domingo, outubro 31, 2021

Números e factos do cinema português

Problema em aberto: como pensar a relação entre a oferta e a procura?

Os números de espectadores são objectivos, mas dramaticamente insuficientes para pensar a complexidade do mercado: este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 outubro).

Consulto os mais recentes números das bilheteiras de cinema em Portugal, publicados pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA). No fim de semana de 7/10 de outubro, 007: Sem Tempo para Morrer vendeu 59.683 bilhetes; no mesmo período, o filme português A Metamorfose dos Pássaros teve 1.206 espectadores — contas redondas: 50 vezes menos que a nova aventura de James Bond. Entretanto, o filme de 007, estreado na semana anterior, já foi visto por 246.478 pessoas.
Imagino que estes dados satisfaçam os pensadores de coisa nenhuma, ciclicamente apostados em convencer-nos que os dramas do cinema português só podem ser pensados a partir daquilo que o público “quer” ver… Conheço essa sociologia de bolso há décadas. Há nela uma mal disfarçada indiferença pela vida comercial dos filmes portugueses: tratar-se-ia apenas de estabelecer a “justa” adequação entre a oferta e a procura, na certeza de que todas as responsabilidades estarão sempre do lado dos que procuram, isto é, os espectadores… A oferta, em boa verdade, não existe: os filmes chegam à noite transportados por cegonhas — ninguém os escolhe, programa ou promove.
Uma variante obrigatória desta ideologia envolve uma acusação cínica contra a “crítica”, sempre tratada como rebanho (inclusive em certas formas de publicidade), escamoteando a radical heterogeneidade do espaço crítico. Diz-se, então, que determinado filme foi consagrado pela “crítica”, mas “ninguém” o foi ver… Para tal demagogia, o filme de Catarina Vasconcelos será uma excelente cobaia, até porque arrebatou vários prémios no circuito internacional dos festivais. Ou seja: funciona muito bem “lá fora”, mas no seu próprio país “ninguém” se interessa pelo assunto.
O mesmo cinismo lembrará que a “crítica” considera que o mercado funciona mal quando os “seus” filmes eleitos não têm sucesso… A esse propósito, posso citar a simpatia que já exprimi publicamente, tanto por 007: Sem Tempo para Morrer como por A Metamorfose dos Pássaros. Mas sei que, ao fazê-lo, estou a dar um tiro no pé: não se trata de pensar a vida pública dos filmes (portugueses ou não) a partir dos juízos de valor que possam suscitar, mas sim de relembrar a necessidade de problematizar a circulação desses mesmos filmes à margem de tais juízos. Quero eu dizer: ainda que a minha avaliação destes dois filmes fosse totalmente negativa, os problemas que aqui enumero seriam rigorosamente os mesmos.
Que se passa, então? Tudo começa num problema de conhecimento e percepção — por vezes, há que reconhecê-lo, favorecido por formas de jornalismo que apenas procuram “agitação” ou “polémica” —, problema que começa na sistemática ignorância dos (outros) números do mercado.
Assim, por exemplo, no período referido, quantos ecrãs exibiram 007: Sem Tempo para Morrer? Resposta do ICA: 165 ecrãs que promoveram 1.492 sessões. Quais os números respectivos para A Metamorfose dos Pássaros? Ainda com a preciosa ajuda do ICA: 19 ecrãs, 84 sessões. Digamos, para simplificar: mesmo que a lotação média das salas de A Metamorfose dos Pássaros fosse de 500 lugares (número estupidamente exagerado para a estrutura actual do mercado), e mesmo que o filme de Catarina Vasconcelos esgotasse todas as suas sessões, ainda assim ficaria abaixo da performance de 007: Sem Tempo para Morrer.
O que está, então, em causa? Uma ideologia que, pela minha parte, profissionalmente, conheço desde os heróicos anos 70. Transmitida de geração em geração, tal ideologia mantém-se incólume e inabalável, apostada em convencer-nos — e, não tenho dúvidas sobre isso, convencer os seus mensageiros — de que os números de fim de semana são o princípio e o fim da complexidade do mercado cinematográfico. O que se recalca, então? Uma infinidade de vectores que nos podem (e devem) levar a reflectir, por exemplo, sobre o lugar do cinema no ensino (a começar pelas crianças) ou as suas diversas configurações televisivas, sem esquecer as limitações promocionais dos pequenos distribuidores e a sua dificuldade de acesso a muitas salas. Mas fiquemo-nos pelas escolhas dominantes no mercado e o modo como tais escolhas, de uma maneira ou de outra, desempenham um decisivo papel cultural na formação e formatação dos públicos.
Cultural? Mas então quem faz a cultura cinematográfica não são os artistas e, já agora, os pobres dos críticos? Serão, sim, em modesta escala, mas é tempo de desmontarmos essa noção de “cultura” como uma espécie de medicina das almas (bela metáfora, por sinal) que, mais tarde ou mais cedo, será sancionada por alguma medalha estatal. Nada disso: os mais poderosos agentes culturais do cinema estão do lado da produção, da difusão e do marketing.
Podemos imaginar uma experiência surreal: coloque-se a nova superprodução da Marvel ou da DC Comics apenas em 19 salas, tal como A Metamorfose dos Pássaros. E não se gastem os milhares de euros que habitualmente são investidos na promoção das aventuras de super-heróis. Depois disso, marcamos encontro para voltar a falar de números… Alternativa séria? Alguma disciplina para lidarmos com aquilo que Michel Foucault chamou “a grande cólera dos factos”.

sexta-feira, outubro 29, 2021

Madonna sob o signo de Marilyn

Velho aliado de Madonna, Steven Klein é autor de alguns dos mais notáveis portfolios da Material Girl (foi também ele que dirigiu a sua curta-metragem Secretprojectrevolution, em 2013). Reencontraram-se agora para criar uma colecção de fotografias para a revista V, elegendo Marilyn Monroe como modelo inspirador — e, mais especificamente, as lendárias imagens obtidas por Bert Stern, cerca de seis semanas antes da morte de Marilyn (a 4 de agosto de 1962), depois reunidas no livro The Last Sitting.
Como refere Klein, "não estávamos interessados em recriar as imagens com exactidão, antes, mais importante, explorar as relações entre fotógrafo e modelo." A publicação inclui uma entrevista com o dramaturgo e actor Jeremy O. Harris, nesse caso sob o signo de James Baldwin e das suas palavras que Madonna escolheu como lema de Madame X: "Os artistas estão aqui para perturbar a paz." Entenda-se: a paz ilusória do conformismo e do ódio ao pensamento.

