quarta-feira, setembro 29, 2021

St. Vincent
— ser e não ser uma estrela pop

The Nowhere Inn

Foi um momento forte do IndieLisboa: através do filme The Nowhere Inn, Annie Clark supera os domínios do documentário para construir uma ficção… quase documental — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 setembro).

Face a um filme tão sedutor e intrigante como The Nowhere Inn (apresentado na secção musical do IndieLisboa 2021), talvez seja inevitável evocar — e, num certo sentido, invocar — alguns modelos históricos. Estamos perante um retrato, que procura ser um auto-retrato, de St. Vincent, a “persona” artística de Annie Clark, fazendo-nos recordar toda uma genealogia de documentários sobre música e músicos que podemos definir a partir do pioneirismo de Dont Look Back (1967), de D. A. Pennebaker, sobre a lendária digressão britânica de Bob Dylan, em 1965, marcada pela integração “escandalosa” da guitarra eléctrica.
Tendo em conta que The Nowhere Inn se organiza a partir da vontade de a sua estrela se dar a conhecer “realmente”, para lá das regras do marketing, é a referência de Na Cama com Madonna (1991), de Alek Keshishian, que reaparece também em toda a sua sofisticação temática e actualidade simbólica. Tal como a Material Girl, Annie Clark aposta na utilização da matriz documental, não tanto para uma banal acumulação de registos de canções, antes para revelar uma intimidade paradoxal: expondo o que, por princípio, não decorre de uma lógica promocional, desse modo afirmando-se como alguém que, tendo conquistado o direito de se exprimir na primeira pessoa, define as regras e fronteiras dessa exposição.
Na verdade, o filme realizado por Bill Benz pode suscitar estes paralelismos, mas só mesmo por calculada e, num certo sentido, pedagógica ironia. Dito de outro modo: estamos perante aquilo que se convencionou chamar um “mockumentary”, isto é, uma ficção totalmente controlada que finge ser um documentário, nessa medida questionando os próprios limites daquilo que é possível “documentar”. Trata-se, afinal, de um sub-género com muitas variações históricas, incluindo o genial Zelig (1983), de Woody Allen, e mais recentemente os filmes de Sacha Baron Cohen com a personagem de Borat.
O argumento de The Nowhere Inn foi escrito por Annie Clark e Carrie Brownstein (vocalista e guitarrista da banda Sleater-Kinney). São elas que surgem como personagem principais, assumindo os seus próprios nomes: Carrie foi convocada pela amiga para conceber e realizar um documentário capaz de, precisamente, revelar Annie “como ela é”… Através de peripécias mais ou menos burlescas, as coisas vão-se complicando, quanto mais não seja porque Annie resiste a abordar a prisão do seu pai, optando antes por formas de comportamento que Carrie considera fúteis e irresponsáveis, apenas reforçando os clichés mediáticos em torno do estatuto de estrela pop.
Há em tudo isto um perverso efeito de verdade. O pai de Annie esteve mesmo preso por crimes de fraude financeira (o mais recente álbum de St. Vincent, Daddy’s Home, lançado em maio, tem como ponto de partida emocional o fim da pena de prisão do pai, em 2019). Ao mesmo tempo, o filme está longe de se esgotar em qualquer descrição documental, ainda que paródica, a pouco e pouco adquirindo um desencanto que pode fazer lembrar David Lynch, entre a iminência da tragédia e o filtro cruel do sarcasmo. Sem esquecer as situações insólitas que, inesperadamente, nos fazem lembrar um genuíno gosto clássico do “entertainment” — lembro, em particular, um momento de palco que evoca, de forma muito directa, uma cena de Serenata à Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen.
Escusado será dizer que, em última instância, The Nowhere Inn supera a condição de filme “sobre” música (até porque as magníficas canções de St. Vincent, quase sempre incompletas, ocupam um tempo relativamente reduzido). Com metódica inteligência, Annie Clark e Carrie Brownstein exploram as contradições desse terreno pantanoso que, no nosso mundo em rede, leva muitos cidadãos anónimos a confundir a energia da sua identidade com a multiplicação de “selfies” no Instagram.
E se é verdade que Annie Clark sempre se distinguiu por uma rigorosa contenção na exposição da sua vida privada, não é menos verdade que tal contenção não exclui o gosto de (alguma) partilha com os outros. A frase promocional no cartaz de The Nowhere Inn não podia ser mais certeira: “A identidade é uma obra de arte”.

segunda-feira, setembro 27, 2021

"She Dies Tomorrow"
— as imagens que (não) vemos

Kate Lyn Sheil

Foi uma reverlação do IndieLisboa: She Dies Tomorrow é um genuíno e fascinante ovni, ou seja, um filme sobre os limites do nosso racionalismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 agosto), com o título 'Uma personagem à espera do amanhã'.

