segunda-feira, fevereiro 12, 2018

Kevin Spacey já não mora aqui (2/2)

Ridley Scott e Christopher Plummer
Todo o Dinheiro do Mundo tinha Kevin Spacey... passou a ter Christopher Plummer: uma história de usos e costumes do nosso tempo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Fevereiro), com o título 'Os puros e os impuros'.

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Considero Ridley Scott um cineasta menor em cuja filmografia encontramos alguns trabalhos maiores, muito influentes na evolução de diversas temáticas e nas respectivas dinâmicas industriais. Entre tais trabalhos estão Alien – O Oitavo Passageiro (1979), Blade Runner (1982) e Thelma e Louise (1991). Agora, Todo o Dinheiro do Mundo parece-me uma das experiências mais desastrosas da sua carreira, reduzindo uma situação de profundo dramatismo a uma colecção de personagens caricaturais; veja-se o raptor interpretado por Romain Duris, perdido no estafado cliché do “mau com coração bom”...
Dito isto, importa pensar a substituição de Kevin Spacey por Christopher Plummer para além de qualquer “naturalidade”. Mesmo que o filme fosse uma imaculada obra-prima, isso não retiraria a Scott uma amarga responsabilidade: a de hipotecar a especificidade artística do seu trabalho (e de todos os que fizeram este filme) aos efeitos mediáticos da vaga de acusações de assédio sexual. Colocar tal questão não envolve nenhum branqueamento do comportamento de Spacey ou seja de quem for. O que importa pensar é se as nossas sociedades liberais, em nome de uma “pureza” que ninguém sabe definir, estão a esvaziar a noção fundadora do primado da lei, promovendo o espaço mediático a tribunal compulsivo e sem recurso.
Foi essa, aliás, a dúvida eminentemente construtiva lançada pelo muito comentado texto de uma centena de mulheres francesas (Le Monde, 9 Janeiro). Quando leio jornalistas de vários países a identificá-lo como o “documento Deneuve”, pergunto-me se se dão conta da sua cedência às formas de discriminação que dizem combater: Catherine Deneuve é uma estrela, sem dúvida, mas o seu estatuto não é uma boa razão para omitir o facto de estar acompanhada por 99 mulheres.