12 violinos de Antonio Stradivari

12 Stradivari é exactamente aquilo que o seu título anuncia. A saber: um álbum em cujas gravações foram utilizados 12 violinos fabricados pelo lendário Antonio Stradivari (1644-1737). O desafio de lidar com tão preciosos objectos foi assumido pela notável violinista holandesa Janine Jansen que, contando com a colaboração do pianista inglês Antonio Pappano, recria peças de Manuel de Falla, Tchaikovsky, Schumann, Ravel e Brahms, entre outros — uma preciosidade.
Aqui ficam os gloriosos 3 minutos e 45 segundos de Liebesleid, composição de Fritz Kreisler publicada em 1905.

quinta-feira, outubro 28, 2021

"Dune": a aventura continua [1/3]

Frank Herbert

Dune é uma das mais ambiciosas super-produções dos últimos tempos: do romance de Frank Herbert ao filme de Denis Villeneuve, é toda uma ideia de juventude que persiste e se renova — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 outubro).

Chegou a versão cinematográfica de Dune, do norte-americano Frank Herbert (1920-1986), assinada pelo canadiano Denis Villeneuve. Reza a lenda — que, neste caso, coincide com a história verídica — que Herbert recebeu respostas negativas de quase duas dezenas de editores antes de conseguir publicar o seu livro, em 1965. Há qualquer coisa de desconcertante e irónico na memória dessas dificuldades, quanto mais não seja porque logo em 1966 o romance seria consagrado com o Prémio Hugo, da World Science Fiction Society, e o Prémio Nebula, atribuído pela associação de escritores de ficção científica dos EUA (distinção criada nesse mesmo ano).
Apesar das vendas moderadas da primeira edição, Dune rapidamente adquiriu a dimensão de fenómeno popular, transformando-se numa referência de culto para várias gerações de leitores, com perto de 20 milhões de cópias vendidas — no mercado português, está disponível uma tradução, Duna, de Jorge Candeias (Relógio D’Água, 2020).
Criando uma saga futurista que tem tanto de tragédia familiar como de parábola política, o visionário Herbert talvez não pudesse prever que o seu livro estivesse agora envolvido numa polémica cultural e económica que, em qualquer caso, é de raiz cinematográfica. Em especial nos meios cinematográficos dos EUA, está instalada uma intensa discussão motivada pelo lançamento simultâneo de Dune nas salas e no streaming.
Villeneuve foi um dos primeiros a protestar contra tal decisão, em novembro de 2020, quando a Warner Bros. anunciou que, nos EUA, as suas produções para 2021 estreariam ao mesmo tempo nos cinemas e na HBO Max. Em agosto, voltou a lembrar que não estava satisfeito com a decisão, já que o filme foi todo ele concebido como “um tributo à experiência do grande ecrã”; para ele, ver Dune num televisor é qualquer coisa como “conduzir um barco a motor numa banheira.” Ainda assim, acrescentou que os dirigentes da Warner ficaram muito satisfeitos com os resultados, acreditando que o estúdio não irá desistir da “Parte II” prevista desde o início do projecto [entretanto, já confirmada].

A música, a estética e a ética
de The Velvet Underground

Paul Morrissey, Andy Warhol e Lou Reed:
memórias novaiorquinas dos anos 60/70

Com The Velvet Underground, Todd Haynes revisita as memórias da banda de Lou Reed e John Cale através de um invulgar trabalho documental: a linguagem do cinema nasce, aqui, da energia de uma conjuntura eminentemente experimental — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 outubro).

Foi um dos grandes acontecimentos do Festival de Cannes do passado mês de julho. E nem o facto de ter sido mostrado extra-competição retirou brilho à sua passagem ou esbateu a sua importância cinematográfica e simbólica. The Velvet Underground, de Todd Haynes (AppleTV+), é mesmo um daqueles objectos para ficar em lugar de destaque na história das relações entre cinema e música: um documentário sobre a lendária banda novaiorquina de Lou Reed e John Cale, cruzando história e mitologia das décadas de 1960/70, longe de qualquer banal acumulação de materiais de arquivo.
Seja como for, na base do projecto está, justamente, uma gigantesca colecção desses materiais, em grande parte disponibilizada depois do falecimento de Lou Reed (em 2013, aos 71 anos de idade). Nesse aspecto, a sua mulher, Laurie Anderson, foi decisiva para criar as necessárias condições de acesso de Todd Haynes a muitos registos (visuais e sonoros) até agora inéditos.
O volume de tais registos é absolutamente impressionante: o realizador e os seus colaboradores na montagem (Affonso Gonçalves e Adam Kurnitz) trabalharam a partir de nada mais nada menos que 600 horas de material filmado e ainda perto de 8 mil fotografias. Como se faz um filme a partir dessa avalanche de imagens e sons? Eis a questão…

Sob o signo de Warhol

Em Cannes, na conferência de imprensa da equipa de The Velvet Underground, Todd Haynes sublinhou o facto de qualquer abordagem da banda não poder deixar de envolver a sua estranheza aos modelos convencionais de preservação do trabalho musical. Dito de outro modo: se se quisesse apenas evocar os Velvet a partir de registos “oficiais” dos seus concertos, provavelmente não haveria material suficiente para organizar uma longa-metragem.
Por um lado, a banda alheou-se das regras de organização então dominantes no mundo do rock, das gravações em estúdio ao registo das performances ao vivo. Ao mesmo tempo, isso não significa que tenha havido da parte dos seus elementos uma sistemática resistência a serem filmados. Bem pelo contrário, sublinhou Todd Haynes: “Não havia material de promoção ou registos de concertos. Havia, isso sim, um contexto marcado por uma extraordinária vanguarda cinematográfica.”
Havia, antes de tudo o mais, Andy Warhol, padrinho artístico dos Velvet que esteve muito longe de se limitar a conceber a mítica gravura da banana que serviu de capa The Velvet Underground & Nico (1967), primeiro álbum da banda. Então a desenvolver muitas experiências cinematográficas tendo por base o seu estúdio (The Factory), Warhol usava também o cinema como motor de congregação dos mais contrastados talentos. É por essa altura, aliás, que filma, com Paul Morrissey, Chelsea Girls e The Velvet Underground and Nico: A Symphony of Sound (ambos de 1966). Sem esquecer a referência tutelar de Jonas Mekas na cena artística de Nova Iorque — o filme é dedicado à sua memória.
Com uma presença importante nos depoimentos do filme, John Cale insiste em sublinhar a milagrosa conjugação de sensibilidades e experiências que esteve na base do fenómeno The Velvet Underground — e talvez também da sua efémera odisseia (cinco álbuns editados entre 1967 e 1973, no final já sem John Cale nem Lou Reed). Nessa perspectiva, podemos dizer que as suas canções nasceram de um magma de referências em que as heranças da chamada música erudita se cruzam com o radicalismo de um rock genuinamente experimental.

