woodward, Montgomery Clift, Ellen Burstyn… sem esquecer que Marilyn Monroe também por lá passou.
“Stella!” é um grito que não se esgota na angústia amorosa do colérico e frágil Stanley. Não existe como mero apontamento “psicológico” para definir a personagem. É um gesto de representação que, em cinema — através do olho clínico da câmara de filmar —, encontra a sua razão narrativa, consolidando-se no nosso olhar como acontecimento visceralmente dramático.
A câmara existia, assim, como testemunho técnico e formal de um evento singular, singularmente humano. Saltando mais de 70 anos, deparamos com a tragédia contemporânea dos olhares: o papel revelador da câmara perdeu poder cultural, deixou de suscitar a paixão contraditória das linguagens, dando lugar à promiscuidade visual de que os nossos telemóveis e as redes (ditas) sociais são o novo teatro. No futebol televisivo, isso traduz-se num comportamento que, como se prova, se instituiu como fórmula global de espectáculo. A saber: os adeptos de futebol vêem uma câmara e desatam aos gritos para… Para quem?
Vivemos tempos de metódica desqualificação da complexidade do factor humano. Tal fenómeno é mesmo exponenciado como linguagem triunfante do quotidiano e dos seus valores “sociais”. De tal modo que berrar para o mundo — encarando a câmara como oráculo redentor, sem fronteiras, realmente global — passou a funcionar como gesto de afirmação individual e, mais do que isso, ritual de pertença a um determinado colectivo que, garantem-nos, corresponde a uma saudável forma de patriotismo.
O que, enfim, nos abre mais um inusitado espaço de reflexão. A saber: o do sofrimento. Porquê? Porque, num plano meramente contabilístico, para lá da gritaria, a palavra “sofrimento” associada ao futebol se tornou muito mais frequente do que em qualquer abordagem da guerra na Ucrânia. Como lidar com esta banalização cognitiva? Talvez escolhendo a companhia de Marlon Brando e arriscando um grito catártico: “Stella!”

sexta-feira, dezembro 23, 2022

10 filmes de 2022 [3]

* UM FILME EM FORMA DE ASSIM 
João Botelho

Cinema limitado pela dependência da palavra literária? Em vez de limitação, devermos falar de assombramento. Continuando o seu périplo pela(s) escrita(s) portuguesa(s), Botelho acolhe a poesia de Alexandre  O'Neill como quem inaugura um novo território expressivo para o cinema — o seu cinema, em todo o caso. O resultado é tanto mais desconcertante e sedutor quanto tal gesto criativo aproxima o filme dos pressupostos do musical, ainda que sem nunca anular a sua condição de farsa surreal sobre um certo imaginário português — tal ambivalência narrativa tem tanto de selvagem como de pedagógico.


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10 discos de 2022 [3]

* In/Out/In
SONIC YOUTH

O património musical dos Sonic Youth tem qualquer coisa de ilha solitária, permanentemente transfigurada pelas memórias vivas do seu mapa labiríntico. Este ano surgiu esta colecção de raridades gravadas entre 2000 e 2010, quer dizer, de algum modo sinalizando o que aconteceu entre os álbuns NYC Ghosts & Flowers (2000) e The Eternal (2009). Exponenciando uma intimidade assombrada até às fronteiras do noise, eis o espectáculo de uma esplendorosa arquitectura musical, simbolicamente delimitada pelos temas In & Out (aqui em baixo) e Out & In.


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quinta-feira, dezembro 22, 2022

A IMAGEM: Olivier Douliery, 2022

OLIVIER DOULIERY / AFP / Getty Images
Volodymyr Zelenski e Joe Biden
Casa Branca, Washington
22 dezembro 2022 [CNN]

O cinema e o seu teatro

Pierre Léon e Rita Durão:
um filme que é um jogo de espelhos

O cineasta francês Eric Rohmer escreveu uma única peça de teatro: O Trio em Mi Bemol. Rita Azevedo Gomes transforma-a numa pequena maravilha cinematográfica, percorrendo as memórias partilhadas de um homem e uma mulher — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 dezembro).