Apresentado na secção ‘Boca do Inferno’ do IndieLisboa (21 agosto/6 setembro), o filme americano She Dies Tomorrow, escrito e realizado por Amy Seimetz, é um genuíno ovni, por certo um dos mais fascinantes objectos que este ano chegou aos ecrãs portugueses. Mesmo a sua eventual inscrição no género de terror, começando por ser duvidosa, acaba por se revelar inadequada: nada do que nele acontece decorre desse marketing obsceno que, à custa de casas assombradas e personagens de adolescentes obrigatoriamente estúpidos, tem saturado o mercado até à náusea.
Em boa verdade, She Dies Tomorrow depende “apenas” da mais ancestral perplexidade cinematográfica de que nenhum género detém o exclusivo: podemos encontrá-la na ficção ou no documentário, numa tragédia romântica de Max Ophüls ou numa comédia de Jerry Lewis. A saber: quando vemos uma imagem, o que é que, realmente, estamos a ver?
Peter Greenaway, autor de uma obra toda ela pontuada por tal perplexidade (com humor q. b.), gosta de dizer que o cinema atravessou o século XX “atrasado” em relação às outras artes, em particular a pintura e a música. Porquê? Porque, em termos gerais, não se libertou da filiação narrativa no romance do século XIX, menosprezando as potencialidades expressivas ou simbólicas das imagens (e também dos sons).
O cepticismo de Greenaway é mais militante do que científico (o que, bem entendido, lhe confere uma energia contagiante), mas vale a pena não esquecermos um facto rudimentar: em décadas recentes, essa amorosa perplexidade face ao que vemos, ou julgamos ver, tem sido metodicamente destruída por forças poderosas como os estúdios Marvel e os seus super-heróis. Há pelo menos duas gerações que foram (des)educadas para acreditar que o “fantástico” nasce do número de planetas ou galáxias que possam explodir, cena sim, cena não… Muitos espectadores dessas gerações não “conseguem” ver um filme de André Delvaux ou Ingmar Bergman porque, para eles, a sua vertigem narrativa se confunde com uma forma de “lentidão”.
Evitemos, por isso, esse vício cultural (ao serviço de uma cultura da redundância) que obriga a que a excelência de um filme se defina pela acumulação de “temas” e “mensagens”. O que conta é a experiência intelectual e sensorial que, através dele, se encena e acontece. She Dies Tomorrow é mesmo sobre aquilo que o título diz: Amy, uma jovem que acaba de comprar uma casa, sente ou pressente que vai morrer… Quando? “Amanhã”. Como? Porquê? Através de quê?
MAGRITTE
O Filho do Homem (1946)
Amy Seimetz, realizadora que também é actriz (vimo-la, por exemplo, em Alien: Covenant, de Ridley Scott), possui uma evidente capacidade de fazer valer as interpretações para lá de qualquer esquematismo “psicológico”. Assim, a admirável Kate Lyn Sheil compõe uma Amy que não se pode definir apenas como uma conjugação de medo e paranóia. Dir-se-ia que ela existe como encarnação de um fantasma que se limita a enunciar uma cândida evidência: todos vamos morrer. E todos serão contaminados pela sua impalpável presença.
O contexto de pandemia não será, por certo, estranho à gestação de um filme como She Dies Tomorrow. Ainda assim, não estamos perante uma espécie de “ilustração” das nossas angústias face ao covid-19. Desde logo, porque o filme possui a paradoxal alegria de uma parábola intemporal; mas sobretudo porque o que nele se encena é a insensatez de um mundo em que nenhuma redenção parece possível. Como num quadro de Magritte (mas sem o seu humor), descobrimo-nos numa paisagem em que as coordenadas clássicas de espaço e tempo já não funcionam; as próprias variações cromáticas parecem restos de uma transcendência que desistiu dos humanos.
She Dies Tomorrow celebra um dos mais ancestrais poderes da montagem cinematográfica: nenhuma imagem permite adivinhar a que vem a seguir — a linguagem é uma forma de “suspense”. Ou ainda: o mundo escapa à nossa vontade de racionalização. Será essa, em última instância, a lição minimalista do filme: mesmo na proximidade da morte, importa não desistir de contar histórias. A arte narrativa é, afinal, a mais sofisticada forma de prazer.

domingo, setembro 26, 2021

Eleições, eleitores & abstenções

Eis uma peripécia cognitiva que as noites eleitorais normalizaram. Assim, nos primeiros momentos, surgem as previsões da percentagem de abstencionistas. Desta vez (mais uma vez), todas as fontes apontam para uma mesma hipótese: os que não votaram poderão ser metade dos eleitores portugueses.
Durante alguns minutos, algumas (poucas) vozes mostram a sua preocupação, por vezes avançando mesmo com um cliché conhecido: "As abstenções podem atingir um valor histórico." Encerrada esta performance, o facto desaparece rapidamente de qualquer actualidade informativa, não se fala mais no assunto e ficamos todos a aguardar um ou dois anos (até ao próximo acto eleitoral) para voltar a olhar o imponderável grafismo: 50%.
Como pensar esta brevíssima ansiedade? Talvez começando por um dado objectivo: o fenómeno é cíclico, quer dizer, passou a ser integrado como elemento "natural" da nossa vida política — pensemos em 2011, por exemplo.

"The Walking Dead"
— o pesadelo colectivo (3/3)

Andrew Lincoln, intérprete de Rick Grimes

Começou como a adaptação de uma banda desenhada e transformou-se num fenómeno global: a série televisiva The Walking Dead resistiu mais de uma década: a 11ª temporada chegou a Portugal no dia 23 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 agosto), mantendo-se aqui a referência ao dia 23 como uma data "posterior".