O ecrã fragmentado

Tudo isto talvez pudesse ser tratado através de uma voz off mais ou menos jornalística, lendo um comentário que “explicasse” e “descrevesse” o que nos vai sendo mostrado. Enfim, esse academismo já deu origem a alguns documentários interessantes… mas The Velvet Underground está longe de se acomodar às suas matrizes.
Deparamos, assim, com um espantoso tratamento do “look” do filme, fragmentando de forma delirante, por vezes à beira do surreal, o próprio espaço do ecrã. Dir-se-á que se trata de uma solução prática para integrar a maior quantidade possível de documentos disponíveis. Mas não: Todd Haynes consegue criar um fascinante fluxo de palavras, canções, fragmentos de filmes, fotografias, etc., etc., que acaba por funcionar como uma derivação — estética e ética — do universo em que a banda existiu.
Até certo ponto, muitos momentos de The Velvet Underground fazem lembrar o aspecto de um ecrã de computador em que vão proliferando as janelas de acesso aos mais variados “conteúdos”. Neste tempo em que a tecnologia favorece inusitados cruzamentos formais, o paralelismo talvez não seja exagerado (e o próprio Todd Haynes não terá sido indiferente a tal possibilidade). De qualquer modo, não estamos perante uma banal ostentação técnica — em boa verdade, o cinema inventa a sua linguagem através da invenção que herda da própria música.
Afinal de contas, convém não esquecer que Todd Haynes é autor do admirável I’m Not There (2007), representando a figura de Bob Dylan através de outro tipo de fragmentação, isto é, seis actores (incluindo Cate Blanchett!). Agora, com The Velvet Underground, a aposta consiste em reconverter e reinventar a própria arte de documentar através dos meios específicos do cinema. Será preciso acrescentar que estamos perante um dos grandes filmes de 2021?

terça-feira, outubro 26, 2021

Billie Eilish em tom austero

... apenas com as teclas a cargo de Finneas. E, claro, toda a mágoa da voz de Billie Eilish. Eis a canção de 007: Sem Tempo para Morrer, agora na sua mais austera (porventura mais bela) performance — aconteceu no festival da revista The New Yorker.

segunda-feira, outubro 25, 2021

"A escolha do Facebook" [citação]

>>> Isto não é um assunto que se esgote no facto de alguns utilizadores das redes sociais se mostrarem agressivos ou instáveis, ou que um lado se radicalize face ao outro; isto é sobre a escolha do Facebook no sentido de crescer por qualquer preço, tornando-se uma companhia de quase um trilião de dólares, optando pelos seus lucros contra a nossa segurança. 

— citada na revista Time,
25 out./1 nov. 2021

A redenção de Bretman Rock

Nestes tempos de incerteza, eis uma curiosa lição moral sobre a nossa evolução “social”: um narcisista precisa de espelhos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 outubro).

Bretman Rock, filipino, nascido em 1998, faz aquilo que quase todos os jovens “influencers” fazem. A saber: tem uma conta no Instagram em que publica muitas selfies, com predomínio para retratos ao espelho a fazer caretas.
Ao escrever este texto, verifico que já vai em 1632 publicações. No dia 10 de julho, por exemplo, descubro-o numa série de cinco fotos a “actualizar” informação sobre a sua cabeleira. O portfolio, consagrado por mais de um milhão de gostos, inclui um esclarecimento transcendental: “Nem sequer sei porque sinto a necessidade de publicar uma actualização do crescimento do cabelo…”
Ao que parece, a sua carreira começou no YouTube com videos dedicados a conselhos de beleza, conduzindo-o, entre outras glórias, ao protagonismo de um “reality show” na MTV (Following: Bretman Rock). Este ano tem estado a publicar, também no YouTube, uma série de videos (30 Days With: Bretman Rock) que, a certa altura, o apresentam como um explorador da selva lutando pela sobrevivência…
[Wikipedia]
Surgiu, assim, uma perturbante dúvida existencial: como é que um “influencer” dado aos valores da elegância, especialista nos artifícios do guarda-roupa, consegue enfrentar as agruras de uma floresta recheada de ameaças? No episódio publicado a 14 de julho, um dos jovens comentadores da série coloca-nos a par da tragédia iminente: “Bretman na floresta, sem ligação com o mundo, sem espelhos, é uma situação em que temos um narcisista sem um reflexo de si próprio — e isso é muito difícil…”
Imagine-se! De qualquer modo, nos momentos finais desse mesmo episódio, depois da felicidade que foi conseguir fazer uma fogueira no meio da floresta, Bretman confessa-nos que, agora, se vê como o “rei da selva”. E desemboca na pergunta que, modestamente, já tinhamos pressentido: “Qual é a minha mensagem para o universo?” Pois bem, eis a resposta: “Sinto que estou preparado. Estou preparado seja para o que for que tenham reservado para mim.”
Nada disto é excepcional. Decorre mesmo de uma regra institucionalizada pelo poder mais perverso da chamada globalização: ser jovem no mundo virtual que se autoproclama “social” passou a confundir-se com a duvidosa arte de dizer banalidades e celebrar a irrisão. Como alguns jovens, precisamente, há cerca de um ano e meio, algures no Algarve, respondendo a uma reportagem televisiva sobre a crescente ameaça do Covid-19: sem máscara, garrafa de cerveja na mão, perguntavam com comovente candura qual era o problema — eram “apenas” jovens, estavam “apenas” a divertir-se.
Tudo isto seria apenas mais uma colecção de sinais sobre o estado da nossa cultura juvenil, não se desse o caso de, subitamente, Bretman Rock emergir como um pioneiro: este mês, tornou-se o primeiro homem assumidamente gay a surgir na capa da Playboy (que, desde o verão de 2020, se publica apenas online). Num post do Instagram, ele próprio enaltece o simbolismo da publicação: “Ter um homem na capa da Playboy é um grande compromisso com a comunidade LGBT.” Além do mais, até agora, só dois homens tinham figurado na capa da revista: Hugh Hefner, seu fundador, e o rapper Bad Bunny.
Podíamos tentar diversificar o âmbito destas memórias e reflectir, por exemplo, no papel que a revista teve na contra-cultura das décadas de 1960/70, publicando autores como John Updike, Joyce Carol Oates, Doris Lessing, Kurt Vonnegut ou John le Carré. Sem esquecer, naturalmente, que comprávamos a Playboy “para ler os textos”. Mas não é disso que se trata — acontece que há em tudo isto um silêncio ensurdecedor que não bate certo.
[playboy.com]
De facto, durante décadas, a Playboy foi alvo de muitos discursos normativos, denunciando aquilo que seria a degradação do género feminino. Aliás, ao lidarmos com a herança de tais discussões, corremos o risco de relançar as muitas formas de histeria (ideológica e moral) que se alimentam da ideia de que a palavra “homens” define um conjunto homogéneo, estável e absurdamente esquemático, do mesmo modo que a palavra “mulheres” corresponde a um exército uno e indivisível que apenas existe para combater a malvadez congénita dos ditos “homens” — nunca entendi de que modo tal esquematismo pode ajudar a combater, por exemplo, a estupidez masculina e os crimes do machismo.
A questão que coloco é de outra natureza. Visa, sobretudo, o pântano ideológico em que a aceleração mediática — e o ilusório liberalismo das nossas sociedades “avançadas” — tantas vezes nos obriga a viver. Dito de outro modo: como e porquê, em alguns discursos, um facto classificado como degradante para uma mulher (entenda-se: posar na Playboy) se transfigura em militância redentora só porque o protagonista é, agora, um homem gay?
Há aqui qualquer coisa de cínica instrumentalização mediática. Há mesmo um conceito de “gay” que seria salutar questionar. No limite, esse conceito exprime-se através de formas obscenas como o discurso de um autor de telenovelas que, há mais de uma década, defendia a pertinência “social” dos seus escritos. Porquê? Porque, dizia ele, abordava dois temas fracturantes: o “aborto” e os “homossexuais”. Velha lição narrativa: quando uma personagem, seja ela qual for, de sexo evidente ou obscuro, não passa de um peão incauto para “ilustrar” um tema, o mínimo que se pode dizer é que a sua irredutibilidade como pessoa está reduzida a coisa indiferente e descartável.
O que, bem entendido, não exclui o reconhecimento de que Bretman Rock, ainda que autor de uma medíocre filosofia capilar, surge na Playboy em magnífica fotografias assinadas por Brian Ziff. “Sou uma Coelhinha!”, escreve ele, eufórico, no seu Instagram — já tem mais de dois milhões de “likes” e um deles é meu.

