sábado, novembro 28, 2020

Duas canções de Eddie Vedder
no combate à EB


Eddie Vedder e Jill Vedder, sua mulher, são duas das personalidades ligadas à criação e actividade da EB Research Partnership, fundação empenhada em angariar fundos para o tratamento e a cura da EB [Epidermólise bolhosa], doença que atinge crianças, à nascença, fragilizando a sua pele, por vezes com consequências fatais. Recentemente, Vedder lançou duas canções integradas nas campanhas de angariação de fundos da fundação: Matter of Time e Say Hi (#comesayhi).



sexta-feira, novembro 27, 2020

Paul McCartney
— o passado e o presente

Enquanto aguardamos McCartney III, eis a apresentação oficial daquele que será o 18º álbum de estúdio de Paul McCartney. E como a promoção inclui algumas imagens da família de Paul e Linda McCartney que remetem para a época do prodigioso Ram (1971), aqui fica também o teledisco de um dos seus temas, Monkberry Moon Delight



quarta-feira, novembro 25, 2020

Memória de Maradona

LUCAS LEVITAN
25 Novembro 2020

Aaron Sorkin
— um narrador americano

Aaron Sorkin
— rodagem de Os 7 de Chicago


Criador da série Os Homens do Presidente, argumentista de A Rede Social, Aaron Sorkin regressa com Os 7 de Chicago, notável evocação da Convenção Nacional Democrata de 1968 e das convulsões legais que dela decorreram — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Novembro). 

Ao ver o novo filme escrito e realizado por Aaron Sorkin — Os 7 de Chicago (Netflix) —, recordei-me das suas palavras, emocionadas e emocionantes, a 27 de fevereiro de 2011, ao receber o Oscar de melhor argumento adaptado por A Rede Social (The Social Network), a obra-prima de David Fincher sobre Mark Zuckerberg e as origens do Facebook. O seu discurso de agradecimento começou assim: “É impossível descrever o sentimento de receber o mesmo prémio que, há 35 anos, foi dado a Paddy Chayefsky por outro filme com a palavra ‘network’ no título.” 
Referia-se ele ao Oscar de melhor argumento original ganho por Chayefsky com o filme Network - Escândalo na TV (1976), de Sidney Lumet, título pioneiro na identificação das derivas populistas do espaço televisivo — valeu a Peter Finch o primeiro Oscar de interpretação (melhor actor) atribuído a título póstumo. 
Tratava-se de citar, não apenas uma inspiração e um modelo de trabalho, mas de reafirmar a vitalidade de uma genealogia narrativa visceralmente americana. Chaeyfsky, argumentista e produtor (falecido em 1981, contava 58 anos), tem o nome ligado a vários títulos marcantes na evolução do classicismo de Hollywood, incluindo a sua contaminação por componentes vindas da área da televisão: Marty (1955), de Delbert Mann, será o símbolo nuclear de tal dinâmica. 
Neste contexto em que as incidências das eleições presidenciais nos EUA são assunto transversal em todo o mundo, vale a pena lembrar que esse país — consagrado pela história, e pela sua mitologia, com uma palavra derivada de todo um continente: “América” — continua a ser isso mesmo. A saber: uma impressionante máquina geradora de narrativas, sendo o cinema um dos domínios fulcrais da sua vocação. 
Não que o “cinema americano” possa ser pensado (ou apenas descrito) como uma entidade unificada e unívoca a que apomos uma classificação “positiva” ou “negativa”. Deixemos isso para os maniqueísmos mediáticos em que nada mais existe a não ser uma guerra interminável entre “prós” e “contras” — para nos ficarmos pelo mais simples, lembremos apenas que não há maneira de conciliar a sofisticação dramática de um filme como Os 7 de Chicago com a agitação ruidosa da maior parte dos produtos saídos da fábrica de efeitos especiais da Marvel. 
Acontece que a história das narrativas cinematográficas americanas é tanto mais rica e contrastada quanto existe enredada com a história das convulsões sociais e políticas do próprio país. O génio de Sorkin manifesta-se também, por exemplo, na criação e escrita da série televisiva The West Wing/Os Homens do Presidente (1999-2006). Ou ainda nessa outra série, prodigiosa na exposição das tensões internas de um jornalismo que nunca abdica de problematizar o seu papel no interior da vida em democracia, que é The Newsroom (2012-2014). 
O fascínio de Os 7 de Chicago é tanto maior quanto nele reencontramos uma conjuntura essencial para compreendermos uma América assombrada pela guerra do Vietname e, no limite, para pensarmos os valores, enunciados e práticas da lei democrática. A evocação do julgamento dos “7 de Chicago” (o título original é, aliás, The Trial of the Chicago 7) envolve, assim, um momento emblemático da história da democracia americana: a Convenção Nacional Democrata de 1968 que levou à escolha de Hubert Humphrey como candidato à presidência dos EUA (derrotado a 5 de novembro desse ano pelo republicano Richard Nixon). 
Encenando o julgamento dos militantes presos na sequência de violentos confrontos com as forças policiais, Sorkin remete-nos para a dialéctica fundadora do imaginário democrático americano: ficamos a conhecer as profundas diferenças dos que foram a tribunal (incluindo Abbie Hoffmann, Tom Hayden ou David Dellinger), ao mesmo tempo que os identificamos como personagens de uma dramaturgia política que, em última instância, através dos seus desejos e traumas, configura um conceito de democracia. Ironicamente, Sorkin volta a afirmar-se no coração muito vivo das imagens: este filme (apenas) online pode valer-lhe, no mínimo, mais uma nomeação para os Oscars.