Como lidar com um filme tão cristalino e, ao mesmo tempo, tão distante dos lugares-comuns que assombram o cinema e os seus mercados? O Trio em Mi Bemol, de Rita Azevedo Gomes, desafia-nos para o reencontro com um nobre conceito de cinema: não se trata de “reproduzir” o mundo, antes de o envolver na magia primitiva que as imagens e os sons podem criar, de algum modo ampliando o próprio mundo [Berlinale].
Logo de entrada, contemplamos o rigor, de uma só vez geométrico e sensual, das imagens assinadas por Jorge Quintela, um dos grandes directores de fotografia do actual cinema português. O que, entenda-se, não quer dizer que Rita Azevedo Gomes ceda a qualquer facilidade “decorativa” ou “ilustrativa”. Nada disso: as imagens são parte essencial de toda a dramaturgia. O certo é que a matéria primordial na organização de O Trio em Mi Bemol é a palavra. Mais concretamente: a palavra teatral.
Na origem do filme está, justamente, a adaptação de uma raridade: O Trio em Mi Bemol, a única peça de teatro escrita por Eric Rohmer (1920-2010), por ele encenada em 1987, com Jessica Forde e Pascal Greggory. Trata-se de “Uma comédia breve em 7 quadros”, centrada num homem e uma mulher que já viveram juntos: os seus (sete) reencontros são pequenos bailados afectivos em que, através da proliferação dos diálogos, e alguns silêncios, ora irónicos, ora indecifráveis, as memórias comuns vão elaborando um puzzle de certezas e incertezas em que a música — o Trio para Clarinete, Violeta e Piano, K. 498, de Mozart — desempenha um papel fundamental.
Escusado será sublinhar que o texto de Rohmer leva-nos a evocar alguns títulos emblemáticos do seu cinema, em particular a série “Seis Contos Morais”, com destaque para A Minha Noite em Casa de Maud (1969) e O Joelho de Claire (1970). Aí encontramos inusitadas redes de relações (e pares homem/mulher) em que o insondável desejo de cada um vacila face à verdade oculta do desejo do outro.
Agora, através das magníficas interpretações de Rita Durão e Pierre Léon, descobrimos um desses “puzzles” em que as personagens são impelidas, de modo não necessariamente consciente, a reavaliar o que deram um ao outro ou, no limite, perderam através da própria relação que estabeleceram — dir-se-ia que qualquer amor coabita sempre com a sua própria perdição. O que, entenda-se também, não quer dizer que O Trio em Mi Bemol seja um drama angustiado e angustiante, já que, em última instância, circula por estes encontros e desencontros um humor tão contido quanto contagiante.
Rita Azevedo Gomes “acrescenta” ao labirinto criado por Rohmer um elemento de insólita distanciação: as duas personagens centrais são, afinal, intérpretes de um filme que está a ser rodado, sob a direção de um realizador que se exprime em espanhol (Ado Arrieta). Tudo acontece, então, como um milagroso jogo de espelhos e janelas. Literalmente, apetece dizer, já que a casa que serve de cenário ao filme — em Moledo do Minho, desenhada por Álvaro Siza Vieira, em 1964 — é, à sua maneira, um belíssimo teatro.

quarta-feira, dezembro 21, 2022

10 filmes de 2022 [2]

* PATHOS ETHOS LOGOS 
Joaquim Pinto, Nuno Leonel

Bastará recordar os 641 minutos de projecção deste filme, tripartido e completamente uno, para dizer que estamos perante um objecto de cinema sem equivalente nos modelos correntes de produção. O título é esclarecedor e, de alguma maneira, bíblico: da emoção da arte às formas de inteligibilidade do mundo, passando pelas dinâmicas da moral, esta é uma viagem íntima e épica cujas fronteiras (ou a sua ausência) são definidas pelo pressentimento do sagrado e a proximidade dos animais. Em resumo: uma genuína experiência existencial que celebra o cinema como o contrário dos hábitos adquiridos.