domingo, outubro 24, 2021

"A Love Supreme", ao vivo em Seattle

Eis a matéria de que se faz a história — ou refaz. A Love Supreme, de John Coltrane, um dos objectos incontornáveis do património jazzístico, surgiu nas lojas em janeiro de 1965. Cerca de nove meses mais tarde, a 2 de outubro, o saxofonista reunia o seu ensemble em Seattle, no Penthouse Club, para uma performance do álbum que foi registada pelo músico e professor Joe Brazil (que viria a participar, como flautista, noutro álbum de Coltrane, Om, lançado postumamente em 1968). A gravação permaneceu inédita até ao ano da graça de 2021...
Ainda e sempre com chancela Impulse, perante A Love Supreme / Live in Seattle dir-se-ia que revemos o futuro do jazz refeito em exercício presente de revisitação do passado — aqui fica a primeira parte, Acknowledgement; em baixo, o mesmo tema tal como surge no álbum original.




>>> Sobre A Love Supreme — programa 'Jazz United', rádio WBGO (Newark, New Jersey).

sábado, outubro 23, 2021

Eric Rohmer
ou a arte de cair em graça

ERIC ROHMER
(1920-2010)

Mestre da Nova Vaga, Rohmer volta a estar em foco através do regresso ao circuito comercial, em cópias restauradas, das suas “Comédias e Provérbios”: são seis filmes para redescobrirmos a subtileza de uma obra seduzida pelo poder das palavras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 outubro).

Que viva Eric Rohmer! O cineasta de A Minha Noite em Casa de Maud (1969) está de volta às salas escuras com as reposições, em cópias restauradas, das suas “Comédias e Provérbios”. A confirmar, além do mais, que a sua trajectória artística, livre e libertária, não necessariamente liberal, se construiu também através do gosto do método, isto é, do prazer da ordem.
Primeiro foram os “Seis Contos Morais”, incluindo A Minha Noite em Casa de Maud e outras pérolas como A Coleccionadora (1967) ou O Joelho de Claire (1970). Cada um deles colocava em cena, justamente, as atribulações da ordem através de personagens na corda bamba dos seus desejos, tentando recobri-los ou redimi-los com a sanção de uma moral. Seguiram-se estas “Comédias e Provérbios”, também seis filmes, rigorosamente cúmplices enquanto conjunto, cada um evoluindo como “ilustração” de uma máxima ou provérbio (também de natureza moral) sobre os ziguezagues das vidas amorosas, as turbulências das relações sociais e os estranhos laços entre dizer a verdade e mentir.
São, afinal, produtos da década de 80, de alguma maneira podendo simbolizar as dinâmicas de um tempo de profundas alterações nos usos e costumes de França (e não só): A Mulher do Aviador (1981), O Bom Casamento (1982), Paulina na Praia (1983), Noites de Lua Cheia (1984), O Raio Verde (1986) e O Amigo da Minha Amiga (1987). Vendo ou revendo agora estes títulos, é impossível não pensar que Rohmer, de forma discreta mas concisa, se assumia como um resistente à globalização dos mercados (e respectivos conceitos de espectáculo), optando por um cinema de sereníssima austeridade técnica, por vezes utilizando mesmo a película de 16mm.

Elogio das palavras

Mesmo à distância, estes são filmes de uma desconcertante, e também fascinante, actualidade temática. E convenhamos que não é uma distância banal: afinal de contas, o primeiro, A Mulher do Aviador, foi rodado há 40 anos. Sem esquecer que uma das regras que aqui prevalece é eminentemente realista. A saber: colher sinais do quotidiano para registar o “ar do tempo”, as vivências de cidadãos anónimos, enfim, as peripécias que fazem de cada vida individual um trajecto irredutível, por certo enredado com outras vidas, mas nunca nelas se diluindo.
Nesta perspectiva, A Mulher do Aviador dá o mote, aplicando uma regra clássica de desenvolvimento melodramático — A conhece B, B encontra C, e por aí fora… —, regra que Rohmer encena como um bailado de exposição e ocultação, coisas precisas e desejos em movimento. Nele encontramos um jovem empregado dos correios que, ao fazer uma visita surpresa à namorada, a encontra com outro homem; ao tentar descobrir quem é esse homem, tem um encontro fortuito com uma adolescente que, qual detective improvisada, se dispõe a ajudá-lo a descobrir o que está a acontecer…
O que assim se expõe são pedaços de vida de diversos meios sociais e profissionais, como se Rohmer procurasse elaborar um pequeno bloco-notas sobre o “aqui e agora” em que os filmes nasceram. Em O Bom Casamento, por exemplo, tudo começa com uma jovem que quer deixar de ser “amante” para encontrar o seu lugar de “esposa”; em Paulina na Praia, uma adolescente descobre que o cenário idílico de umas férias de verão se vai transfigurando numa comédia de paixões imaginadas ou imaginárias…
O caso de Paulina na Praia é tanto mais sugestivo quanto Rohmer aposta numa colagem (obviamente ambígua) à moda narrativa de “erotização” do corpo como sintoma de liberdade — coisa que, como bem sabemos, continua a proliferar por aí. Assim, por um lado, os cenários da praia e a sensualidade da luz transportam sugestões discretamente sexuais; ao mesmo tempo, por outro lado, a vibração de tudo isso não está no “look” dos fatos de banho, mas sim, tal como nos “Contos Morais”, na avalanche das palavras. Ao contrário do que proclama um velho e preguiçoso lugar-comum, as palavras não servem para interromper ou esclarecer a acção — com Rohmer, as palavras são a própria acção.