terça-feira, novembro 24, 2020

Paul McCartney, 1980

Enquanto aguardamos o lançamento de McCartney III (18 Dez.), Paul McCartney relançou, em "cópia restaurada", o célebre e delicioso teledisco de Coming Up, tema de abertura de McCartney II (1980) — Paul assume nada mais nada menos que uma dezena de personagens, com Linda McCartney a interpretar "apenas" duas.

domingo, novembro 22, 2020

"Pra cima de puta"

KAZEMIR MALEVICH
Quadrado negro
1915

I. Curiosa hierarquia anatómica do insulto: diz-se "abaixo de cão", implicando que o animal, por si só, já é uma referência pouco digna, quer dizer, moralmente muito baixa; no pólo oposto, "pra cima de puta" (e não "abaixo de puta") denuncia uma irrecuperável degradação moral, de tal modo que, neste caso, paradoxalmente, subir na escala afasta a pessoa visada de qualquer hipótese de redenção. 

II. Que Cristina Ferreira use a segunda expressão como título de um livro seu, eis uma escolha inevitavelmente curiosa, tendo em conta que a autora quer evitar qualquer arbitrariedade metaforizante, esclarecendo que se trata de uma "provocação", no sentido em que o seu objectivo primordial é uma "chamada de atenção". Atenção para quê? Para uma "análise sociológica" das "agressões" nas "redes sociais" — a começar por aquelas a que ela tem sido sujeita, incluindo a classificação "pra cima de puta". 

III. Somos todos pavlovianos, eis a questão. Por um lado, Cristina Ferreira é uma personalidade pública do espaço televisivo, em grande parte apoiada nas chamadas redes sociais, o que ajudará a explicar o seu natural interessa pela sociologia. Identidade, sistema moral e estratégia empresarial, tudo nela existe arquitectado e exponenciado através de tais circuitos. Por outro lado, pressente agora que a utopia "social" que tão empenhadamente tem protagonizado pode ser uma ilusão cruel, convocando os seus seguidores "para percebermos que mulheres e homens atacam ferozmente".

IV. Oxalá seja bem sucedida em tão heróico empreendimento, mesmo se os tempos nos tornaram cépticos em relação a todas as formas de heroísmo. Num plano meramente afectivo, diria que, para muitos cidadãos da minha geração, esta é uma inesperada oportunidade de reflexão: desde La Maman et la Putain (1973), de Jean Eustache, que um título não nos alertava para os insondáveis e contraditórios poderes de algumas palavras.

V. "Na Internet e nas redes sociais, a maldade grassa, o fel destila. Assusta-me perceber que há gente que se alimenta disso, que julga e agride os outros com facilidade e sem pudor", escreve Cristina Ferreira. A esse propósito, podemos referir que há mesmo quem pense que o poder tecnológico, discursivo e comunicacional do sr. Mark Zuckerberg merece ser classificado "abaixo de cão" — estará, talvez, para aparecer um livro com esse título.

quinta-feira, novembro 19, 2020

Gene Tierney — memória


Quem está no quadro de Laura (1944)? Um ser vivo ou um fantasma? Ou um fantasma que é um ser vivo? 
Otto Preminger filmou essa visceral ambivalência, criando, não apenas um símbolo perfeito da tradição do "noir", mas ensinando-nos também que uma personagem pode ser uma entidade que, mais do que integrar um contexto, tende a desafiar a sua coerência e os seus limites. Nessa medida, Laura é também o protótipo do mais belo entendimento romântico do trabalho de uma actriz. 
Laura é interpretada por Gene Tierney, nascida em Nova Iorque a 19 de Novembro de 1920 — faria hoje 100 anos. 