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terça-feira, dezembro 20, 2022

10 discos de 2022 [2]

* Live at Montreux Jazz Festival
ANNA VON HAUSSWOLFF

A música da sueca Anna von Hausswolff parece aceitar os inúmeros rótulos que a vão inventariando e, por assim dizer, perseguindo: "neo-clássica", "gótica", "neo-gótica", "rock experimental", "ambiência pop"... Serão todos adequados e são, sobretudo, manifestamente insuficientes. Prova real dessa pluralidade que já marcara álbuns tão invulgares como Ceremony (2013) ou Dead Magic (2018) poderá ser este concerto gravado em 2018, no Festival de Jazz de Montreux, e lançado em 2022 — um evento a que podemos acrescentar mais um rótulo: intimismo sinfónico. Para ouvir: The Truth, the Glow, the Fall.


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segunda-feira, dezembro 19, 2022

Donald Trump no 6 de janeiro
— os processos criminais

Dia histórico na vida dos EUA: a Comissão nomeada para a investigação do assalto ao Capitólio, no dia 6 de janeiro de 2020, revelou a 19 de dezembro de 2022 os resultados do seu trabalho, considerando que há razões de peso para que o comportamento do ex-Presidente dos EUA, Donald Trump, justifique a instauração de diversos processos criminais.
Um video divulgado pela própria Comissão dá conta das principais provas reunidas para justificar tais processos — eis a sua apresentação na CNN.
 

Portugalex, flawless

No panorama audiovisual português, qual o grande programa cultural do ano de 2022? Por mim, a escolha renova-se: Portugalex (Antena 1 / Antena 3), ou seja, "Portugal simplificado em poucos minutos" continua a ser um caso exemplar de uma visão que dá a ver (mesmo se é para ouvir) o cultural, não como montra oficial de um leque de vencedores mais ou menos patrióticos, mais ou menos medalhados (futebolistas, escultores, influencers, etc., etc., etc.), antes um labirinto público através do qual circulam discursos, valores e linguagens em que todos nós, mesmo de forma incauta, sobretudo de forma incauta, somos actores quotidianos.
Com Manuel Marques e António Machado a interpretar textos de Patrícia Castanheira, eis o que, com modesto charme cultural, podemos definir como um programna flawless — se o leitor ficou bloqueado na inteligência desta minha classificação, sugiro, com total carinho pedagógico, que se actualize escutando o episódio de 19 de dezembro de 2022.

10 filmes de 2022 [1]

Brett Morgen

Revisitar David Bowie (1947-2016) como personagem de uma transcendência de que ele próprio foi inventor, protagonista e mediador — eis o programa de trabalho de Brett Morgen, cumprido com um misto de rigor e obsessão, informação e delírio poético. Raras vezes vimos uma biografia capaz, como esta, de recuperar o chamado material de arquivo para, com ele, elaborar uma narrativa que, no limite, se confunde com os desejos artísticos do próprio Bowie — sem voz off, essa praga de muitos projectos que não respeitam as imagens (e os sons) que apresentam.


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10 discos de 2022 [1]

* Ocupação

Os Fado Bicha — Lila Fadista e João Caçador — são um dos grandes acontecimentos musicais de 2022 (incluindo a sua participação em Casa Portuguesa, o notável espectáculo teatral de Pedro Penim). Em primeiro lugar, através de um discurso realmente original, avesso a clichés, de defesa da representatividade da comunidade LGBTI; depois, pela capacidade de, num misto de ousadia e sensualidade, envolver tal discurso numa revisitação das matrizes clássicas do fado. A nostalgia transfigura-se, neste caso, em celebração do presente e para o presente — exemplo eloquente poderá a sua versão de Fado do Ciúme.