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Com a evolução da série, os “mortos que caminham” deixaram mesmo de ser os únicos monstros que ameaçam a vida humana, já que os seres humanos, não poucas vezes, rivalizam com a sua brutalidade. Num dos mais extraordinários momentos de toda a série (10ª temporada, episódio 19), Aaron (Ross Marquand) tenta convencer o padre Gabriel (Seth Gilliam) que a violência dos Whispereres não reflecte o que são as outras pessoas, ao que Gabriel responde: “As pessoas más não são a excepção à regra. São a regra.”
Frank Darabont
Nada disso é estranho ao espírito da banda desenhada The Walking Dead surgida em 2003, escrita por Robert Kirkman, primeiro com desenhos de Tony Moore, depois Charlie Adlard. E o mínimo que se pode dizer é que os zombies vieram para ficar, já que o conjunto de ramificações que foi sendo gerado é francamente impressionante.
Escusado será sublinhar que o lançamento da primeira temporada da série, a 31 de outubro de 2010, veio ampliar de forma espectacular as potencialidades expressivas do universo de The Walking Dead — em linguagem de gestão financeira, criou uma “franchise”. E nem mesmo as convulsões legais motivadas pelo descontentamento do primeiro produtor da série, Frank Darabont, impediram que tal “franchise” se consolidasse.
Na altura já consagrado graças a dois filmes baseados em Stephen King — Os Condenados de Shawshank (1994) e À Espera de um Milagre (1999) —, Darabont foi responsável pelo chamado “desenvolvimento para televisão”, realizou o episódio piloto e colaborou em argumentos de vários episódios da primeira temporada. A meio da segunda temporada, afastou-se, considerando que a entidade produtora, o canal AMC, não estava a pagar-lhe a percentagem de lucros que lhe era devida. O caso foi-se arrastando nos tribunais, tendo chegado a uma conclusão apenas este ano, em meados de julho: segundo a revista Forbes, Darabont vai receber 200 milhões de dólares.
Hoje em dia, The Walking Dead é um labirinto de títulos ou, como dizem os profissionais do marketing, “produtos”. A começar pelas derivações também em forma de série: Fear the Walking Dead (a sétima temporada arranca este ano, em outubro) e The Walking Dead: The World Beyond (com segunda temporada também a partir de outubro). Entretanto, para lançamento em 2023, está em desenvolvimento uma série ainda sem título, centrada em duas das personagens principais, Carol e Daryl, interpretadas, respectivamente, por Melissa McBride e Norman Reedus. Andrew Lincoln deverá reaparecer em pose de xerife, mas agora em cinema — o projecto inicial, anunciado em 2018, previa três filmes centrados na figura de Rick Grimes.
Se acrescentarmos a tudo isto as séries para a internet, os videojogos, os brinquedos e até um parque temático (situado na região de Surrey, Inglaterra), poderemos dizer que The Walking Dead é, de uma só vez, uma ficção apocalíptica e um dos mais fortes conceitos contemporâneos de espectáculo. Como em qualquer tragédia clássica, vogamos, entre fascínio e inquietação, tentando compreender as razões da regra e os poderes da excepção. Com uma nuance que vale a pena referir: falamos dos zombies de The Walking Dead, mas por uma opção que vem da BD de Kirkman há uma palavra que nunca é usada nestas histórias. Qual? Zombie.

sexta-feira, setembro 24, 2021

"Nevermind", 30 anos

Objecto central no interminável combate com os limites do nosso imaginário de redenção, eis um álbum sempre presente, capaz de refazer o labirinto do tempo para o tempo em que, ciclicamente, o reencontramos — Nevermind, segundo registo de estúdio dos três que os Nirvana editaram, foi lançado no dia 24 de setembro de 1991, faz hoje 30 anos.
Há um pré-Nevermind, como há um pós-Nevermind. Como se fossem, de facto, os últimos dias de um estado de corpo e espírito que, em 1994, a morte de Kurt Cobain, aos 27 anos, viria sancionar com a crueldade da história e a imponderabilidade do mito — a sua mensagem sem mensageiro foi filmada por Gus Van Sant no bem chamado Last Days (2005).
Dizer que toda a revolta do grunge desagua aqui, expondo o seu radicalismo e a sua inconsolável fragilidade, é pouco. No limite, canções como Come As You Are ou Lithium são breves e contundentes antologias de uma ideia de adolescência que já integrou o fantasma de morte que, desde o início, a assombrava — Smells Like Teen Spirit, ontem e hoje. Poupemos a invocação do futuro.

terça-feira, setembro 21, 2021

Tony Bennett & Lady Gaga — Opus 2

 

Eis a pérola deste outono. Anuncia-se como um derradeiro álbum de Tony Bennett, ele que em fevereiro de 2021 anunciou que sofre da doença de Alzheimer desde 2016. E será a sua segunda colaboração com Lady Gaga, sete anos depois de Cheek to Cheek. Desta vez, todas as canções são de Cole Porter. De duas delas já temos imagens: I Get A Kick Out Of You e Love for Sale (tema-título).



segunda-feira, setembro 20, 2021

José-Augusto França (1922 - 2021)

[ Wook ]

