sexta-feira, julho 26, 2019

Buñuel, inocência e pecado

O ciclo de filmes de Luis Buñuel continua a ser um dos destaques do Verão cinematográfico: Viridiana, Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1961, é um dos títulos a redescobrir.

A “ceia dos pobres” é uma das imagens mais célebres da obra de Luis Buñuel (1900-1983). Os mendigos protegidos pela noviça Viridiana (Silvia Pinal) aproveitam a sua ausência para penetrar na casa que ela herdou do tio, transformando-se numa turba indisciplinada e devoradora. A certa altura, fazem pose na longa mesa da sala de jantar, “reproduzindo” o quadro A Última Ceia, de Leonardo da Vinci [pintado na última década do século XV — ambas as imagens aqui em cima].
Pois bem, o filme Viridiana está de volta às salas portuguesas, integrado no ciclo de 25 títulos de Buñuel (a decorrer em Lisboa, Porto, Coimbra e Setúbal, chegando a Braga no dia 5 de Agosto). É, muito simplesmente, um dos momentos fulcrais da obra do cineasta espanhol, e também um dos mais célebres, quanto mais não seja porque a sua revelação, em 1961, envolveu derivações mais ou menos escandalosas.
De facto, a apresentação de Viridiana na competição do Festival de Cannes suscitou uma condenação, por “blasfémia”, de L’Osservatore Romano (jornal oficial do Vaticano) e, logo a seguir, a sua proibição nas salas de Espanha (onde só seria exibido depois da morte de Franco, em 1977). Tudo isto não impediu que o júri do certame da Côte d’Azur, presidido pelo escritor francês Jean Giono, o distinguisse com a Palma de Ouro (“ex-aequo” com Une Aussi Longue Absence, de Henri Colpi).
Seja como for, seria simplista reduzir a singular energia de Viridiana às atribulações do seu lançamento. Quase seis décadas depois, o trabalho de Buñuel persiste como um prodigioso exercício de prospecção da fronteira instável entre o bem e o mal, a inocência e o pecado. Talvez se possa dizer até que se trata do filme que faz uma síntese dos trabalhos do período mexicano (dominante nesta primeira fase do ciclo Buñuel), abrindo para uma nova etapa que desembocaria nas produções finais (incluindo Belle de Jour e O Charme Discreto da Burguesia, respectivamente de 1967 e 1972) rodadas em França.
Com uma candura filosófica que coabita com as convulsões de um desafio moral, Buñuel expõe-nos as ambivalências da natureza humana. Ou talvez, melhor: alerta-nos para o facto de as contradições da dimensão humana não poderem ser conhecidas (ainda menos pensadas) a partir de qualquer noção redentora de Natureza.
Na altura do lançamento de Viridiana nos EUA, um cartaz [aqui ao lado] apresentava o filme através de um pedagógico aviso: “Você pode não gostar de Viridiana... Pode até odiá-lo. Pode achá-lo demasiado chocante. Mas uma coisa podemos garantir: Viridiana vai abalar os seus sentidos como nada que já tenha visto numa sala de cinema.” Enfim, por uma vez, mesmo considerando que o nosso tempo é bem diferente da conjuntura de 1961, talvez seja útil reconhecer que há publicidade que pensou seriamente no produto a promover.