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sábado, dezembro 17, 2022

2001, aliás, Barbie

2001: Odisseia no Espaço em remake com... bonecas? Porque não? Enfim, o conceito não parece fácil de sustentar, mas o certo é que o primeiro trailer do filme Barbie, dedicado à boneca fabricada pela Mattel, Inc., não faz a coisa por menos, citando uma das sequências mais célebres do clássico de Stanley Kubrick estreado em 1968 — sem omitir o Assim Falava Zaratustra, de Richard Strauss. Com realização de Greta Gerwig e Margot Robbie na personagem central (mas será Barbie uma personagem?...), a estreia está marcada para o verão de 2023 — para já, fica a intrigante sedução de um trailer realmente diferente.

sexta-feira, dezembro 16, 2022

Carly Rae Jepsen na Broadway

Eis um teledisco tradicional, encenando uma canção "à maneira" da Broadway, com um pequeno twist cinéfilo... Ou, pelo menos, assim parece: Surrender My Heart, do mais recente álbum da canadiana Carly Rae Jepsen (The Loneliest Time) talvez se possa definir como um All That Jazz paródico, colocando em cena a cantora e uma realizadora não muito humilde que Jane Krakowski interpretada com o devido panache. A realização tem assinatura de Brantley Gutierrez que já trabalhou, por exemplo, com Bryan Ferry e os Metric — o cenário é o majestoso United Palace Theatre, em Nova Iorque.

quarta-feira, dezembro 14, 2022

Avatar ou a morte da cinefilia

2022, JAMES CAMERON

[Publicado em: jjlr_lopes]

Subitamente, a ousadia tecnológica reduz-se a uma banal ostentação maneirista.

Por cruel ironia, o conceito de personagem está esgotado na exibição de um pobre avatar dramático.

A noção clássica de plano (espaço e tempo) foi anulada pelo triunfo da "velocidade" como efeito superficial e único valor de espectáculo.

Restam os detritos de uma filosofia "new age" de libertação através da natureza, definitivamente enquistada numa penosa antologia de lugares-comuns.

O cinema enquanto linguagem foi substituído — em boa verdade, destruído — pela "aceleração" dos jogos de video em que tudo é possível porque não há qualquer pensamento sobre o impossível.

O real como "coisa" impossível de dizer e filmar (noção fulcral de Carl Th. Dreyer a David Lynch, passando por Jacques Tourneur) é assunto alheio a este cinema que, talvez em plena consciência das atribulações do seu trajecto industrial, desistiu de ser cinema.

Infelizmente, Martin Scorsese tem razão: há um novo sistema de poder — e poder de representação — a reger a história dos filmes, a sua prática de produção e também a imaginação e o imaginário dos espectadores.

O combate simbólico da cinefilia está perdido: o amor de cada imagem (e cada som!) é um valor que caminha para o seu apagamento.

terça-feira, dezembro 13, 2022

DAVID CRONENBERG:
"Não há maneira de escapar ao corpo" (3/3)

Através de Crimes do Futuro, reencontramos o fascínio e a inquietação do cinema de David Cronenberg. O filme chegou às salas poucos dias depois de o cineasta canadiano o ter apresentado no LEFFEST — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (21 novembro), com o título 'A pandemia e a Netflix modificaram a paisagem do cinema'.

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Cerca de oito anos antes de Crimes do Futuro, publicou Consumed, o seu primeiro romance em que corpo e Internet são questões centrais. Terá sido também um passo intermédio para chegar a este novo filme?
Sim, creio que sim. Na verdade, pensei que poderia não voltar a fazer filmes.