O avesso da comédia

Tudo isto aconteceu através de uma galeria de actores que Rohmer, em grande parte, “inventou”. Por vezes, no capítulo das actrizes, literalmente: é o caso de Amanda Langlet, a intérprete de Paulina, então com 15 anos. Outras vezes, criando laços que podem prolongar-se de um filme para outro, como se assistíssemos ao seu desenvolvimento (físico e artístico): lembremos os exemplos de Anne-Laure Meury, em A Mulher do Aviador e O Amigo da Minha Amiga, Béatrice Romand, que já vinha de O Joelho de Claire, reaparecendo em O Bom Casamento e O Raio Verde, ou Arielle Dombasle, aqui presente em O Bom Casamento e Paulina na Praia. Sem esquecer, em Noites de Lua Cheia, a presença emblemática de Pascale Ogier, falecida um ano mais tarde, contava 25 anos.
A introdução de cada filme por uma “frase/provérbio” pode, em última instância, definir o seu programa moral. Por exemplo, Paulina na Praia, logo após o título recorda que “quem muito fala, pouco acerta”, enquanto O Raio Verde convoca Rimbaud: “Oh! Esses dias que incendiavam os nossos corações!” E porque, em tudo isto, a questão da graça divina define uma espécie de horizonte latente — explicitado em A Minha Noite em Casa de Maud, precisamente, através da invocação de Pascal —, talvez possamos dizer que o cinema de Rohmer é uma arte de virar a comédia do avesso. Ou como diz o povo: mais vale cair em graça do que ser engraçado.

Mitski, "Working for the Knife"

Lembram-se de Bury Me at Make Out Creek (2015)? Ou de Puberty 2 (2016)? Ou ainda do maravilhoso Be the Cowboy (2018)? Pois bem, Mitski, americana de origem japonesa, está de volta com o single Working for the Knife, uma bela aventura de solidão e teatralidade, filmada com verve por Zia Anger.

I cry at the start of every movie
I guess 'cause I wish I was making things too
But I'm working for the knife

I used to think I would tell stories
But nobody cared for the stories I had
About no good guys

I always knew the world moves on
I just didn't know it would go without me
I start the day high and it ends so low
'Cause I'm working for the knife

I used to think I'd be done by twenty
Now at twenty-nine, the road ahead appears the same
Though maybe at thirty I'll see a way to change
That I'm living for the knife

I always thought the choice was mine
And I was right but I just chose wrong
I start the day lying and end with the truth
That I'm dying for the knife

Bernard Haitink (1929 - 2021)

[Wikipedia]

Lendário maestro holandês, dirigiu algumas das mais prestigiadas orquestras europeias e americanas: Bernard Haitink faleceu no dia 21 de outubro na sua casa de Londres — contava 92 anos.
Começou por dirigir a Royal Concertgebouw Orchestra, em 1961, na sua cidade natal, Amsterdão. Ao longo de mais de meio século de actividade teve a seu cargo, por exemplo, a Boston Symphony Orchestra, a London Philharmonic Orchestra e a Bavarian Radio Symphony Orchestra. Especialmente focado nas sinfonias clássicas, conduziu ciclos integrais de Beethoven, Brahms, Tchaikovsky, Bruckner e Mahler. Entre as dezenas de títulos da sua discografia inclui-se, por exemplo, a integral das composições orquestrais de Debussy. Em 2019, publicou Dirigieren ist ein Rätsel ("Conduzir é um mistério"), livro autobiográfico em que contou com a colaboração dos jornalistas Peter Hagmann e Erich Singer.

>>> Amsterdão, 25 dezembro 1977: Bernard Haitink dirige a Royal Concertgebouw Orchestra — Sinfonia nº 1, de Gustav Mahler.


>>> Obituário na revista Gramophone.
>>> Bernard Haitink na Concertgebouw.

sexta-feira, outubro 22, 2021

Camané na NPR (2015)

Agora que está a chegar Horas Vazias, novo álbum do sempre admirável Camané, eis uma preciosa raridade: o fadista a cantar "apenas" com guitarra portuguesa e guitarra (sem contrabaixo), a cargo de José Manuel Neto e Carlos Manuel Proença, respectivamente. Aconteceu no dia 15 de maio de 2015, numa especialíssima edição dos 'Tiny Desk Concerts', na NPR. No programa estão:

* Abandono (David Mourão-Ferreira, Alain Oulman)
* Cansaço (Fado Tango) (Luís Macedo, Joaquim Campos)
* Saudades trago comigo (António Calém, trad.)

quinta-feira, outubro 21, 2021

Eastwood & Bogdanovich

Eis duas efemérides que nos remetem para a história de Hollywood há 50 anos: foi, de facto, há meio século que ocorreram as estreias de Play Misty for Me/Destinos nas Trevas, notável "thriller" que marcou a estreia de Clint Eastwood como realizador, e The Last Picture Show/A Última Sessão, de Peter Bogdanovich, retrato amargo e doce da juventude "made in USA" marcada pela guerra da Coreia — o primeiro surgiu no dia 20 de outubro de 1971; o segundo dois dias mais tarde. São filmes que, além do mais, exemplificam a energia de um cinema americano "mainstream", muito diferente e, sobretudo, muito mais inventivo do que a produção actual dominada pelas rotinas de super-heróis e afins...
... a ver ou rever num ecrã perto de si. 



terça-feira, outubro 19, 2021

Dito e escrito por Manoel de Oliveira

Visita ou Memórias e Confissões (1982)

Para lá dos filmes, de Manoel de Oliveira recebemos uma herança feita de palavras que não perderam actualidade: agora em livro — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 outubro).