The Kills, "I Put a Spell on You"

A antologia de raridades que The Kills vão lançar a 11 de Dezembro, Little Bastards, inclui uma versão do clássico de Screamin' Jay Hawkins, I Put A Spell On You — sem espinhas.

quarta-feira, novembro 18, 2020

Kellyanne Conway, Donald Trump
e os factos alternativos

Kellyanne Conway [BBC]
Foi em 2017, numa entrevista televisiva, que Kellyanne Conway pôs a circular a noção de “factos alternativos”. Depois de quatro anos de presidência de Donald Trump, compreendemos que as suas palavras não tinham nada de anedótico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Novembro). 

Provavelmente, Donald Trump tem alguma razão: as “fake news” não são um simples sobressalto na dicotomia verdade/mentira, mas um modo de viver e representar o mundo. Existem como uma espécie de magma que vai deslizando pelas certezas da nossa racionalidade, paralisando as matérias vitais do pensamento, determinando os nossos comportamentos, viciando o nosso imaginário, toldando a nossa imaginação. 
A resistência de Trump a reconhecer a vitória de Joe Biden seria um absurdo que a mais básica lógica cognitiva conseguiria desmontar e, em princípio, superar. Não é isso que está a acontecer. Entrámos no cenário de um perverso jogo de espelhos: agora, Trump é o produtor de “fake news”. 
Vemos, por exemplo, os esforços diários de entidades como a CNN para manter os valores da mais ancestral deontologia jornalística, denunciando insinuações e múltiplas mentiras de Trump. Nem assim conseguimos suprimir a sensação de um permanente ataque de pânico (nosso, não dele). 
Podemos até especular sobre os mecanismos de negação de Trump, reconhecendo a ferida narcisista que tais mecanismos parecem reflectir. Seja como for, nenhuma “psicanálise” de bolso pode auxiliar a nossa vontade de compreender. Como se ele tivesse conquistado uma posição capaz de transcender a própria noção de realidade: Trump encena e protagoniza uma tragicomédia que, de tão “fake”, já não o afecta. 
Vale a pena revermos (e escutarmos) as imagens de Kellyanne Conway quando, a 22 de janeiro de 2017, introduziu na história política e mediática a expressão “factos alternativos”. A conselheira do Presidente Trump dava uma entrevista a Chuck Todd, no programa Meet the Press (NBC): ao ser questionada sobre o facto de Sean Spicer, porta-voz da Casa Branca, ter dado informações falsas sobre o número de pessoas que acompanharam a tomada de posse de Trump, Conway disse que Spicer se tinha limitado a dar conta de “factos alternativos”…


Quase quatro anos depois, podemos tentar outra maneira de dizer isto: Donald Trump talvez não nos tenha enganado com os seus “factos alternativos”, mas conseguiu fazer prevalecer um novo cânone comunicacional em que qualquer facto já não existe, nem subsiste, como entidade factual (a redundância é inevitável). A nova regra é: qualquer facto está aberto a alguma “alternativa”. 
Nesta perspectiva, vale também a pena relembrar o seu passado como protagonista e mentor de The Apprentice (NBC, 2004-2015), um concurso de “reality TV” em que Trump desempenhava o papel de apresentador e avaliador de participantes cuja missão consistia em montar um determinado negócio (uma indústria de brinquedos, uma fábrica de gelados, uma linha de moda, etc.). Antes de ser Presidente dos EUA, Trump era mesmo conhecido do povo americano como aquele que geria tal programa, eliminando os concorrentes que não conseguiam obter lucros com uma frase contundente: “Está despedido.” 
Em boa verdade, a “reality TV” é tão só uma indústria de produção de “factos alternativos”, de tal modo poderosa e abrangente que conseguiu entorpecer a nossa disponibilidade para, como simples cidadãos, pararmos para reflectir nas mensagens audiovisuais que recebemos todos os dias. Há efeitos emocionais de compensação para a nossa inacção, nomeadamente através do futebol, com a consagração do video-árbitro: o planeta desportivo foi invadido por infinitas polémicas sobre o fora de jogo marcado porque há um pé colocado 3 cm à frente de um joelho… mas, mesmo depois de quatro anos de Trump a ocupar o cargo de “homem mais poderoso do mundo”, ninguém arrisca uma pausa para, pelo menos, identificar as raízes televisivas do seu poder. 
Infelizmente, a simples formulação de tal hipótese depara quase sempre com a resistência dos que não admitem que se ponha em causa a idoneidade do continente televisivo. Ora, a questão é bem diferente: a televisão existe como um sistema de linguagens de tal modo rico e fascinante que não faz sentido alhearmo-nos da sua apropriação por discursos “alternativos” que nos tratam como cobaias de entretenimento. Seria também interessante que os políticos, tão necessariamente presentes no espaço televisivo, nos ajudassem nessa reflexão.