Nome central na história das artes e nas aventuras do pensamento sobre as artes em Portugal, José-Augusto França faleceu no dia 18 de setembro na localidade francesa de Jarzé, perto de Angers — contava 98 anos.
Começou como crítico de cinema, aos 18 anos, no jornal O Diabo — é, aliás, autor de um clássico da análise cinematográfica, Charles Chaplin, o Self-Made-Myth, originalmente publicado em francês, em 1954. Momento chave na sua trajectória artística e crítica seria, em finais da década de 40, o envolvimento com o Grupo Surrealista de Lisboa. O seu precioso legado está contido em muitas dezenas de publicações críticas, incluindo O Essencial sobre Pablo Picasso, Diálogo entre o Autor e o Crítico e O Retrato na Arte Portuguesa, além de diversas incursões pelo domínio da ficção, de Natureza Morta a A Guerra e a Paz.
Este é o registo da passagem de José-Augusto França pelo programa Câmara Clara (RTP), à conversa com Paula Moura Pinheiro no dia 18 de novembro de 1922, dois dias depois de ter completado 90 anos.


>>> Obituário no Diário de Notícias.
>>> José-Augusto França no site da Fundação Gulbenkian.

>>> Registo de um debate, promovido pelo Centro Nacional de Cultura, em 1990, sobre a Exposição do Mundo Português de 1940, com moderação de José-Augusto França.

domingo, setembro 19, 2021

SOUND+VISION
— o regresso à FNAC

Elise LeGrow e Nick Cave [video].
Dois festivais: Cannes e Eurovisão.
O novo álbum de Marisa Monte.
A aventura digital dos Abba.
E a memória emocionada de Charlie Watts.
Foi muito bom voltarmos à FNAC do Chiado, agora no piso de baixo, com tecnologia e visual renovados — brevemente, o registo da sessão estará disponível online.
O próximo encontro está marcado para 16 de outubro, com James Bond no sumário.

sexta-feira, setembro 17, 2021

SOUND+VISION regressa à FNAC
— sábado, dia 18, 18h30

Na agenda temos Marisa Monte e Abba, Cannes e Eurovisão.
E também a memória de Charlie Watts.
Sem esquecer que, depois de uma tão grande ausência, importa fazer um breve balanço do que vimos e escutámos — e também do modo como ver e escutar se tornou algo diferente.
Dito de outro modo: as sessões SOUND+VISION estão de volta.

Sessão SOUND + VISION
FNAC Chiado
18 de setembro, 18h30

quinta-feira, setembro 16, 2021

Dua Lipa em versão japonesa

Levitating, canção do segundo álbum de Dua Lipa, Future Nostalgia, tem um novo visual: um teledisco criado pelo NOSTALOOK, grupo de animação japonês, evocando a tradição anime — nostalgia pós-moderna.

segunda-feira, setembro 13, 2021

O dinheiro e a sua pornografia

Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street: para onde estão a olhar?

De que falamos quando falamos de dinheiro? Entre lágrimas e euforia, as recentes imagens de Lionel Messi relançam a pergunta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 agosto).

Há uma perversão simbólica no espaço das nossas culturas. Exactamente: culturas, no plural — diferentes, contrastadas, não poucas vezes inconciliáveis. Que perversão é essa? O liberalismo informativo que domina as representações sociais do futebol.
Será preciso relembrar que não há nada mais cultural — entenda-se: produtor e transportador de valores — que o mundo do futebol? Afinal de contas, Cristiano Ronaldo é o mais forte símbolo de patriotismo que, todos os dias, se propõe e promove junto da nossa juventude. Nada poderia ser mais visceralmente cultural.
Essa cultura do futebol envolve algumas curiosas representações mediáticas do dinheiro. Assim, ouvimos alguns comentadores de futebol, na condição de adeptos de determinados clubes, a protagonizar uma carinhosa identificação (“nós”) com a vida financeira dos respectivos emblemas: “Gastámos X milhões para comprar o jogador A, B ou C… Ainda podemos gastar mais Y milhões…”
Nada disto, entenda-se também, tem que ver com a legitimidade discursiva de tais adeptos. Nem se trata de convocar essa ilusão segundo a qual o dinheiro existe numa espécie de vasos comunicantes que, por mera boa vontade, poderíamos equilibrar… Só mesmo por patética inocência poderemos pensar que o rendimento anual de Jorge Jesus (3 milhões de euros, segundo notícias sobre o seu mais recente contrato) seria a solução mágica para resolver, por exemplo, o imbróglio da TAP ou os dramas estruturais que afectam as populações do interior do país.
O que importa ter em conta não é a vida pessoal seja de quem for, muito menos a discussão dos méritos profissionais que lhe permitem auferir determinado rendimento. É, isso sim, o “naturalismo” das representações do dinheiro na cultura do futebol. Recorde-se como a história do cinema português regista a indignação de muitas vozes contra “dinheiro mal gasto” na produção de filmes, ao mesmo tempo que os rendimentos anuais de Cristiano Ronaldo (que davam para fazer, pelo menos, umas dezenas de filmes portugueses) são tratados como um objectivo de vida que os jovens devem integrar.
Reencontrámos tal ligeireza na maior parte dos tratamentos da mudança de clube de Lionel Messi. Vimo-lo a chorar na despedida de Barcelona; três dias mais tarde, exultava de alegria em Paris — não tenho nenhuma moral redentora para contrapor a tão brutal contraste, embora seja inevitavelmente sensível ao facto de o protagonista ser o mesmo. Senti apenas a falta de alguma representação do dinheiro neste conto moral protagonizado por Messi, quase sempre reduzido a dois clichés mediaticamente muito poderosos: primeiro, as lágrimas (“quem chora está do lado da verdade”); depois, a festa (“quem celebra desfruta de uma razão inquestionável”).
Em nome do mais básico pudor, creio que seria saudável dispensar, de uma vez por todas, os discursos altruístas sobre o “amor à camisola”. Mas não afunilemos a questão no universo do futebol, mesmo não esquecendo o seu planetário poder discursivo e político (incluindo o facto de a classe política aceitar ser câmara de eco desse mesmo poder). A questão de fundo é, aqui, o modo como vemos e representamos o dinheiro.
Em 2016, Money Monster, filme realizado por Jodie Foster, com George Clooney no papel central, colocava em cena uma situação limite (fictícia, é verdade) da pornografia mediática do dinheiro: numa subtil composição, Clooney compunha uma estrela de televisão que protagonizava um programa de “entretenimento” em que dava sugestões para o cidadão comum investir as suas poupanças… Digamos, para simplificar, que as coisas não corriam bem.
Isto sem esquecer a obra-prima de Martin Scorsese, O Lobo de Wall Street (2013), em que Leonardo DiCaprio interpretava um corretor da bolsa, Jordan Belfort (personagem verídica, neste caso). Poderá dizer-se que Scorsese se assumia como herdeiro das encenações da ganância que pontuam a história de Hollywood, a começar pelo genial Greed, realizado por Eric von Stroheim em 1924. Mas não era uma simples passagem de testemunho. Scorsese mostrava como, dos artigos de luxo à sexualidade, das palavras aos ecrãs, o dinheiro não existe como banal adereço das relações humanas — o dinheiro é um cenário e, para utilizar uma palavra que já foi demonizada e agora está na moda, uma narrativa.