Começo a folhear Ditos e Escritos, de Manoel de Oliveira, agora editado pela Casa do Cinema Manoel de Oliveira (Fundação de Serralves). Reencontro o fulgor artístico, misto de génio criativo e instinto teórico, que sempre me fascinou no autor de Amor de Perdição (1978). Sem que isso, entenda-se, implique o recalcamento dos momentos em que, ao longo das décadas, o seu trabalho me suscitou dúvidas, resistências e interrogações — mal ou bem, tudo isso está publicado e, se não penso o mesmo todos os dias e para sempre, não renego o que aconteceu.
A minha profunda admiração pela sua pessoa não depende de qualquer somatório pueril de filmes “bons” e “maus”. Tal admiração não é estranha aos momentos que com ele pude partilhar, nomeadamente quando, juntamente com Rodrigo Areias, Oliveira aceitou o nosso convite para participar no plano de produção cinematográfica de Guimarães 2012 - Capital Europeia da Cultura. Mas não quero empolar factos e memórias. Se com ele tive alguma intimidade, essa é uma dimensão que, transfigurada pela certeza da morte (tão intensa nos seus filmes), persiste na relação de permanente redescoberta da sua obra.

Cinema e audiovisual

No excelente prefácio de Ditos e Escritos, António Preto recorda, muito justamente, que o seu legado existe para lá de qualquer liofilização cultural (enfim, a expressão é minha). Identificando as “diferentes temáticas” que foram interessando o cineasta, escreve o director da Casa do Cinema Manoel de Oliveira: “O impasse congénito que, até hoje, foi reiteradamente colocando o cinema numa encruzilhada entre a expressão artística e a indústria do entretenimento é uma dessas preocupações que, em muitos dos textos de Oliveira, se desdobra numa reflexão sobre o capital e o comércio, as cedências ideológicas ou, mais recentemente, sobre a distinção entre cinema e audiovisual.”
A certa altura (num texto de 9 de julho de 2014, no jornal Público), Oliveira demarca-se dos termos ancestrais da discussão sobre os dinheiros das práticas artísticas em Portugal, considerando mesmo que, para um actor ou um bailarino, “a sua derradeira glória poderá vir a ser morrer pobre.” E sugere que se pergunte, “por exemplo, quanto aufere o administrador da Lusomundo/Zon, o abafador, aquele que esconde os nossos filmes, e que não responde mais depois de se assegurar com um contrato, e que não responde nem a nós, nem a quem quer ver e mostrar os filmes portugueses.”
São palavras de desencanto de um velho combatente (Oliveira viria a falecer em 2015, contava 106 anos). São palavras que, a meu ver, simplificam de modo pouco feliz a história das relações entre filmes portugueses e o decisivo sector da distribuição/exibição. Até porque, entre outros factos objectivos que podemos lembrar, em 2008, por ocasião do centenário de Oliveira, a mesma empresa que ele refere produziu uma monumental edição de uma parte significativa da sua obra em DVD (contendo um livro que tive o privilégio de coordenar, contando com a colaboração de Jorge Leitão Ramos).
Para lá das muitas clivagens artísticas e económicas que marcaram (e marcam) a produção de filmes em Portugal, creio que podemos e devemos reter uma lição pedagógica inerente à herança de Oliveira — herança que, bem entendido, nada tem a ver com a cobardia dos que sempre difamaram a obra e o homem, desaparecidos em combate desde 2015. É uma lição eminentemente política. A saber: será sempre um equívoco tentar problematizar os dramas do cinema português a partir de uma única entidade, supostamente conhecida, supostamente uniforme e unívoca, a que, por ignorância, preguiça ou chantagem, se dá o nome de “público”.

Arte e cultura

Não tenho soluções mágicas (aliás, nem mágicas nem de qualquer outra natureza). Ainda assim, acredito que valeria a pena perguntar onde estão as causas e quais são os efeitos de um desenvolvimento do audiovisual que, no pós-25 de abril, não consolidou uma indústria portuguesa de cinema, mas fez nascer uma indústria de telenovelas e “reality shows”. Seria, sobretudo, útil perguntar qual a energia cultural de uma sociedade em que o registo audiovisual mais poderoso não são os filmes (portugueses ou não), mas as telenovelas — há 43 anos, convém explicitar. E, já agora, interessarmo-nos também pelo que tem sido feito nas nossas escolas para que crianças e adolescentes sejam formados, não como consumidores de videoclips, mas, por exemplo, como espectadores de filmes.
Num texto do ano 2000 (intitulado “Arte, Arte, Arte”), Oliveira lembra que a cultura não se esgota na “arte”, assim desmontando essa pobre visão burocrática que passou a dominar a sociedade portuguesa, incluindo a maior parte dos pensadores da classe política, encerrando a vida cultural na “especialização” artística. E acrescenta que “cultura é todo o resultado do que vai acontecendo, do que se vai fazendo hábito, como é comer, o modo como se come, e como é feita a comida, como é o futebol e o comportamento dos que jogam e dos que assistem ao jogo, bem como todos os mais etc., resultantes das vivências e dos trabalhos do homem.”
Esta maravilhosa disponibilidade para as “vivências” e “trabalhos” que temos e fazemos recusa qualquer abstração — como Oliveira esclarece, é visceralmente humana e desafia-nos para lidarmos com factos concretos, evitando generalizações paternalistas e reconfortantes. O mesmo texto desemboca numa bela metáfora: “Uma mão tem cinco dedos; lá porque agrade mais a alguém vê-la esculpida com seis dedos, a mão correta continua com cinco.” Ou ainda, em nome de uma cristalina aritmética: “Por tal razão, duas vezes dois são quatro e não devemos dizer que são cinco alegando que terá mais audiência.”

segunda-feira, outubro 18, 2021

James Bond
— a morte fica-lhe tão bem

Lashana Lynch e Daniel Craig

Adiado várias vezes devido à pandemia, 007: Sem Tempo para Morrer o 25º oficial de James Bond está nas salas escuras: Daniel Craig despede-se da personagem em tom de requiem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 setembro).