terça-feira, novembro 17, 2020

Barack Obama
— sobre "uma América dividida"

A propósito do lançamento do seu livro, A Promise Land, primeiro volume de memórias sobre oito anos enquanto Presidente dos EUA, Barack Obama deu uma entrevista à NPR, reflectindo sobre o que aprendeu com a sua experiência e também analisando a herança divisiva de Donald Trump — eis os sons.

segunda-feira, novembro 16, 2020

As palavras de Stanley Kubrick

Eis uma preciosa lição de cinema que passou no Doclisboa, Kubrick by Kubrick propõe uma fascinante memória do autor de 2001: Odisseia no Espaço, tendo como base os seus diálogos com o crítico Michel Ciment — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Outubro).

Ainda que involuntariamente, cada cineasta gera a sua própria mitologia. No caso de Stanley Kubrick (1928-1999), a imagem de eremita cola-se à sua biografia como uma segunda natureza. Afinal de contas, ele foi o cineasta americano que se “exilou” em Inglaterra, tendo rodado mais de metade da sua filmografia em estúdios nos arredores de Londres — de Lolita (1962) a De Olhos Bem Fechados (1999), passando, claro, por 2001: Odisseia no Espaço (1968). 
Daí que Kubrick seja muitas vezes referido como o “cineasta que não dava entrevistas” ou que, no mínimo, resistia a quase todas as solicitações nesse sentido. Daí também o valor histórico, cinéfilo e afectivo de um filme como Kubrick by Kubrick, de Gregory Monro, programado pelo Doclisboa. Mais do que uma montagem de declarações avulsas, trata-se de uma verdadeira redescoberta de Kubrick através das suas próprias palavras. 
Em sentido literal, entenda-se: escutamos as palavras de Kubrick sem que nunca o vejamos a proferi-las. Isto porque na base do filme estão as conversas do crítico francês Michel Ciment com o realizador, em sucessivos encontros na sua casa de Hertfordshire, a cerca de 40 km do centro de Londres. Apenas munido de um gravador, Ciment, director da revista Positif (desde 1966), foi construindo uma verdadeira antologia prática e filosófica sobre o universo criativo de Kubrick. Para lá das muitas abordagens que tem dedicado aos seus filmes, ele é autor de um livro de referência, intitulado apenas Kubrick, cuja primeira edição surgiu em 1980, por altura da estreia de Shining
O dispositivo de Kubrick by Kubrick faz lembrar outro documento precioso dedicado a um grande cineasta: Hitchcock/Truffaut (2015), filme de Kent Jones sobre as conversas gravadas entre Alfred Hitchcock e François Truffaut que deram origem ao livro Le Cinéma selon Alfred Hitchcock, editado em 1966. Também aqui vemos o entrevistado nas mais diversas situações de trabalho ou em eventos sociais, sem que haja imagens filmadas durante as próprias conversas (embora, no caso de Hitchcock, existam magníficos testemunhos fotográficos de Philippe Halsman). 
Para os resultados documentais, a “ausência” do protagonista não é indiferente. Desde logo, porque Kubrick não esconde a sua relutância em “explicar” os filmes, fazendo questão em sublinhar a margem de arbitrariedade que pode levar à escolha de um ou outro projecto. Ao mesmo tempo, vamos assistindo à edificação de um sistema de pensamento que talvez se possa definir a partir de uma sugestiva duplicidade: por um lado, o seu gosto pela abordagem realista das situações de cada filme, mesmo as mais artificiosas, gosto enraizado no trabalho de fotojornalista que desenvolveu na juventude, aprendendo a trabalhar com fontes de luz natural; por outro lado, o entendimento da narrativa como um peculiar labor de envolvimento emocional do espectador (“Num trabalho de ficção, é preciso haver conflito. Se não existir uma qualquer tensão na história, em boa verdade, nem sequer temos uma história.”). 
Além de pontuar as cenas com curiosas “reconstituições” de cenários emblemáticos (com destaque para o “quarto branco” do final de 2001) e de recuperar extratos de diversas entrevistas com actores e técnicos, Kubrick by Kubrick acaba por funcionar como uma paradoxal e fascinante celebração do valor da palavra — o que se apresenta como tanto mais irónico quanto Kubrick é, muito justamente, reconhecido como um dos mais geniais criadores visuais da história do cinema. Num tempo em que muitos espectadores são (des)educados a supor que um filme não passa da colagem mais ou menos anódina de fragmentos disponíveis no YouTube, Kubrick by Kubrick propõe uma belíssima lição de cinema.
Numa das entrevistas integradas na montagem, dada a um canal televisivo francês, Ciment resume de forma modelar a complexidade “kubrickiana”: “Como todos os grandes cineastas, ele possui o sentido do espaço e o sentido do tempo. Ou seja, é preciso saber compor a imagem — é a arte da fotografia; depois, é preciso desenvolver o tempo de uma narrativa.” Relembrando os gostos do próprio Kubrick, Ciment acrescenta: “É a arte do xadrez, e é também a arte do jazz.”