Podemos saber porquê?
Escrever um romance é uma experiência muito solitária, o que nem sempre é uma coisa boa, mas é muito menos “Sturm und Drang”, se assim me posso exprimir... Isto porque um filme envolve centenas de pessoas e não tinha a certeza se queria voltar a isso. Fazer o filme continuava a ser agradável, mas montar o projecto, obter financiamento, discutir o argumento, escolher os actores... comecei a pensar que eram coisas que não queria voltar a fazer. Não que eu considerasse que a minha vida criativa tinha chegado ao fim, mas talvez preferisse escrever outro romance. Até que o Robert Lantos me sugeriu que voltasse a ler o argumento de Painkillers. Não sei explicar de outra maneira. Primeiro, não foi nenhuma postura filosófica, apenas a sensação de que talvez não precisasse de fazer mais filmes... Depois, enfim, deu-me prazer, foi divertido e agora quero fazer mais.

E como foi dirigir Viggo Mortensen, Léa Seydoux ou Kristen Stewart? Escusado será dizer que não seria possível pedir-lhes que interpretassem Crimes do Futuro como se fosse a sua vida de todos os dias...
Não lhes disse isso [riso]! Gostaram do argumento, mas para um actor não é necessariamente todo o argumento que os mobiliza, mas a personagem que vão representar, qualquer coisa de excitante e revelador que a personagem lhes traz. Por isso, não precisámos de ter uma conversa de duas horas em que eu lhes explicasse a filosofia por trás do filme — não funciona assim.

A sua anterior longa-metragem, Mapas para as Estrelas, surgiu em 2014, mas pelo meio há curta que se chama A Morte de David Cronenberg. Nela podemos vê-lo prostrado junto a uma cama onde está o seu próprio cadáver. Apesar disso, e também apesar do título, talvez se possa dizer que é quase uma pequena comédia...
Será uma comédia ou uma tragédia, não tenho a certeza [riso]! Quem tiver uma visão mais pesada do assunto, dirá que se trata de Cronenberg a confrontar-se com a realidade da sua própria morte, o que até pode fazer sentido. A verdade é que nasceu do facto de eu ter participado como actor numa série sobre “serial killers”, intitulada Slasher. A minha personagem morre e, por isso, construiram aquele cadáver, modelado a partir do meu corpo, que acaba numa câmara frigorífica. Como é óbvio, eu não necessitaria de estar na rodagem daquela cena, já que o meu cadáver estava a representar a minha personagem... Mas quando mo mostraram, tive uma reacção muito intensa, senti uma estranha afinidade, afeição e ternura — daí a ideia de me filmar com o meu cadáver. Reconheço esse factor cómico, mas também é verdade que há pessoas que ficam muito perturbadas.

A IMAGEM: Jessica Chou, 2022

JESSICA CHOU
Jessica Chastain
Marie Claire (13 nov. 2022)

Angelo Badalamenti (1937 - 2022)

A sua música é indissociável do universo de David Lynch: o compositor americano Angelo Badalamenti faleceu no dia 11 de dezembro, em sua casa, em Lincoln Park, New Jersey — contava 85 anos.
Foram muitos os cineastas com quem Badalamenti colaborou, incluindo Paul Schrader (Estranha Sedução, 1990), Danny Boyle (A Praia, 2000) e Jean-Pierre Jeunet (Um Longo Domingo de Noivado, 2004). O certo é que o seu lugar na história dos filmes, e também da televisão, confunde-se com o imaginário de Lynch — para ele compôs o célebre tema de Twin Peaks, primeiro na série (1990), depois no filme Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer (1992), sem esquecer diversas contribuições, incluindo Blue Velvet (1986) e Mulholland Drive (2001). As suas ambiências, sempre ligadas a melodias de sedutor secretismo, foram instrumentos decisivos para fazer vacilar as fronteiras de qualquer realidade, nessa medida ajudando a definir e consolidar a marca "lynchiana".

>>> Angelo Badalamenti recordando a composição do tema de Laura Palmer, para Twin Peaks.



>>> Genérico de abertura de Blue Velvet.



>>> Tema da banda sonora de Um Longo Domingo de Noivado.
 

>>> Obituário em The Hollywood Reporter.
>>> Site oficial de Angelo Badalamenti.