Sessões SOUND+VISION
— o regresso

No dia 9 de fevereiro de 2020 estivemos na FNAC (Lisboa-Chiado) para uma das já tradicionais Sessões Sound+Vision...
Como todos sabemos, a história dos 20 meses que se seguiram está toda ela pontuada por uma palavra: pandemia.
Enfim, simplificando, é tempo de regressarmos ao cenário (renovado!) da FNAC, convidando os que nos quiserem acompanhar (escusado será sublinhar: respeitando as fundamentais regras de segurança, nomeadamente no uso de máscaras e na lotação do espaço).
Para já, aqui fica a informação de agenda:

Sessão SOUND + VISION
FNAC / Chiado
18 de setembro, 18h30

sexta-feira, setembro 10, 2021

"The Walking Dead"
— o pesadelo colectivo (2/3)

Poster da 1ª temporada

Começou como a adaptação de uma banda desenhada e transformou-se num fenómeno global: a série televisiva The Walking Dead resistiu mais de uma década: a 11ª temporada chegou a Portugal no dia 23 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 agosto), mantendo-se aqui a referência ao dia 23 como uma data "posterior".

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Esta seita de humanos [Whisperers] que resistem aos zombies disfarçando-se de zombies revelou-se, no plano dramatúrgico, uma frutuosa invenção. Desde logo, porque permitiu contornar alguma rotina em que a série corria o risco de estagnar; depois, porque potenciou uma viragem decisiva no próprio universo dramático de The Walking Dead.
Assim, a pouco e pouco, os zombies não desapareceram (longe disso, até porque os respectivos efeitos especiais foram sendo cada vez mais sofisticados), mas passaram a existir como uma espécie de assombramento global: a sua ameaça tornou-se o pesadelo colectivo que, em última instância, determina as relações de poder entre os diversos grupos humanos.
Tudo começou com os resistentes liderados pelo xerife Rick Grimes, papel que garantiu ao actor Andrew Lincoln o estatuto de estrela televisiva planetária. A sua “solidão” face aos zombies viria a ser transfigurada pelo aparecimento de novas comunidades. Primeiro, foi o grupo do “Governador” (David Morrissey) nas terceira e quarta temporadas; depois, veio o abalo de Negan, líder hiper-violento, afinal uma ameaça que “veio para ficar” — sabe-se que, de uma maneira ou de outra, estará presente na 11ª temporada, confirmando o seu intérprete, Jeffrey Dean Morgan, como outro dos rostos universais da saga. Aliás, Negan pode servir de eloquente ilustração de um célebre axioma cinematográfico que Alfred Hitchcock gostava de aplicar: “Quanto melhor for o vilão, melhor é o filme”.
Nos últimos tempos, não têm faltado as hipóteses de paralelismos “premonitórios” da série em relação ao Covid-19… Há uma evidente sedução nessa renovada ideia da ficção como algo que “antecipa” a realidade que vivemos, mas convenhamos que tal sugestão não é mais nem menos pertinente do que a evocação de muitos filmes sobre a humanidade face a ameaças virais, de A Ameaça de Andrómeda (1971), de Robert Wise, inspirado no romance de Michael Crichton, até Contágio (2011), de Steven Soderbergh.
Sem esquecer, claro, que a inspiração da série não é estranha a toda uma tradição do género de terror que pontua as mais diversas cinematografias, de Hollywood à produção asiática. Lembremos apenas dois títulos cujas matrizes têm sido infinitamente exploradas: I Walked with a Zombie (título português: Zombie), objecto típico da produção de série B, lançado em 1943, assinado por um dos seus mestres, Jacques Tourneur; e A Noite dos Mortos-Vivos, de George A. Romero, filme de 1968 que, por assim dizer, definiu o cânone da “era moderna” dos zombies (sendo Romero, precisamente, um dos seus mais empenhados criadores).
Que está, então, em jogo? Na prática, uma viragem simbólica que faz de The Walking Dead um objecto bem diferente dos clichés do terror (sobretudo cinematográfico) que, nas últimas décadas, têm saturado os ecrãs de todo o mundo. Estamos perante uma ficção apocalíptica enredada num sugestivo paradoxo: por um lado, os sinais quotidianos pertencem a um tempo vagamente futurista, mas em tudo e por tudo próximo do nosso presente; por outro lado, a lógica narrativa está marcada pelas tensões (individuais e colectivas) típicas de um “western”. Afinal de contas, Rick é mesmo um xerife. Um dos posters de lançamento da série propunha um magnífico arranjo simbólico: numa auto-estrada com uma grande metrópole em fundo (mais ou menos “novaiorquina”), estão parados centenas de veículos; do lado oposto da auto-estrada, sozinho, não num automóvel, mas no seu cavalo, Rick segue em relação à cidade.