sexta-feira, novembro 13, 2020

LEFFEST, 13 a 25 de Novembro

Convenhamos que, em 2020, num cenário global de pandemia, começar um festival de cinema com 2001: Odisseia no Espaço (1968) é, no mínimo, bizarro. Entenda-se: no sentido desafiante e estimulante que a bizarria cinéfila pode envolver.
Assim acontece na 14ª edição do LEFFEST, recuando mais de meio século para, com a obra-prima de Stanley Kubrick, nos recolocarmos num ponto crítico da actualidade cinematográfica — esse mesmo em que todas as inquietações com os futuros da Sétima Arte (é tempo de recuperarmos o idealismo ancestral das palavras) podem, e devem, ser vividas e pensadas através de uma relação ágil, sistemática e pedagógica com o património de mais de um século de história.
Paul Thomas Anderson, Sharunas Bartas ou Paul Vecchiali são apenas alguns dos nomes cujos trabalhos passarão pelo certame, confirmando que há uma paisagem de criadores em que o cinema-cinema resiste para lá de qualquer ilusão "progressista" enraizada no imaginário dos jogos de video e efeitos especiais... Sem esquecer, a propósito, uma sessão especial com Le Carrosse d'Or (1952), de Jean Renoir, velha e cristalina lição sobre a ausência de fronteiras entre a arte e a vida.

>>> Trailer de 2001 + apresentação de Le Carrosse d'Or por Renoir.


quarta-feira, novembro 11, 2020

The Strokes no "Saturday Night Live"


Em tempos de dúvidas e angústias, algumas pequenas coisas sérias para arejar o pensamento: The Strokes estiveram no Saturday Night Live para interpretar duas canções do seu sexto álbum de estúdio, The New Abnormal — apresentados por John Mulaney, eis The Adults Are Talking e Bad Decisions



terça-feira, novembro 10, 2020

"Horses", 45 anos


E depois dos sixties veio a década de 70... Nesta verdade de La Palice insinua-se, por vezes, uma simplificação abusiva: as atribulações do novo tempo seriam tão só a herança, mais ou menos corrigida, dos êxtases prometidos por uma época em que a palavra libertação se tornou uma moeda essencial, ainda que demasiado perversa, por vezes atraindo um paradoxal conformismo.
Enfim, digamos que se necessitamos de citar um objecto, apenas um, que nos possa ajudar a começar a compreender como os anos 70 envolveram um árduo labor de pesquisa e experimentação — como viver perante a fealdade abrasiva do mundo? —, esse objecto poderá ser Horses, álbum de estreia de Patti Smith, abrindo as portas de uma eternidade anunciada pelo seu retrato assinado por Robert Mapplethorpe.
Horses foi lançado no dia 10 de Novembro de 1975 — faz hoje 45 anos.

>>> Gloria, tema de abertura de Horses + "Pitchfork Liner Notes". 


Cruzeiro Seixas (1920 - 2020)

[ RTP ]

Pintor, artísta plástico, poeta, foi um figura central do surrealismo em Portugal: Cruzeiro Seixas faleceu no dia 8 de Novembro, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa — completaria 100 anos no dia 3 de Dezembro.
Embora tenha passado pelo universo neo-realista, foi no movimento surrealista, a partir de 1948, através da cumplicidade e amizade com Mário Cesariny, que encontrou os espaços e projectos de liberdade criativa que o mobilizaram até ao fim da vida. A notícia da sua morte foi divulgada pela Fundação Cupertino de Miranda, entidade de Famalicão a que doou a sua colecção pessoal, em 1999 — para lá de elementos da sua correpondência pessoal, aí se encontra o essencial da sua obra, incluindo desenhos, serigrafias, colagens, objectos e pinturas. 


Sem título (1957)


Serigrafia (2008)

Serigrafia (2011)

>>> Obituário no Diário de Notícias.

Donald Trump, "fake news" & etc.