Neste nosso pobre mundo narrativo, a própria noção de mito foi instrumentalizada, não poucas vezes reduzindo o espectáculo a uma pornografia de excessos visuais. Em cinema, as novas gerações estão mesmo a ser mesmo ensinadas (não pela crítica de cinema, já agora) a conceber o mito como banal acumulação de efeitos especiais: quanto mais cidades destruídas, mais “mitológicos” são os super-heróis… Uma tristeza, enfim. Em qualquer caso, ainda nos resta James Bond. Com filmes melhores ou piores, o agente secreto ao serviço de Sua Majestade Britânica persiste como personagem visceral do nosso imaginário da aventura. Por isso mesmo, aguardámos com expectativa a estreia do 25º título oficial da saga. Inicialmente agendado para abril de 2020, várias vezes adiado devido à pandemia, aí está 007: Sem Tempo para Morrer.
O mito, convém lembrar, não nasce necessariamente de factos artificiosos que se “sobrepõem” aos cenários da nossa realidade. Não é um efeito especial, mas sim uma narrativa. O seu poder é tanto mais envolvente quanto, quase sempre, o mito lida com os limites da própria vida, quer dizer, a permanente e enigmática possibilidade da morte.
Assim é o novo Bond, quinto e último protagonizado por Daniel Craig. O título português nasce, aliás, de um equívoco de interpretação da própria lógica da acção: não se trata de sugerir que o herói vive “sem tempo para morrer”, mas sim de sublinhar que “este não é o tempo de morrer”.

Requiem por 007

Digamos que o tempo da ironia já passou. Lembremos, a esse propósito, um momento exemplar de Dr. No/Agente Secreto 007 (1962), primeiro filme da série, obviamente com Sean Connery. Nele encontramos uma linha de diálogo que define todo um entendimento frívolo da morte, a ponto de atrair um perverso gosto caricatural; assim, a certa altura, os maus da fita perseguem Bond num carro funerário, conseguindo ele que se despistem e caiam num precipício; quando alguém lhe pergunta como é que tudo aquilo acontecera, Bond esclarece, com desconcertante objectividade: “Creio que iam a caminho de um funeral.”
Desta vez, não se trata exactamente de um funeral, mas de um requiem. Porquê? Porque Bond reaparece a viver uma frágil utopia romântica, a ponto de a sigla 007 pertencer agora à agente Nomi (Lashana Lynch). No esplendoroso cenário de Matera, no sul de Itália, a sua relação com Madeleine (Léa Seydoux), vinda do anterior Spectre (2015), parece já não pertencer ao universo Bond. É certo que, tal como Madeleine observa, ele mantém o tique de olhar constantemente por cima do ombro à procura de algo ou alguém ameaçador… Mas o tom é, por assim dizer, pós-Bond: como se fossemos assistir à crónica íntima de uma serena reforma.
Não será assim, claro. Até porque, desde muito cedo, o filme nos recorda que há labirintos por conhecer e percorrer. “Porque é que eu haveria de te trair?”, pergunta Madeleine, ao que Bond responde com a secura que, nele, é uma espécie de assinatura emocional: “Todos temos segredos. Só que ainda não chegámos aos teus.”
Na prática, 007: Sem Tempo para Morrer vai contrariando a placidez dos primeiros momentos, fazendo regressar o arqui-inimigo Blofeld (Christoph Waltz), também presente em Spectre, complementando-o com Lyustsifer Safin (Rami Malek), cérebro purista que, à maneira dos “pequenos homens” que Bond identifica na história da humanidade, tenta impor o paraíso através do triunfo do inferno. Convenhamos que, no plano narrativo, a tragédia que se pressente teria ganho se o filme realizado por Cary Joji Fukunaga tivesse arriscado mais na tensão psicológica, mostrando alguma contenção no habitual “caderno de encargos” do fogo de artifício da acção física.

Bond e as crianças

Dito isto, importa reconhecer que o confronto inicial, em Matera, entra para a galeria das melhores cenas de perseguição do universo Bond, ao mesmo tempo que, infelizmente, o essencial protagonismo de Safin se apresenta claramente prejudicado pelo desaparecimento da personagem durante todo bloco central do filme (além de que a interpretação “robotizada” de Malek não parece ser a solução mais interessante para a personagem).
Fica esse magma simbólico da morte que o filme vai preservando como potencial narrativa trágica. Não faltará, por certo, quem detecte nos “nano-robots” do programa genético de Safin — susceptíveis de contaminar os corpos humanos, demonizando todos os contactos de uma pele com outra pele — uma bizarra premonição do Covid-19… Sem qualquer fundamento, como é óbvio.
Seja como for, o que realmente nunca tínhamos visto no universo Bond são as personagens infantis. Sem qualquer decorativismo, entenda-se: Madeleine na excelente cena inicial, defendendo-se do ataque de Safin e tentando proteger a mãe alcoólica; mais tarde, a filha da própria Madeleine, agarrada à sua boneca de malha, tal como a mãe ameaçada por Safin. Uma e outra são personagens estranhas ao imaginário das histórias de espionagem protagonizadas por qualquer encarnação de 007, em qualquer época. Definem um horizonte afectivo capaz de justificar o enfrentamento da morte. Estranhos tempos, Mr. Bond — seja bem-vindo.

À procura de Willie Boy

[1969]

Na história do “western” americano, O Vale do Fugitivo (1969) é um título decisivo na abordagem das relações entre brancos e índios — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 setembro).

