domingo, março 02, 2014

Que televisão para que cinema?

De uma maneira ou de outra, as relações televisão/cinema são um factor de vitalidade em muitos países... não necessariamente em Portugal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Fevereiro).

Em dois textos anteriores — intitulados ‘Que mercado para os filmes?’ e ‘Que filmes para o mercado?’ — procurei resumir alguns problemas do actual momento da distribuição/exibição. Com uma ressalva que, a avaliar pela indiferença que continua a suscitar na classe política (governos e oposições), está longe de ser um tema socialmente prioritário. A saber: não é possível avaliar, muito menos resolver, os desequilíbrios do mercado cinematográfico sem ter em conta o poder normativo do espaço televisivo.
Não é fácil discutir tais desequilíbrios, quanto mais não seja porque o reconhecimento do enorme poder cultural da televisão — sendo a cultura, entenda-se, não um rótulo para usar na lapela, mas um espaço de conflito de valores artísticos e humanos — tende a atrair a demagogia que menospreza qualquer forma de pensamento crítico. Mesmo no interior da classe jornalística, há quem acredite que apontar a mediocridade visceral de uma cultura televisiva dominada por telenovelas, Big Brother e seus derivados é o mesmo que dizer que só estaríamos bem se todos os canais programassem, às nove da noite, ópera e bailado...
Que fazer? Talvez começar por referir que algumas das mais produtivas experiências televisivas da actualidade passam por uma lógica capaz de manter uma permanente relação de diversificação criativa com entidades e profissionais do mundo do cinema. Vale a pena referir duas delas, provenientes dos EUA (sem que isso se confunda com a ideia pueril de que tais experiências se podem automaticamente “duplicar” no contexto português).
A primeira é a HBO, entidade de admirável capacidade de integração dos criadores cinematográficos — foi no seu contexto que Steven Soderbergh pôde concretizar esse filme brilhante que é Por Detrás do Candelabro — que lançou recentemente True Detective, série policial com Matthew McConaughey e Woody Harrelson, indissociável de toda uma memória de raiz cinéfila. A segunda, a plataforma de difusão Netflix, tem desenvolvido uma estratégia de grande impacto, produzindo séries cujas temporadas disponibiliza de uma só vez, permitindo aos espectadores descobri-las ao ritmo que entenderem — voltou a acontecer com a segunda temporada de House of Cards (entre nós, tal como True Detective, a passar no TV Séries).
As relações cinema/televisão decorrem, afinal, de critérios de programação. No contexto português, a marginalização do cinema nos canais generalistas não pode deixar de alimentar uma generalizada indiferença aos filmes e seus valores específicos. E para os que insistem na ideia (?) de que a telenovela é uma “opção” prioritária dos espectadores, sugiro que se comece a programar os respectivos episódios a partir das duas da manhã, como tantas vezes se faz com os filmes... Quando isso acontecer como norma, será interessante voltarmos a discutir as curiosas duplicidades das audiências.