Num certo sentido, Donald Trump sempre teve razão. A saber: muitos aspectos dos confrontos políticos contemporâneos nos EUA tem como cenário dantesco as chamadas "fake news". E não apenas como pano de fundo mais ou menos inquietante em que colhemos (des)informação, antes como força ideológica e matéria simbólica que determina comportamentos individuais e ilusões colectivas.
Este video da CNN — esclarecendo que as imagens de boletins de votos queimados divulgadas pelo campo de Trump são de boletins, é um facto, mas não preenchidos — é especialmente revelador. E tanto mais quanto o repórter, numa cândida inventariação de dados palpáveis, dialoga com pessoas que persistem numa ilusão sem fundamento, recusando os resultados democraticamente expressos (e contabilizados). Seria apenas caricato se não fosse profundamente trágico.

domingo, novembro 08, 2020

Austin, Texas — duas imagens

[ FOTO: Michael Minasi/KUT ]
[ FOTO: Gabriel C. Pérez/KUT ]

São duas imagens publicadas no site da NPR, reflectindo o estado das coisas numa "nação dividida", ambas provenientes de Austin, Texas, através da rádio KUT — a primeira obtida numa manifestação da organização Protect the Vote, pouco depois do anúncio da vitória de Joe Biden; a segunda, de apoio a Donald Trump, na sequência da difusão da mesma notícia.

FOX vs.CNN

Momento histórico: a 6 de Novembro de 2020, quando se tornava cada vez mais provável a vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais americanas, a FOX News decide instruir os seus apresentadores no sentido de não utilizarem a expressão "Presidente eleito", levando a CNN a noticiar tal decisão, identificando-a de forma inequívoca — mau jornalismo. 
Dito de outro modo: como se prova, para lá do respectivo enquadramento histórico e legislativo, a regularização da vida televisiva começa no seu interior, através da aplicação das mais básicas regras deontológicas e, nessa medida, da exposição das diferenças inconciliáveis.

A IMAGEM: Lewis Hine, 1917

LEWIS HINE
Soldado lançado ao ar
1917

A IMAGEM: Imogen Cunningham, 1906

IMOGEN CUNNINGHAM
O Meu Pai aos 60 Anos
1906

A IMAGEM: Margaret Bourke-White, 1942

MARGARET BOURKE-WHITE
Na ausência dos trabalhadores masculinos,
mobilizados para a Segunda Guerra Mundial,
uma mulher assume as suas tarefas numa siderurgia

1942

sexta-feira, novembro 06, 2020

Biden / Trump

@lopes_jjlrl

Trump contra Biden? Biden contra Trump? O esquematismo é inevitável — afinal de contas, cada voto conta mesmo e não há eleição democrática que possa prescindir da contagem de todos os votos.
Dito isto, é inevitável reconhecer que a clivagem protagonizada por Joe Biden e Donald Trump nunca seria (ou será) superada pelo resultado das eleições presidenciais americanas de 3 de Novembro de 2020. Em boa verdade, o seu confronto existe também como uma reconfiguração social e ideológica dessa clivagem, relançando a América no ancestral confronto com as glórias, os traumas e os impensados da sua identidade.
Daí também o impacto realmente global do que está a acontecer, reforçando a frase irónica, mas concisa, de Eduardo Lourenço: "... somos todos americanos." Mesmo na sofisticada dimensão de espectáculo que a política pode envolver [CNN], talvez sobretudo através dessa dimensão, vivemos com os americanos, através dos americanos, através da distância a partir da qual os contemplamos, uma narrativa que envolve também o suspense da nossa identidade.
Talvez haja outra maneira de dizer isto, para lá do jogo de vitória/derrota protagonizado por Biden/Trump: através destas eleições, depois destas eleições, América e Europa serão confrontadas com o desafio radical de repensar as suas relações. Radical, porque pedagógico.

Stephen Colbert: "What I didn't know
is that he would hurt so much"


Stephen Colbert
[ 05 Nov. 2020 ]

quinta-feira, novembro 05, 2020

Da China, com amor
— cinco curtas-metragens

Eyes, de Naixin Xu

Eis um conjunto de cinco curtas-metragens que vale a pena descobrir numa plataforma de streaming: são histórias de amor e sexo, casais e famílias, em cenários chineses, particulares pelo contexto, universais pelas emoções — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Outubro). 