quarta-feira, setembro 08, 2021

Edgar Morin
— o filósofo selvagem [3/3]

Edgar Morin, por Yann Legendre
Le Monde

Ao completar 100 anos de vida, Edgar Morin publicou um livro sobre as “lições de um século de vida”, viajando por caminhos plurais, da investigação antropológica à recusa de uma sociedade regida por algoritmos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 agosto).

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No dia do seu 100º aniversário, Morin publicou no jornal Le Monde um artigo intitulado “Na torrente do século”. Dir-se-ia uma variação ou resumo do “século de vida” referido no título do seu livro. Mas não só: a sua reflexão é eminentemente prospectiva, apostando em identificar os desafios radicais de uma humanidade assombrada pelo Covid-19.
Para Morin, importa continuar a pensar a partir de uma atitude transdisciplinar, integrando contributos de todos os domínios de conhecimento, enfrentando a pluralidade dos acontecimentos históricos, afinal mantendo a postura que ele próprio define como fulcral na sua obra monumental, em seis volumes, La Méthode (Le Seuil, 1977-2004). O terceiro volume possui um título sintomático dessa exigência de permanente discussão do próprio acto de conhecer o mundo à nossa volta: “O conhecimento do conhecimento”.
Morin faz o inventário de alguns momentos a que atribui um peso decisivo no momento global que vivemos, a começar pelo lançamento da bomba atómica sobre Hiroshima, em 1945, expressão de uma “potência” de destruição que ameaça reduzir-nos à “impotência”. Refere depois o chamado Relatório Meadows, documento publicado pelo Clube de Roma, em 1972, “advertindo a humanidade para o processo de degradação do planeta, tanto na biosfera como na socio-esfera” — recorde-se que o título integral desse documento era “Os Limites do Crescimento (num Mundo Finito)”. Destaca ainda, em 1989-1990, “a invasão do capitalismo na ex-União Soviética e na China comunista”, ao mesmo tempo que, de modo espectacular, eclodiam — e passávamos a usar — os “meios de comunicação imediata.”
É na sequência de tudo isto que surge “a crise provocada pela pandemia do Covid-19”, revelando “a fraqueza de uma ciência que considerávamos toda poderosa”. Descobrimo-nos, assim, na encruzilhada provocada por “um vírus de que podemos analisar as moléculas constitutivas”, embora continuando a ignorar a sua origem, “talvez produto microscópico que escapou a um doutor Frankenstein chinês…”
Mas a cedência a uma qualquer teoria da conspiração não nos salva: há especulações bastante mais consistentes que nos alertam para os dramas potenciais do futuro próximo: “Saberemos mais tarde se a pesquisa de vacinas não desacelerou a pesquisa de remédios, se alguns remédios não foram secundarizados sob pressão de poderosas companhias farmacêuticas, influenciando as autoridades de saúde.”
Podemos descrever o seu pensamento da conjuntura pandémica como um movimento de aproximação e recuo (dialéctico, sem dúvida) face às componentes científicas do nosso mundo. Porquê? Porque, como Morin argumenta na entrevista citada, o progresso técnico não pode ser encarado como um evangelho redentor: “Quanto mais o mundo é técnico, maior é o risco de acidente.”
Morin recorda, em particular, os ensinamentos colhidos nos EUA, na década de 60, em plena “contra-cultura”, junto de Heinz von Foerster (1911-2002), o cientista austríaco habitualmente identificado como fundador da “segunda cibernética”. Segundo ele, os humanos são “máquinas não triviais”, diferentes das que são geradas pelo progresso técnico: “A máquina trivial é a máquina artificial, por nós fabricada e da qual conhecemos o comportamento a partir dos programas que a comandam.” Ora, porque as sociedades humanas não são máquinas triviais, importa reagir contra a acção dos tecnocratas que “acreditam que uma sociedade de algoritmos gerados pela inteligência artificial representaria um progresso harmonioso, quando, de facto, seria opressiva, para não dizer asfixiante.”
Nesta perspectiva, a herança do filme Chronique d’un Été mantém uma perturbante e cristalina actualidade. Logo na cena de abertura, tal como Rouch e Morin explicam a Marceline Loridan (figura fundamental do universo do documentarista Joris Ivens), trata-se de questionar o nosso viver social, começando “apenas” por perguntar a cada um dos inquiridos “como é a sua vida”. E também: o que cada um “faz com a sua vida”.
Não há nada mais político: as ideias que formamos sobre o modo como vivemos definem, determinam e fazem evoluir a nossa pertença a uma determinada realidade social. No caso de Morin, para lá da experiência política e da investigação antropológica, a literatura (Dostoievski, Proust, etc.) sempre foi determinante no movimento de tais ideias. Daí o auto-retrato muito didáctico que ele faz no Philosophie Magazine: “Sou um filósofo selvagem, não sou um filósofo profissional.”