Há dias, ao escrever sobre o novo e belíssimo filme de Clint Eastwood, Cry Macho - A Redenção, fui conduzido a algumas memórias do “western”. Com a acção situada na transição das décadas de 1970/80, o novo filme é, de facto, uma variação sobre as matrizes clássicas desse género que se consolidou como um panorama, pleno de contrastes e contradições, da história da formação dos EUA — em particular, como bem sabemos, das convulsões da expansão para Oeste.
O misto de serenidade e desencanto que define a personagem interpretada por Eastwood não é estranho à sua própria trajectória como actor e cineasta, desde o exílio italiano como intérprete dos “westerns spaghetti” de Sergio Leone (culminando em O Bom, o Mau e o Vilão, de 1966), até aos “westerns” que ele próprio assinou e protagonizou. Lembrei-me, em particular, do revivalismo de Bronco Billy, produção de 1980, um dos primeiros títulos em que Eastwood expõe as ambivalências da história e da mitologia, interpretando um “cowboy” de um circo do século XX, desse modo expondo a crueza da memória face aos artifícios do espectáculo.
E lembrei-me também de dois admiráveis “westerns” de 1969, essenciais para compreendermos como este género de filmes integra as mais drásticas interrogações das suas próprias raízes culturais: A Quadrilha Selvagem, de Sam Peckinpah, e O Vale do Fugitivo, de Abraham Polonsky. O primeiro, obviamente num contexto bem diferente, lida com os dramas da fronteira EUA/México, centrais na narrativa de Cry Macho; o segundo apresenta uma prodigiosa reflexão crítica sobre as relações entre brancos e índios, recordando a odisseia de Willie Boy, um índio da tribo Paiute, fugindo às autoridades com a sua companheira branca, depois de ter morto o pai dela em situação de legítima defesa.
No contexto português, O Vale do Fugitivo teve especial importância simbólica, já que ilustrou uma dinâmica de exibição em que a dialéctica entre “arte” e “comércio” estava longe do maniqueísmo que triunfou nas últimas décadas, em especial na sequência da formatação do consumo imposta pelo marketing de super-heróis e afins. Assim, em maio de 1971, o filme inaugurou o cinema Apolo 70 (em Lisboa, na av. Júlio Dinis, em frente ao Campo Pequeno), sala em que, graças à excelente programação da responsabilidade do crítico e cineasta Lauro António, prevaleceu a ideia de um cinema plural, sem barreiras temáticas ou estéticas.
Abraham Polonsky
Agora, O Vale do Fugitivo existe como uma preciosidade esquecida — não está disponível no cabo ou nas plataformas de streaming, nem sequer existe edição portuguesa em DVD. Na história atribulada e fascinante dos anos 60/70 de Hollywood, a sua importância é tanto maior quanto marcou o regresso à realização de Abraham Polonsky (1910-1999), um dos profissionais de Hollywood que viu a sua carreira interrompida pela acção do Comité de Investigação das Actividades Anti-americanas durante o período “maccartista” — não realizava um filme desde A Força do Mal (1948), policial com John Garfield.
Robert Redford foi fundamental na criação das condições de produção para que Polonsky regressasse à realização, assumindo também o papel do xerife que persegue Willie Boy, interpretado por Robert Blake (que, dois anos antes, tinha surgido em A Sangue Frio, de Richard Brooks, adaptado do livro de Truman Capote). A relação entre os dois homens transporta os sinais de um novo paradigma histórico: se o xerife representa um conceito de lei e ordem gerado nas convulsões do Oeste, Willie Boy é alguém que, na sequência da “transferência” dos índios para fora das suas terras de origem, se afirma como personagem que já não pertence a nenhum lugar.
O título original, Tell Them Willie Boy Is Here (à letra: “Diz-lhes que Willie Boy está aqui”), exprime de forma contundente, contaminada por uma profunda mágoa poética, essa deriva de alguém que a história condenou a um exílio interior. Quando, agora, deparamos com os discursos politicamente correctos a quererem convencer-nos que o cinema americano “acordou” nos últimos anos para as feridas íntimas do seu país, fica a dúvida se se trata de irresponsabilidade ou provocação. Ou apenas de cândida ignorância.

domingo, outubro 17, 2021

SOUND + VISION na FNAC
— James Bond & etc.

Sábado, dia 16, ao fim da tarde, estivemos na FNAC/Chiado: Bond, James Bond foi o tema central — não apenas o recente 007: Sem Tempo para Morrer, mas algumas memórias, filmes e canções de uma saga que começou em 1962, com Dr. No/Agente Secreto 007. E também outras marcas cinematográficas da vida e morte dos espiões. Aqui ficam algumas imagens e sons dessa sessão, lembrando a próxima:

SOUND+VISION Magazine
O regresso dos Beatles
FNAC/Chiado, 20 novembro 2021 (18h30)

>>> Goldfinger (1964), Shirley Bassey.
 

>>> A View to a Kill (1985), Duran Duran.
 

>>> The Conversation/O Vigilante (1974), Francis Ford Coppola.

sábado, outubro 16, 2021

007, sob o signo da Guerra Fria

007 - Ordem para Matar (1963)

Nos livros de Ian Fleming e em várias aventuras do Agente Secreto 007, a Guerra Fria funcionou como um fundamental pano de fundo geopolítico e dramático — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 setembro).

Agora que se fecha o ciclo Daniel Craig, vale a pena lembrar que, muito antes do seu “reinado”, depois do lançamento de 007 -Licença para Matar, no verão de 1989, os filmes de James Bond tiveram o maior interregno de sempre. Assim, decorreram mais de seis anos até que, em novembro de 1995, surgisse GoldenEye.
Dois factores terão contribuído para essa espera invulgarmente longa — afinal de contas, Sean Connery protagonizara os primeiros cinco filmes de Bond entre 1962 e 1967. O primeiro desses factores foi a substituição do intérprete de 007: depois de apenas dois filmes, Timothy Dalton cedeu o lugar a Pierce Brosnan. O segundo factor envolvia a geopolítica: o fim da Guerra Fria, “sinalizado” pela Queda do Muro de Berlim, a 9 novembro 1989, dissipou o próprio pano de fundo dramático que alimentava as aventuras de Bond.
A estreia de Bond nas salas de cinema — em 1962, com Dr. No/Agente Secreto 007 — ocorrera cerca de um ano depois do início da construção do Muro de Berlim. A divisão do mundo em dois blocos dominados por EUA e URSS estabeleceu essa “Cortina de Ferro” que muitos filmes da época começaram de imediato a reflectir. Para nos ficarmos pelos exemplos mais directos, e também mais interessantes, lembremos duas referências clássicas: O Espião que Saíu do Frio (1965), de Martin Ritt, tendo como base o romance de John le Carré [capa], e o “thriller” Cortina Rasgada (1966), de Alfred Hitchcock, com o par Paul Newman/Julie Andrews.
Claro que os filmes de James Bond nunca foram crónicas políticas “sobre” a Guerra Fria, quanto mais não seja porque os seus assumidos artifícios dispensam qualquer abordagem realista dos respectivos conflitos. Mas é um facto que os romances de Ian Fleming foram coleccionando sinais e sintomas das tensões Este/Oeste que os filmes integraram, não necessariamente de modo linear.
Lembremos o exemplo da organização criminosa SPECTRE, obviamente apelando a alguns paralelismos simbólicos com o KGB: surge logo no filme Dr. No, baseado no romance homónimo de 1958; o certo é que Fleming apenas a introduziu em Thunderball, lançado em 1961 (e adaptado ao cinema em 1965). Isto sem esquecer, claro, que um dos seus romances tem o título irónico de From Russia with Love (à letra: “Da Rússia, com Amor”) — publicado em 1957, seria filmado em 1963 (entre nós estreado como 007 - Ordem para Matar).
Seja como for, o súbito impasse dos filmes de 007 em finais da década de 80 não poderá ser “racionalizado” através dessa decomposição da sua conjuntura política original. Acontece que a própria paisagem cinematográfica, tanto em termos industriais como comerciais, estava dominada por produtos bem diferentes. 1989 é, de facto, o ano de lançamento do brilhante Batman, de Tim Burton, filme que para o melhor e, sobretudo, para o pior deu origem à “nova era” dos super-heróis. E é também o ano de Indiana Jones e a Grande Cruzada, de Steven Spielberg, em que o aventureiro interpretado por Harrison Ford voltava a reunir-se com o seu pai [poster]. O intérprete do pai transportava memórias de outras aventuras. O seu nome? Sean Connery.