No ecrã negro emerge um rectângulo com olhos. São olhos que falam, apresentando os contornos de um mapa sexual, misto de objectividade e ironia: “Os homens são homens porque têm um pénis. As mulheres são mulheres porque têm uma vagina. Talvez eu seja um homem que tem uma vagina.” 
Assim começa o filme Eyes, da realizadora chinesa Naixin Xu, uma muito breve (5 minutos) e fascinante curta-metragem, disponível na plataforma de streaming Zero em Comportamento. Trata-se do primeiro título de um programa intitulado “A China fora da caixa”, incluindo mais quatro curtas, produzidas em 2018-19, todas marcadas por temas e situações que envolvem as singularidades sexuais das personagens e, em particular, a possibilidade ou impossibilidade da sua mais básica aceitação familiar e social. Como se escreve no programa, são “quatro histórias da comunidade LGBTQI+, e uma história sobre os desafios sociais e psicológicos de uma sobrevivente de abuso sexual numa zona rural; os protagonistas das curtas levam-nos por lugares universais, ao mesmo tempo que partilham experiências individuais e nos desafiam para reconhecer semelhanças e entender diferenças.” 
Eis algumas palavras genuinamente pedagógicas, combatendo os militantismos da moda que favorecem a noção pueril segundo a qual a sua “causa” nasceu do nada, sem memória histórica nem herança ideológica. Para nos ficarmos por um dos exemplos mais grosseiros, favorecido por muitos discursos mediáticos (incluindo alguma crítica de cinema dos EUA), observe-se como a presença de actores de pele negra na galeria de super-heróis da Marvel tem contribuído para obliterar o próprio conhecimento da riquíssima e complexa presença dos afro-americanos no património de Hollywood. 
Neste caso, entenda-se, não estamos perante qualquer generalização sobre o “sexo na China”. Seria, aliás, banal demagogia tentar abarcar a pluralidade interna de tão fascinante país a partir de um programa de filmes que dura pouco mais de uma hora. A virtude primeira destas curtas decorre, justamente, da sua focagem em histórias irredutíveis, avessas a qualquer “simbolismo” mais ou menos abstracto. 
Apenas o referido filme sobre um caso de abuso sexual, Ruins, de He Yi, me parece falhar completamente o objectivo: a sua construção faz-se a partir de uma memória de tal modo vaga e elusiva que vai perdendo pertinência narrativa e dramática. Dos outros, We Outlaws, de Kaixuan Huang, será o mais elaborado, explorando um sugestivo registo melodramático para encenar as vivências de um jovem operário de uma fábrica de têxteis que, durante a noite, assume uma identidade feminina objectivamente proibida por lei; a acção situa-se no início da década de 90, evocando um contexto em que, de acordo com os termos da legislação que vigorou entre 1979 e 1997, a “indecência” sexual era tratada como um crime. 
Um dos filmes disponíveis segue uma lógica linear de documentário. O seu título, Tang Long, identifica a figura central, um homem que vive com o companheiro nos subúrbios de Xangai. A realização de Jiangtiang Zong dá a ver a casa do casal e vários momentos do seu dia a dia, num realismo pragmático, sem sublinhados retóricos, que desemboca nas palavras transparentes, por vezes desencantadas, de Tang Long: a sua descrição das atribulações de um casal de pessoas do mesmo sexo não exclui o reconhecimento cândido da fragilidade imensa de qualquer história de amor. 
São histórias de amor, de facto. I Love You Mama, de Maya Peters (uma irlandesa a residir na China), fica como exemplo modelar dessa intensidade do impulso amoroso que não se esgota em nenhum discurso militante, mesmo quando através dele se pode exprimir. Dir-se-ia um singelo videoclip (também com 5 minutos de duração) em que uma adolescente escreve uma carta à mãe, dando conta de um simples facto: a sua orientação sexual, porventura surpreendente ou chocante para alguns outros, não altera a invencível demanda do amor materno. Como os olhos que nos falam, fazendo-nos sentir que pertencem a um corpo que não abdica de viver.

domingo, novembro 01, 2020

Duas ou três coisas sobre ela
[Téchiné, Godard & etc.]


Através de O Sal das Lágrimas, novo filme do veterano Philippe Garrel, reencontramos uma sensibilidade romanesca que, para lá das atribulações amorosas das personagens, não desiste de olhar atentamente a cidade sem ceder a descrições turísticas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Outubro). 