The Sparks, em filme e teledisco

Agora que está a chegar The Sparks Brothers, excelente documentário assinado por Edgar Wright, lembremos um tema de A Steady Drip, Drip, Drip, o álbum que os irmãos Mael lançaram em 2020. Dir-se-ia um sonho saído de um filme mudo — aqui está Left Out In The Cold.

segunda-feira, setembro 06, 2021

Jean-Paul Belmondo (1933-2021)

À Bout de Souffle / O Acossado (1959)

Figura emblemática da Nouvelle Vague, símbolo de uma certa ideia francesa de ser actor, Jean-Paul Belmondo faleceu no dia 6 de setembro — contava 88 anos.
Não haverá muitos actores na história do cinema europeu que, de forma tão cristalina, simbolizem a própria arte de transfiguração perante uma câmara de filmar. Ou, mais exactamente, a procura de uma certa neutralidade que, em última instância, compromete o cinema com a identidade de quem o faz e de quem o vê.
Formado no teatro, consagrado pela Nova Vaga francesa — incluindo dois títulos fundamentais de Jean-Luc Godard: O Acossado (1959) e Pedro, o Louco (1965) — foi um desses actores, figura "maior que a vida", cuja carreira nem sempre reflectiu as suas potencialidades. Daí que a sua decisão de se tornar também produtor, no começo dos anos 70, tenha tido um efeito paradoxal, mesmo contraditório: por um lado, permitiu-lhe protagonizar alguns (poucos) títulos realmente ousados, com inevitável destaque para Stavisky (1974), retrato de um escândalo financeiro entre as duas guerras mundiais, dirigido com mão de mestre por Alain Resnais; por outro lado, levou-o a acumular aventuras em tom menor (exemplo: Polícia ou Ladrão, 1979, de Georges Lautner) que, em boa verdade, o conduziram a um metódico afastamento da profissão.
Em qualquer caso, foi em 1988 que recebeu um César de melhor actor, pelo seu trabalho em Itinerário de uma Vida, de Claude Lelouch. Dois anos mais tarde, na sequência de um regresso aos palcos, obteve enorme sucesso, numa sala de Paris, com Cyrano de Bergerac — a performance foi filmada e existe em telefilme.

>>> Cena do começo de À Bout de Souffle/O Acossado.


>>> Com Anna Karina, em Pedro, o Louco.


>>> Trailer de Stavisky.


>>> Entrevista sobre Stavisky, em 1974.


>>> Momentos de culto (Le Monde).


>>> Obituário na revista Le Point.
>>> Jean-Paul Belmondo na Unifrance.

sábado, setembro 04, 2021

"The Walking Dead"
— o pesadelo colectivo (1/3)

The Walking Dead [rodagem]

Começou como a adaptação de uma banda desenhada e transformou-se num fenómeno global: a série televisiva The Walking Dead resistiu mais de uma década: a 11ª temporada chegou a Portugal no dia 23 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 agosto), mantendo-se aqui a referência ao dia 23 como uma data "posterior".

Em junho de 2014, poucas semanas depois da conclusão da quarta temporada de The Walking Dead, durante um debate organizado pela Producers Guild of America, David Alpert, um dos produtores executivos da série, surpreendeu tudo e todos quando deixou uma previsão sobre o seu futuro. Segundo ele, a banda desenhada homónima sobre um mundo apocalíptico, povoado de zombies, constituía uma inspiração extraordinária, de tal modo que seria possível manter a série por muitas temporadas: “Mais especificamente, temos uma ideia muito precisa sobre o que vai ser a 10ª temporada”. E acrescentou: “Temos linhas de referência para as 11ª e 12ª temporadas…”
Pois bem, é tempo de reconhecer que Alpert não estava a exagerar: a 11ª temporada está mesmo a chegar, com um atraso de quase um ano em relação ao calendário inicial devido à conjuntura pandémica. O primeiro episódio poderá ser visto no próximo dia 22, nos EUA; em Portugal, o canal Fox anuncia-o para o dia seguinte, 23, com duas passagens: às 02h30 e às 22h15.
Seja como for, não haverá 12ª temporada — desta vez, é mesmo para acabar… Serão 24 episódios, divididos em conjuntos de oito, com a primeira parte a terminar a 10 de outubro; as datas das duas partes restantes ainda não são conhecidas, embora tudo deva estar concluído ao longo de 2022. Angela Kang, actual produtora principal da série, responsável pelo argumento de mais de duas dezenas de episódios, mostrou-se optimista na apresentação no primeiro trailer da temporada final, em abril passado, recusando qualquer efeito de rotina: “A fasquia estará muito alta — vamos ver mais zombies, acção avassaladora, novas histórias intrigantes, cenários nunca utilizados e todos os nossos grupos vão estar pela primeira vez reunidos numa única comunidade, tentando reconstruir aquilo que os Whispereres lhes roubaram.”
Na verdade, algo de essencial mudou quando, na nona temporada (2018-19), a série introduziu a comunidade dos Whispereres (à letra: “aqueles que sussuram”; ou, num sentido tribal e religioso, “os encantadores”). Comandados por Alpha, a mulher de cabelo rapado interpretada por Samantha Morton, os Whispereres distinguem-se pela adopção de uma violência brutal em relação a todos os outros grupos, mas a sua identidade define-se a partir de uma componente única neste universo visceralmente trágico: mascaram os rostos com as peles que extraem dos corpos dos próprios zombies, numa duplicação perversa do seu comportamento errático — conseguem mesmo caminhar lado a lado com os zombies, sem serem atacados… Se os zombies são os “mortos que caminham” (Walking Dead), os Whisperers sobrevivem como “vivos que caminham”.