Roubo este título à edição portuguesa em DVD de uma prodigiosa realização de Jean-Luc Godard, datada de 1967: Duas ou Três Coisas sobre Ela corresponde a Deux ou Trois Choses que Je Sais d’Elle (à letra: “Duas ou três coisas que eu sei sobre ela”), filme em que elementos de uma investigação jornalística da revista Le Nouvel Observateur (actual L’Obs) serviam de base a um retrato do crescimento urbano de Paris, visto a partir do dia a dia de uma família. Como ficava esclarecido através de um cartão apresentado logo na abertura do filme, a palavra “ela” não se referia a uma personagem humana, mas sim à “região parisiense”.
O título vem a propósito do belíssimo O Sal das Lágrimas, do veterano francês Philippe Garrel, uma das grandes estreias cinematográficas destes últimos meses. Há nele uma confluência mágica dos elementos tradicionais e obsessivos da obra de Garrel: desde logo, o enigmático cruzamento das relações amorosas, neste caso a partir da experiência de Luc, um jovem da província a estudar marcenaria em Paris (interpretado pelo notável estreante que é Logann Antuofermo); depois, o enfrentamento da morte, figura sempre ausente que, perversamente, vai pontuando o desejo de viver (repare-se na sereníssima cena em que Luc e o pai, na sua oficina, falam sobre o futuro incerto da arte da marcenaria enquanto montam as peças de um caixão); enfim, as austeras e maravilhosas composições a preto e branco, remetendo-nos para um romanesco que não desiste das suas mais primitivas emoções (a direcção fotográfica é do grande Renato Berta que, em 2012, assinou as imagens de O Gebo e a Sombra, derradeira longa-metragem de Manoel de Oliveira). 
Ainda assim, não se trata apenas de detectar a marca do autor. Ou melhor, importa esclarecer que essa marca não decorre de um efeito abstracto de assinatura, mas sim de uma forma muito concreta — de uma só vez cinematográfica e moral — de olhar o mundo à sua volta. Dito de outro modo: Garrel continua a ser também um retratista metódico “dela”, isto é, a região parisiense. 
Aliás, se encararmos O Sal das Lágrimas sob uma perspectiva urbana ou, se quiserem, arquitectónica, deparamos com uma espécie de deambulação afectiva por muitos lugares de Paris que nunca são reduzidos a detalhes pitorescos, muito menos a postais turísticos. 
Lembremos as cenas iniciais de Luc com Djemila, uma das três mulheres que pontuam o seu destino tecido de fidelidades e traições. Enredadas em erotismo e pudor (e bem sabemos que o pudor é um valor fraco na nossa sociedade mediática, ilusoriamente libertária), tais cenas desenham um pequeno trajecto parisiense em que tudo tem vida própria, desde a fachada enrugada de um prédio até à luminosa geometria das casas antigas de dois ou três andares, contaminando a vida das próprias personagens. Recordemos, a propósito, que Djemila é interpretada pela talentosa Oulaya Amamra que, ainda há pouco tempo, descobriramos a contracenar com Catherine Deneuve em O Adeus à Noite, de André Téchiné, outra das grandes estreias deste tão insólito verão cinematográfico. 
São filmes avessos a qualquer efeito de moda, em particular a qualquer diluição em atitudes de “sociologia” normativa. Por alguma razão, o senso comum tende a classificá-los como pretensiosos, por causa das imagens a preto e branco, ou irrelevantes, já que seriam “apenas” histórias de amor e desamor. Na verdade, acontece que a sua simplicidade acaba por possuir qualquer de genuinamente perturbante. 
Em vez de inscrever as suas personagens em estereótipos bem cotados — os “jovens”, os “velhos”, a “sexualidade” —, Garrel filma tudo isso sem as transformar em símbolos ou bandeiras do que quer que seja. Na sua secura, cada ser humano existe “apenas” através de uma diferença radical que funciona como janela aberta, e também barreira invisível, para o olhar de qualquer outro. Como a cidade, sempre igual, sempre diferente por vezes, retratada a preto branco. Porque não?

Barack Obama:
"Qual é o problema das multidões?"

Sean Connery (1930 - 2020)

seanconnery.com

Com a morte de Sean Connery, desparece um actor que, mesmo quando trabalhou no interior de filmes marcados pelos muitos artifícios da técnica (James Bond, lembram-se?), nunca se deixou transformar num mero "transportador" de efeitos especiais. Do drama de guerra (A Colina Maldita, Sidney Lumet, 1965) à mais singular crónica intimista (Descobrir Forrester, Gus Van Sant, 2000), passando pela aventura de ficção científica (Outland - Atmosfera Zero, Peter Hyams, 1983), a sua filmografia define o trajecto exemplar de alguém que nunca se deixou aprisionar no seu próprio mito. Para lá dos filmes e das aventuras, a sua herança envolve também essa pedagógica lição profissional.

>>> Trailer de Marnie, apresentado por Alfred Hitchcock.
 

>>> 60 Minutes (CBS, 1999), com Steve Kroft — sobre a força simbólica de James Bond.


>>> Com Rob Brown, cena de Descobrir Forrester.