A IMAGEM: Geof Kern, 2017

GEOF KERN
Flower Face (North Park Center, Dallas)
2017

quinta-feira, setembro 02, 2021

Edgar Morin
— o filósofo selvagem [2/3]

Jean Rouch e Edgar Morin

Ao completar 100 anos de vida, Edgar Morin publicou um livro sobre as “lições de um século de vida”, viajando por caminhos plurais, da investigação antropológica à recusa de uma sociedade regida por algoritmos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 agosto).

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Escusado será dizer que a consciência da pluralidade humana se espelha na imensidão das obras de Morin (que este texto não pretende sequer sugerir), salvaguardando sempre o labor de contínua redescoberta que alimenta essa consciência — é uma forma intransigente de humanismo. Assim, a palavra “complexidade” pontua todas as actividades de Morin, conduzindo-o da militância politicamente enquadrada à afirmação de um individualismo aberto às diferenças dos outros.
O seu envolvimento com o Partido Comunista é revelador: militante a partir de 1941, em contexto de resistência ao nazismo, acabou por se distanciar do respectivo aparelho através da denúncia dos crimes estalinistas, sendo expulso em 1951. Daí a leitura, também ela “complexa”, das heranças juvenis: “As transformações decorrentes da idade e da experiência não são necessariamente conquistas de lucidez. Assim, muitos comunistas, maoístas e trotskistas desiludidos converteram-se ao nacionalismo xenófobo ou à religião da sua infância. No que me diz respeito, conservando as minhas aspirações de juventude, rejeitando definitivamente as lógicas sectárias, converti-me à autonomia política total.”
Há, por isso, em Morin um “duplo imperativo complementar do Eu e do Nós” que pode levar cada ser humano a oscilar, com maior ou menor felicidade, “do individualismo ao comunitarismo, do egoísmo ao altruísmo”. Curiosamente, tal dinâmica encontraria uma forma exemplar de expressão nas relações de Morin com a experimentação cinematográfica.
O cinema não ocupa um lugar dominante na escrita de Morin, mas é um facto que ele é autor de um dos clássicos absolutos da literatura cinematográfica do século XX: O Cinema ou o Homem Imaginário, publicado em 1956 (disponível no mercado português numa magnífica tradução de António-Pedro Vasconcelos, com chancela da Relógio d’Água). Aliás, o seu interesse pela dimensão “imaginária” dos filmes levou-o, um ano mais tarde, a escrever Les Stars (ed. Points).
Para Morin, o cinema foi uma continuação da investigação antropológica “por outros meios”. Em 1997, esclarecia esse ponto no prefácio a uma reedição de O Cinema ou o Homem Imaginário: (…) o estudo do cinema não foi um intervalo, um divertimento na minha bibliografia, apesar de corresponder a um período de refúgio. Fruto do acaso, acabou por ser absorvido pela necessidade. Ao estudar o cinema, não estudei apenas o cinema: continuei a estudar o homem imaginário. Além do mais, considero o cinema, não como um objecto periférico, acessório, ou mesmo risível (os meus colegas riam-se quando eu lhes dizia que ia “trabalhar” no cinema), mas como um objecto privilegiado para uma antropo-sociologia séria, porque coloca um nó górdio de questões fundamentais.” Ou ainda, dito de forma poética — celebrando a “poesia” que ele exalta no seu livro mais recente —, tudo se passa “como se o cinema exprimisse a música implícita, a música subentendida das coisas.”
A esse propósito, convém não esquecer que, na companhia de Jean Rouch, Morin é co-autor do filme Chronique d’un Été (1961), marco simbólico na afirmação da Nova Vaga francesa, tradicionalmente apontado como matriz do chamado “cinema-verdade”. A sua “reportagem” sobre o dia a dia de diversas personagens — com Rouch e Morin, no final, a discutirem os prós e contras do próprio projecto — explora uma duplicidade essencial: até que ponto sabemos dizer e explicar a vida que vivemos? Ou ainda: como é que a irredutível identidade de cada um “encaixa” nos valores do colectivo em que vivemos?

A IMAGEM: Herb Ritts, 1996

HERB RITTS
Amber Valetta
Santa Barbara, 1996